UMA NOVA EPISTEMOLOGIA PARA AS NARRATIVAS DA HISTÓRIA CHINESA, por André Bueno

 

‘Assim, a tarefa do historiador é falar sobre todos os aspectos de uma Dinastia [contexto histórico], abordar tudo que acontece entre os quatro Mares. Sobre seus ombros cai a responsabilidade de decidir o que é falso e verdadeiro. Nenhuma outra tarefa é tão laboriosa quanto a dos que manejam o pincel’. [Liuxie]

 

A compreensão da história da China não passa tão somente pelo conhecimento superficial de sua imensa trajetória histórica. Decorar o nome de autores e livros é um começo, mas mergulhar a fundo na historiografia chinesa significa topar com conceitos e teorias distintas daquelas encontradas no Ocidente. Há uma atitude problemática, e ainda reincidente, relativa à ideia de racionalidade e colonialidade que impomos muito naturalmente ao pensamento chinês. Quando este se apresenta segundo critérios científicos que nos são próprios, o aprovamos – como se a racionalidade fosse uma propriedade eminentemente Ocidental. Considerar essa mesma ideia de racionalidade, contudo, já é em si um ponto delimitador, supondo que ‘razão’ não possua qualquer significado ou variante que torna o conceito polissêmico. Assim sendo, somente aquilo que se ‘parece’, de forma análoga, com o que produzimos, faria ‘sentido’, excluindo de uma perspectiva de diversidade o que não é acessível pela ‘nossa’ racionalidade. Mesmo o mais bem intencionado dos intelectuais pode cair nessa armadilha, que não o permite escapar da gaiola logocêntrica criada por Hegel e defendida ardorosamente por autores como Deleuze e Derrida. O segundo problema, porém, é que disposto a estudar melhor a China – num sensação indescritível de concessão, incômodo ou curiosidade – o estudioso usualmente escorrega na falácia orientalista que ainda campeia a área da Sinologia. A crítica Saidiana [1998] mostrou que construímos orientes imaginários, hierarquizados e subjugados; Irwin [2008] nos mostrou, porém, que sem eles não chegaríamos a qualquer Oriente; Gong [2020] revelou que a Sinologia cumpre esse papel dúbio, de investigar a distorcer a China; mas Vukovich [2019] voltou ao ponto de origem, mostrando que ainda somos colonizados e orientalistas ao falar da China. Estamos de tal maneira contaminados pela hierarquia imaginária denunciada por Said que, quando analisamos qualquer problema histórico relativo à China, temos por hábito assumir que aquilo que os chineses nos dizem só está ‘correto’ se concordar com nossas aspirações e impressões. Quando algum autor chinês nos informa de algo que não concordamos, ou não gostaríamos de ouvir, refutamos a ideia como se fosse irracional ou equivocada, uma impressão incorreta sobre si mesmo. Vukovich analisa muito bem esse fenômeno no episódio da Praça Tiananmen, em 1989; qualquer leitura que divirja da ideia de que os ‘chineses lutavam pela democracia e pelo fim do regime comunista’, tão enfaticamente propalada pela mídia norte-americana, é automaticamente refutada, e interpretada como manipulação. É como se no país mais populoso do planeta ninguém soubesse ou pudesse pensar de forma livre e autônoma; e qualquer conquista no âmbito da ordem pública, da economia, da política, ou seja de qual campo for, é sempre interpretado de forma pejorativa, como resultado de um ‘sistema opressor’ – que somente é assim, por que não funciona do mesmo modo que o Ocidente entende que ele deveria ser [Ninio, 2014].

 

Portanto, acessar ao mundo da historiografia chinesa, com suas formas de pensar história, a persistência da tradição e as mudanças contemporâneas é uma tarefa complexa e de fôlego. Há uma persistente dificuldade em compreender – e precisar – os limites e inter-relações entre os campos de saber na tradição chinesa. Isso implica, diretamente, naquilo que conhecemos como Epistemologia, ou seja, de como se constrói conhecimento.

