UMA HISTÓRIA DA ARQUEOLOGIA NA REGIÃO DE ISRAEL, por Marlon Barcelos Ferreira

 

Nesta pesquisa busca-se analisar de forma resumida sobre o início e o desenvolvimento da ciência arqueológica na região do atual Estado de Israel, no Oriente Médio. Ao mesmo tempo, procura-se inferir como o desenvolvimento da ciência arqueológica se relaciona diretamente com as condições políticas, econômicas e sociais na qual ela esta inserida e se desenvolve.

 

A região do atual Estado de Israel corresponde a um território que ao longo dos últimos milênios foi ocupada por inúmeros reinos e povos e que deixaram uma profunda contribuição cultural e religiosa à história daquela região e do mundo. Ao mesmo tempo, é uma região marcada por inúmeros conflitos que impactam o cenário político internacional e geopolítico atual. Portanto, torna-se cada vez mais necessário, estudos direcionados a região do Oriente Médio e sua divulgação no Brasil, para melhor compreensão daquela região e de suas influências em nossa história, cultura e religião. 

 

A Região de Israel e o início da Ciência Arqueológica   

A região geográfica do atual Estado Israelense se constitui atualmente em uma região de importância geopolítica e consequentemente palco de inúmeros conflitos e disputas. A região conheceu diferentes culturas paleolíticas e neolíticas e foi palco do surgimento dos primeiros assentamentos urbanos do mundo antigo [Giordani, 1963]. Uma região que também foi palco do surgimento de importantes religiões e que continua atualmente sendo reduto de peregrinações e cenário de lugares sagrados para as três maiores religiões monoteísta do mundo [Giordani, 1963].

 

Durante muito tempo, as principais fontes de estudo sobre essa região disponíveis para os estudiosos europeus, eram os antigos autores gregos e principalmente os livros sagrados. Afinal, “A Bíblia é a fonte por excelência para o conhecimento da História do Povo Hebreu. A historiografia hebraica ocupa o primeiro lugar entre a literatura congênere dos povos orientais.” [Giordani, 1963, p. 229] 

 

Nos séculos XV ao XVIII, enquanto a Europa vivenciou o desenvolvimento do antiquarismo e consequente apelo aos elementos da cultura material, em especial do mundo Greco-romano, na região de Israel, que era parte do antigo Império Otomano, o antiquarismo não se propagou em relação aos elementos da cultura material dos povos que ali habitaram na antiguidade [Trigger, 2004]. Afinal, os elementos da cultura material naquela região, tinham valor principalmente pelo lado religioso. Sendo palco de acontecimentos religiosos importantes, a região era fonte de peregrinação principalmente de Cristãos, mais também com locais considerados sagrados para o Islã e Judaísmo: 

 

“A partir do século IV a fé cristã passou a basear-se em relíquias, particularmente aquelas que estavam relacionadas com a Cruz de Cristo, mas incluso também todos os outros objetos relacionados a ele. Tal movimento se intensificou com as Cruzadas, que foi estabelecida por meio de conflitos religiosos, não apenas entre católicos romanos contra muçulmanos, mas também contra judeus e qualquer irmandade cristã que divergisse em questão de tanto de denominação quanto de lealdade.” [Funari, 2018, p.595]

 

Ao longo dos séculos XVIII e XIX, o contato e a presença europeia se intensificaram como consequência do imperialismo europeu e a expansão do poder econômico dos países europeus ao redor do mundo. Mesmo em uma região dominada pelos mulçumanos, a presença ostensiva dos europeus e ao interesse crescente sobre o Egito e os povos e eventos bíblicos, levou ao desenvolvimento e a ampliação dos estudos relacionados à história e cultura relacionadas à região da Palestina e de grande parte do Oriente Médio:

 

“Enquanto o Egito e a Mesopotâmia produziam descobertas arqueológicas espetaculares, que por si só provocavam grande interesse público, as descobertas relacionadas com a Bíblia, que pareciam confirmar os relatos das escrituras, garantiam um vasto apoio à pesquisa arqueológica realizada nesses países, assim como na Palestina.” [Trigger, 2004, p.130]

 

Temos que ao longo do século XIX, inúmeros arqueólogos e diversos pesquisadores começaram a se debruçar sobre os diversos sítios arqueológicos e construções antigas espalhadas pelas regiões correspondentes à região de Israel, em um período marcado pelo declínio político do antigo Império Otomano. Ao mesmo tempo, esses estudiosos e arqueólogos estrangeiros, ajudaram a estruturar do ponto de vista teórico, metodológico e institucional, a arqueologia na região do Oriente Médio: 

 

“A arqueologia também foi apresentada ao Oriente Próximo pelos europeus que criaram instituições de pesquisa e ensino em regimes coloniais (se não de direito, de fato). Em particular, eruditos ocidentais sentiram-se atraídos para o Egito, Iraque e Palestina pelos vestígios remanescentes de antigas civilizações que tinham especial interesse para os europeus por serem mencionadas na Bíblia.” [Trigger, 2004, p.176]

 

Assim, foi se desenvolvendo uma arqueologia centrada nos escritos bíblicos e principalmente conduzida por arqueólogos europeus, em um período em que a arqueologia na Europa se institucionalizava e ganhava métodos e conceitos dentro de uma perspectiva científica:

 

“Pode-se ver que a Arqueologia Bíblia começou tardiamente e, com o passar do tempo, se tornaria mais controversa. Enquanto outros ramos da ciência estavam a serviço dos Estados-Nação, do imperialismo e do conhecimento objetivo do passado, a Arqueologia Bíblica era desde seu princípio um modo de utilizar a Bíblia como um guia para encontrar evidências da realidade por detrás dos episódios bíblicos. Melhor dizendo, como ilustração. A cultura material do passado antigo contribuiu para transformar a Arqueologia em uma atividade tanto de fé, como de razão. Tal ciência trata-se de uma disciplina iluminadora, e o motivo está em suas raízes. Medidas, datação, classificação, são todos procedimentos acadêmicos, difíceis de aprender e colocar em prática. É, portanto, incontestável que a Arqueologia depende da razão, e não da fé. De qualquer maneira, também havia interesses e imperativos nacionalistas, imperialistas e religiosos.” [Funari, 2018, p.593]

 

A arqueologia no século XX

Após a Primeira Guerra e o fim do Império Otomano. A arqueologia desenvolvida na região passou a ser fortemente influenciada, pelo modelo Histórico-Cultural em expansão na Europa e trazida por arqueólogos e pesquisadores estrangeiros que vieram pesquisar e realizar escavações no território do antigo Império Otomano, e que passou para o controle das potencias europeias no final da Primeira Guerra. A arqueologia histórico-cultural influenciou a arqueologia de várias regiões do mundo e:

 

“O modelo teórico - metodológico que embasava a arqueologia era o histórico-cultural e que entendia que cada nação seria