 

Por conta da visão de estagnação e imobilismo que se aplicou á China – efeito direto do orientalismo, e filtrada erroneamente pelo conceito de longa- duração Braudeliano [mas não sem certa colaboração do próprio] – o pensamento chinês tem sido traduzido a partir de comparações epistêmicas que o situam no passado. A ciência chinesa, com certeza, teve sua gênese no chamado ‘mundo antigo’ [se aceitarmos, igualmente, a periodização ocidental]; mas ela não parou por lá de forma alguma. Sua sequência brilhante de grandes invenções para a Humanidade [Temple, 2006] mostra que os chineses estiveram longe do imobilismo; mesmo assim, a ‘episteme’ chinesa, quando analisada, é alocada num sentido de ‘tradicional’ que, sinonimicamente, acaba sendo entendido como ‘primitiva’ ou ‘antiga’. E, novamente, seus sucessos são lidos através de uma grade racionalista que nos é própria. Tomemos um exemplo: Lawrence Sklar [1992], falando do surgimento da filosofia e da ciência no Ocidente, afirmou que:

 

“A demarcação das ciências naturais em relação à filosofia foi um processo longo e gradual no pensamento ocidental. Inicialmente, a investigação da natureza das coisas consistia numa mistura entre o que hoje seria visto como filosofia [considerações gerais das mais vastas sobre a natureza do ser e a natureza do nosso acesso cognitivo a ele] e o que hoje seria considerado como próprio das ciências particulares [a acumulação de fatos da observação e a formulação de hipóteses teóricas gerais para os explicar]. Se olharmos para os fragmentos que nos restam das obras dos filósofos pré- socráticos, encontraremos não só tentativas importantes e engenhosas para aplicar a razão a questões metafísicas e epistemológicas vastas, mas também as primeiras teorias físicas, simples mas extraordinariamente imaginativas, sobre a natureza da matéria e os seus aspectos mutáveis”.


O que Sklar deixa claro é que, no início do mundo grego, a Filosofia significava Ciência, e o afastamento dos campos ainda embrionava. Ignorando qualquer raiz ancestral do Egito ou do Oriente próximo, e considerando a separação como evolução, o autor demarca o surgimento da ciência racional ali. Milênios depois, buscamos superar esse abismo, por meio da interdisciplinaridade e da transversalidade. O conceito, este ainda está em debate. Nesse sentido, o historiador das ciências Colin Ronan [1996], falando sobre a gênese da ciência chinesa, afirmava que:

 

“Nem sempre é fácil determinar a quantidade de conhecimento científico que foi transmitida do Ocidente para a China, e vice- versa, pois linhas de pesquisa e invenções independentes mas paralelas poderiam aparecer e apareceram, em ambas as partes do mundo. Por exemplo, parece que a ideia de uma "escada de almas", que se encontraria em Aristóteles e Xuanzi [Hsuan Tzu], nasceu independentemente na Grécia e na China, pois, embora as ideias tenham aparecido com cem anos de diferença uma da outra, ocorreram em uma época em que as condições de viagem entre leste e oeste não eram propícias. Além disso, parece que todo o conceito - que constitui realmente uma expressão da complexidade das coisas vivas - poderia ocorrer muita naturalmente a uma pessoa preocupada em explicar e classificar o mundo da natureza. De qualquer maneira, a comunicação entre a China e o Ocidente não era tão rara quanto se poderia imaginar”.

 

Donde se depreende que, aquilo que há de racional na China antiga, o seria pelo seu contato com a ‘razão’ grega. Contrapondo esses dois trechos, poderíamos até pensar que as construções epistemológicas chinesas e ocidentais andaram em paralelo, seguindo um mesmo esquema de interpretação da natureza calcado em um sistema baseado na razão. Todavia, é justamente a ‘divergência das razões’ que criou o afastamento, lançando a China no ‘atraso’[o que não foi de forma alguma real exceto por um breve hiato de tempo entre os séculos 19 e 20].

 

Boaventura de Sousa Santos [2009] nos mostrou que visão de uma única via epistemológica possível pode se transformar em um grande problema interpretativo. As civilizações humanas, em suas multifacetadas expressões, são capazes de construir sistemas epistemológicos cujas bases e fatores variam de forma ampla. Como Boaventura propõe:

 

“Toda a experiência social produz e reproduz conhecimento e, ao fazê-lo, pressupõe uma ou várias epistemologias. Epistemologia é toda a noção ou ideia, refletida ou não, sobre as condições do que conta como conhecimento válido. É por via do conhecimento válido que uma dada experiência social se torna intencional e inteligível. Não há, pois, conhecimento sem práticas e atores sociais. E como umas e outros não existem senão no interior de relações sociais, diferentes tipos de relações sociais podem dar origem a diferentes epistemologias. As diferenças podem ser mínimas e, mesmo se grandes, podem não ser objeto de discussão, mas, em qualquer caso, estão muitas vezes na origem das tensões ou contradições presentes nas experiências sociais sobretudo quando, como é normalmente o caso, estas são constituídas por diferentes tipos de relações sociais. No seu sentido mais amplo, as relações sociais são sempre culturais [intraculturais ou interculturais] e políticas [representam distribuições desiguais de poder]. Assim sendo, qualquer conhecimento válido é sempre contextual, tanto em termos de diferença cultural como em termos de diferença política. Para além de certos patamares de diferença cultural e política, as experiências sociais são constituídas por vários conhecimentos, cada um com os seus critérios de validade, ou seja, são constituídas por conhecimentos rivais. Em face desta reflexão levantam-se três perguntas. Por que razão, nos dois últimos séculos, dominou uma epistemologia que eliminou da reflexão epistemológica o contexto cultural e político da produção e reprodução do conhecimento? Quais foram as consequências de uma tal descontextualização? Haverá epistemologias alternativas? [Santos, 2009]

 

Tomamos como válida, aqui, uma interpretação de um intelectual europeu, mas não eurocentrado. Se a concepção de episteme é um ponto de partida, ela não é nem uma estrada única, nem da mesma forma, e nem chega necessariamente aos mesmos lugares. Por outro lado, ela compreende pontos de interseção que fazem dialogar os saberes em direção a resultados efetivos sobre o real. Aceitamos esse ponto de vista para compreender a necessidade de estudar, de forma renovada, uma epistemologia das narrativas históricas chinesas contemporâneas.

 

Em Outras Lentes para a China’, o sinólogo francês François Jullien salientou a necessidade de modificarmos nossos critérios epistemológicos e filosóficos ao entendimento da mentalidade chinesa – que ainda está, de certo modo, sendo paulatinamente ‘redescoberta’. Até agora, essa civilização foi visitada segundo nossos critérios de entendimento; e se essa é uma condição necessária, posto que somos ocidentais, por outro lado, isso não nos permitiu vislumbrar, com clareza, o cerne da uma ‘mentalidade chinesa’, se for igualmente possível sintetizar seus milênios de experiência em uma concepção de ‘essencialidade sínica’. Por outro lado, da convivência com esses ‘saberes ocidentais’, a China desenvolve a sua própria estratégia epistêmica, como aludido por Boaventura, no nível político, social e cultural:

 

“Com frequência, objeta-se que os chineses administrariam tudo como nós, já que eles planificam como nós, modelizam como nós etc. O que eu reconheço de bom grado. Mas isso não nos deve deixar esquecer que, ao mesmo tempo em que utilizam totalmente os recursos que lhes oferecem nossas coerências, os chineses se reservam a possibilidade de também voltar àquelas que eles teceram há milênios. Graças a isso, agora eles possuem esta vantagem considerável — e que utilizam estrategicamente — que é a de poder cruzar esses recursos” [Jullien, 2006].

 

Com essa ideia em mente, podemos então compreender que uma nova abordagem sobre as narrativas históricas chinesas requisitam uma perspectiva epistemológica diferenciada e mais aberta do que a usual.

 

Introduzindo a questão histórica

No século XII, o filósofo chinês Zhuxi comparava a análise dos textos históricos, calcada no uso da razão, como:

 

“[encontrar] a fonte de um enunciado, que significa identificar a base que o sustenta. É exatamente como construir um edifício; temos que construir bases sólidas, e depois podemos erguê-lo. Se os alicerces não forem sólidos, toda a madeira empregada na construção será inútil, e somente servirá para edificar um prédio tão frágil quanto suas bases”. [Trad. Bueno, 2010]

 

Zhuxi falava do princípio central que rege não só o entendimento do pensamento, mas a sobrevivência da cultura chinesa, a ideia de Li [princípio, fundamento, estrutura]. Para os chineses, a continuidade de seu mundo dependia da manutenção e reprodução das ideias concebedoras de sua existência, mas baseadas, inequivocamente, na observação, na experiência e na efetividade de meios e métodos. Ricardo Joppert, [1998] destacado sinólogo brasileiro, resumiu de forma brilhante esse aspecto:

 

“A constatação dessa supremacia da experiência prática sobre a imaginação teórica, tão essencial para a evolução humana, na Idade da Pedra, jamais abandonou o verdadeiro espírito chinês e iria marcar, definitivamente, a civilização do país de um pragmatismo de base: é da periferia do visível que se parte para o cerne, nem sempre evidente, mas que pode ser atingido se seguir o rumo da realidade, o ritmo das linhas diretrizes que desfazem a trama dos emaranhados... E isso, a todos os níveis da vida. Assim, dessa necessidade prática do homem primitivo evoluiu-se para o pensamento abstrato, mas permanece constante, na China, a ideia de que se parte da realidade, lato sensu, vista e comprovada, para a elaboração teórica, que, num estágio mais maduro vai efetivamente permitir à mente os voos do espírito, sempre, porém, em cordão umbilical com a realidade reveladora.”

 

Essa ‘realidade reveladora’ seria o cerne tanto da reflexão filosófica quanto da busca de eficácia – que nunca se desvincularam em demasia. A China, portanto, testemunhou uma longa experiência histórica na qual, em sucessivos tentames e experimentos, construiu um modo de olhar o mundo, com suas próprias regras e conceitos fundamentais. Sua efetividade ficou provada pela contínua expansão de sua população, de sua cultura, e da destacada resistência de suas tradições. Nesse sentido, as descobertas científicas chinesas revolucionaram a qualidade de vida dessa sociedade. Desde os períodos mais remotos da história, os chineses alcançaram grandes avanços nos mais diversos setores. Cobrindo campos distintos como metalurgia, mecânica, química, agricultura, matemática ou física, os conhecimentos produzidos por seus pensadores conseguiram prover as necessidades dessa civilização.

 

No campo do pensamento, essas raízes são igualmente antigas, porém, dinâmicas. Em torno do século -6, a cultura chinesa estruturava-se em torno de um corpo literário bem definido, que respondia a diversas demandas intelectuais: o Shujing contava a história; o Shijing trazia as poesias, que ilustravam a vida cotidiana; o Yuejing preservava as músicas e cânticos sagrados e profanos; o Liji trazia os rituais, costumes e regras sociológicas; e o Yijing era o manual de ciências [e também fazia o papel de oráculo], compondo assim o quadro que ilustrava uma pessoa ‘Educada’ - o Junzi de que Confúcio falava. Depois, o mesmo Confúcio iria inserir o Chunqiu, as crônicas históricas de sua terra natal, entre esses livros clássicos. O século -6 traria uma reviravolta nesse quadro; premida por uma profunda instabilidade política, a China seria lançada num longo e doloroso processo de conflito interno, que se arrastaria por quase três séculos. Diferente dos filósofos gregos, que reimaginaram seu mundo no melhor momento da história de sua civilização, a virada ética no pensamento chinês se dá diante da iminência de uma crise devastadora. Os pensadores se puseram a pensar em como resgatar a harmonia social e política, em como superar a crise e trazer a razão para iluminar os caminhos [o Dao]. As escolas de pensamento chinesa que hoje conhecemos surgiram nesse período, e desenvolveram-se ao longo da história, disseminando-se, se entrecruzando, criando sínteses criativas. Um modelo como esse não tem paralelo direto no Ocidente, exceto pelas religiosidades; e por isso, nossos referenciais de comparação precisam ser readaptados.

 

O choque moderno

A China não foi infensa a influências externas [como no caso do Budismo], mas as absorveu e transformou em formas chinesas, dando-lhes um caráter novo. O impacto das teorias ocidentais, após o século 19, não foi diferente – embora a presença colonial tenha sido muito mais agressiva e exigente do que a gradual entrada de ideias ao longo do período imperial chinês. O despertar para o mundo contemporâneo foi lido por reformadores como Kang Youwei ou Liang Qichao, que buscaram preservar o Estado tradicional. O advento da república – um modelo político importado – disseminou a presença das teorias estrangeiras entre os intelectuais, e uma sequencia de episódios desastrosos, que culminaram com a vitória do marxismo em 1949, lançaram novas bases sobre o pensamento chinês e a escrita da história. Mesmo assim, esse processo foi permeado pela força das tradições adaptativas, que incluíram a maneira como os chineses sinizaram as teorias socialistas. Arif Dirlik [1985] mostrou como a historiografia chinesa modificou substancialmente as ideias marxistas, de tal forma que muitas delas são interpretações praticamente inovadoras e bastante diferentes sobre os conceitos originais.

 

Desde a década de 1980, as transformações políticas e econômicas na China se refletiram diretamente na produção historiográfica, modificando linhas e tendências [Bueno, 2016]. Todavia, é ascensão do país no plano globalizado do século 21 que trouxe reinterpretações substanciais em sua escrita histórica, congregando elementos diversos que pedem um esforço interpretativo de nossa parte – implicando na busca da alternativa epistêmica. Para concluirmos, queremos citar três autores recentes, de relevo no cenário intelectual chinês, que podem exemplificar o que afirmamos ao longo de nosso texto: Wang Hui, Gao Mobo e Jiang Qing.

 

Wang Hui e Gao Mobo fazem parte de uma chamada ‘nova esquerda’, que tem buscado reinterpretar o passado recente chinês à luz de discursos originais e pluriteóricos. Nesse sentido, suas abordagens são bem distintas. Wang Hui defende que a efetiva modernização da China começou após o governo de Deng Xiaoping, recolocando o país em um novo contexto mundial. Em sua visão, as adaptações das teorias marxistas ao novo contexto contemporâneo, a flexibilidade em relação às dinâmicas globais e o abandono das posturas radicais da época da Revolução Cultural permitiram ao país superar suas dificuldades internas, o atraso tecnológico e econômico [Wang, 2010]. Nesse sentido, Hui propõe uma abordagem que dialoga com as teorias e ideias ocidentais de mercado, liberdade e governança, mas defende uma originalidade do pensamento chinês frente à esses valores. A flexibilidade do comunismo chinês garantiu-lhe sua sobrevivência e características próprias. O desafio seria descolonizar o pensamento chinês sem oscilar do eurocentrismo a um asiocentrismo: ‘A crítica ao eurocentrismo não deveria tentar confirmar o asiacentrismo, mas eliminar a lógica egocêntrica, exclusiva e expansionista da dominação. [...] Por isso, as novas representações da Ásia devem ultrapassar os objetivos e os projetos dos movimentos socialistas e de libertação nacional do século 20. Nas circunstâncias históricas atuais, elas devem refletir sobre os projetos históricos não realizados desses movimentos’ [Wang, 2005].

 

Gao Mobo vai em sentido inverso, afirmando que uma característica essencialista da civilização chinesa permitiu a ela continuamente desenvolver-se após as crises do século 20. Gao defende que o período Maoísta, bem como a revolução cultural, foram necessários a renovação do plano político chinês, estruturando um sistema produtivo e intelectual auto-sustentável e independente [Gao, 2008]. Nessa visão, períodos da história recente da China como a grande fome ou as perseguições a intelectuais precisam ser redimensionadas, como partes integrantes de um longo processo histórico que aperfeiçoou as características políticas de uma nova China:

 

“Os primeiros e segundos 30 anos da RPC são geralmente caracterizados por historiadores, comentaristas e mídia dentro e fora da China através de uma dicotomia entre uma China fechada e uma China aberta, entre uma economia planejada e uma de mercado, entre uma pobreza extrema e a melhoria substancial do padrão de vida, entre políticas ditatoriais e um autoritarismo brando ou duro. Em minha opinião, essa dicotomia reflete uma pobreza de recursos discursivos que não leva em conta a variedade histórica e espacial e a vitalidade da China, e também ignora o papel que o povo chinês desempenhou na formação da história diante de nossos olhos. [...] Esse desenvolvimento econômico é uma jornada consequente e um resultado lógico das bases lançadas justamente na época de Mao, que incluem uma capacidade industrial orgânica graças à qual a China é capaz de produzir qualquer coisa [...] Mas a importância das bases estabelecidas na época de Mao, tanto em termos de hardware industrial e agrícola quanto da perspectiva de software, nunca pode ser enfatizada o suficiente: o progresso humano” [Gao, 2019].

 

Ademais, ele pressupõe que uma mudança mundial, baseada no papel do Estado, não foi totalmente abandonada – a China estaria cumprindo a etapa de formar um quadro burguês e concorrencial que, no futuro, seria abandonado novamente em prol de uma versão finalmente completa de Comunismo estatal e proletarizado.

 

Jiang Qing vai em outra direção, propondo uma reação tradicionalista. Em sua proposta, um novo modelo de Confucionismo irá substituir o Comunismo, construindo uma nova forma de república constitucional confucionista [2003]. Esse novo arranjo ideal baseia-se no resgate dos elementos das tradições culturais chinesas, que dão a sustentação histórica da civilização chinesa. Segundo ele, o marxismo cumpriu uma função histórica episódica na trajetória do país, mas sua sobrevivência depende das transformações e adaptações feitas pelos próprios chineses – e nesse sentido, o alicerce cultural da civilização, que determina esses processos, é essencialmente a atitude racionalizante do Confucionismo. Consequentemente, a retomada dessa doutrina na estrutura política do país seria um processo natural, repetido e constatado ao longo das eras históricas chinesas:

 

“Porém, além de pensar em questões "chinesas e ocidentais", estou pensando mais em questões "antigas e modernas". O pensamento sobre as questões "chinesas e ocidentais" resolve o "caráter chinês" do modelo de desenvolvimento político da China, enquanto o pensamento de questões "Antigas e Modernas" resolve a "universalidade" do modelo que liga o desenvolvimento político da China; em outras palavras, pensar as questões "chinesas e ocidentais" é fazer com que o modelo de desenvolvimento político da China retorne à sua civilização única. O pensamento sobre questões "antigas e modernas" faz com que o modelo de desenvolvimento político da China reflita um valor absoluto universal e eterno. Se você usar termos filosóficos ocidentais, o pensamento de questões "chinesas e ocidentais" pertence ao particularismo, e o pensamento de questões "antigas e modernas" pertence ao universalismo. O primeiro resolve a "singularidade" do modelo de desenvolvimento político da China na autoidentidade da civilização, enquanto o último resolve a "universalidade" do modelo de desenvolvimento político da China no valor universal da civilização. Esses dois problemas são os maiores problemas enfrentados pelo desenvolvimento político da China no século passado, e os maiores problemas aos quais os intelectuais chineses devem responder no século futuro. Claro, são os maiores problemas que o confucionismo chinês deve resolver no século futuro. Portanto, minha proposta de "Confucionismo Político" é justamente resolver esses dois grandes problemas, isto é, resolver os problemas "chineses e ocidentais" e os problemas "antigos e modernos" [Jiang, 2017].

 

Como podemos observar, nesses três casos, o uso das teorias políticas e intelectuais importadas são utilizada – e lidas – de acordo com o resgate de um discurso ‘essencialista’ da cultura chinesa. Hui entende que a modernidade ajudou a mudar a China, mas a sociedade mantém uma leitura própria dessas transformações; Gao acredita que o substrato de todas essas mudanças é uma sinidade autêntica, que transformou o marxismo e o renovou para o país e o seu futuro; por fim, Jiang retoma claramente o passado para a construção de um novo projeto de futuro, prevendo uma renovação das tradições [numa postura classificada como ‘conservadora’; mas o que ele quereria conservar com essas mudanças?]. Nos três casos, a autenticidade da mentalidade chinesa é a chave para a flexibilização, adaptação, mudança e sucesso; e todas elas recorrem, igualmente, a uma releitura da história para embasarem suas propostas. Contra as previsões teóricas da racionalidade ocidental, a eficácia do pensamento sínico reside, justamente, no emprego dos elementos de sua cultura em alternativa ao pensamento dominante eurocentrado. A ‘biculturalidade’ chinesa, como Jullien bem apontou, deixa claro que uma renovada consciência sobre o papel da cultura tradicional tem sido o caminho para a reestruturação do país, de sua cultura e história. Para isso, por fim, é necessário então buscar compreender os elementos conceituais que nos desviam de nossa episteme, para embarcar no mundo das mentalidades chinesas – e esse desvio, crucial, pode nos levar a uma nova concepção de escrita histórica e reinterpretação do passado.

 

O movimento de criação e evolução da historiografia chinesa deve ser entendido, pois, como algo que atravessa esses milênios de história e continuidade, e que continua a se reinventar, dentro de um dinamismo próprio que lhe dá autonomia e originalidade. Algo que, por si só, merece um olhar cuidadoso.

 

Referências

André Bueno é Professor de História Oriental da UERJ e diretor do Projeto Orientalismo, atuando na área da Sinologia, pensamento clássico chinês e Confucionismo.

 

Bueno, André História da China Antiga. União da Vitória: Ebook, 2007.

 

Bueno, André. ‘Os desafios da historiografia chinesa na modernidade’ in Revista Sobre Ontens, v.1, 2016.

 

Bueno, André. Cem Textos de História Chinesa. União da Vitória: FAFIUV –Kaygangue, 2010.

 

Dirlik, Arif. ‘The universalisation of a concept: ‘feudalism’ to ‘feudalism’ in Chinese Marxist historiography’ in Journal of Peasant Studies, 1985, p.197-227.

 

Gao, Mobo. ‘La forma della Storia e il ruolo ignorato del popolo cinese’ in Il Manifestto, 25 de setembro de 2019.

 

Gao, Mobo. The Battle of China’s Past: Mao and the Cultural Revolution, London: Pluto Press, 2008.

 

Irwin, Robert. Pelo amor ao saber: os orientalistas e seus inimigos. São Paulo: Record, 2008.

 

Jiang, Qing 政治儒学具有普适性,不是排斥西方的极端原教旨主义— —答美国明克胜教授问 in 申论政治儒学, [台湾] 新北: 养正堂文化事业股份有限公司, 2017.

 

Jiang, Qing. 政治儒學:當代儒學的轉向、特質與發展, 2003.

 

Joppert, Ricardo. China: Esboço sobre uma civilização de acordo com sua própria filosofia da História. Cehvet, 1998.

 

Jullien, François. ‘Outras lentes para a China’ in Le Monde Diplomatique, 1 de outubro de 2006.

 

Ming, Dong Gu. ‘Sinologismo, visão de mundo ocidental e história chinesa’ in Bueno, André [org.] Sinologia Hoje. Rio de Janeiro: UERJ/Proj. Ori., 2020.

 

Ninio, Marcelo. ‘China fez lavagem cerebral, diz testemunha do massacre da praça da Paz Celestial’ in Folha de São Paulo, 02 de junho de 2014.

 

Ronan, Colin. História ilustrada da ciência de Cambridge. Rio de Janeiro: Zahar, 1986, vol. 1.

 

Said, Edward. Orientalismo: a invenção do oriente pelo ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

 

Santos, Boaventura. Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina/CES, 2009.

 

Sklar, Lawrence, Philosophy of Physics. Oxford: Oxford University Press, 1992. Trad. Desidério Murcho.

 

Temple, Robert. The Genius of China. Londres: Carlton, 2006.

 

Vukovich, Daniel. ‘Sociedade incivil: Orientalismo e a Praça Tiananmen em 1989’ in Revista Ópera, 26 de junho de 2019.

 

Wang, Hui. ‘A reinvenção da Ásia’ in Le Monde Diplomatique, 1 de fevereiro de 2005.

 

Wang, Hui. 亞洲視野:中國歷史的敘述. Oxford: Oup, 2010a.

 

Wang, Hui. The End of Revolution: China and the Limits of Modernity. London: Verso, 2010b.

3 comentários:

  1. Sempre é um prazer intelectual ler seus textos, prof. Andre.
    Sobre uma consideração mais séria de epistemes chinesas na Filosofia Sociologia ou na História, isso já é realidade em boa parte do mundo, inclusive no Brasil - em boa medida pelos seus esforços. Claro que tal consideração ainda é modesta, porém, já é presente.
    No entanto, na linha da atual polêmica levantada pelo livro da Pasternak e Orsi, me surgiu uma dúvida sobre um caso. No início do texto você disse: "os chineses estiveram longe do imobilismo; mesmo assim, a ‘episteme’ chinesa, quando analisada, é alocada num sentido de ‘tradicional’ que, sinonimicamente, acaba sendo entendido como ‘primitiva’ ou ‘antiga’".
    A Medicina Chinesa (MC) muitas vezes (auto)denominada de "medicina tradicional chinesa" é tratada como inválida, e até mesmo chamada de "pseudociência". Sabemos, desde pelo menos Needham, que há inúmeras contribuições históricas da MC para a história da Medicina como um todo, como as primeiras versões de vacinas. Contudo, ainda que na China e Taiwan já existe o movimento de hibridação dos métodos científicos modernos com a MC, parece que boa parte dos brasileiros envolvidos com a MC, profissionais ou pacientes, nutrem a expectativa de uma medicina "tradicional", logo, não moderna (talvez numa atitude orientalista). Como, então, a MC poderia ser estudada e praticada em sua episteme singular, sendo levada a sério, e, ao mesmo tempo, não caindo em atitudes pseudocientíficas que contrariam os métodos científicos que visam a promoção da saúde verificável?
    Em outras palavras: como estudar e praticar a MC sem cair em orientalismos de um China "tradicional" imóvel, respeitando os princípios científicos que fundamentam a área acadêmica/profissional da Saúde e, ao mesmo tempo, considerando a episteme singular da MC?

    Matheus Oliva da Costa

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Saudações Matheus, é sempre bom ver sua presença no evento! =D Em relação a medicina, a pergunta é complicada, até mesmo para os que atuam na China. Há uma clara tensão entre o reconhecimento via academia ocidental [método de prova, etc] e a autoridade histórica validada pela experiência [que ora se comprova pela 1o caminho, ora se comprova por outros, ora não se valida nesses critérios]. Uma saída que tem sido contemplada é uma diferenciação mesmo entre MTC [medicina tradicional chinesa, inserida no critério de validação ocidente-China] e MMC [medicina clássica chinesa, pautada nas tradições e validada por suas próprias epistemes]. Nessa hora, caímos em um terreno movediço, pois associar 'processos de cura' pode ser entendido tanto como 'medicina' quanto 'religião' em nossas epistemes, e dependendo daquele que busca. Por outro lado, como brasileiros, estamos baseados em ideias afro-asio-euro-indigenas, ou seja, que vão filtrar nossas formas de diálogo intercultural; na prática isso significa que, de uma forma ou de outra, os estudos sobre outras culturas [e suas tradições] irão responder a demandas nossas, dentro de critérios que usualmente adotamos. É desse diálogo que vai nascendo algo novo [eletroacupuntura, por exemplo, é resultado disso], assim como aos poucos vamos nos atraindo pelo pensamento e filosofia chinesas... =)
      grande abraço!

      Excluir
    2. Adorei a resposta, me colocou novas perspectivas a serem pensadas e outras perspectivas a serem repensadas. Obrigado!

      Excluir

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.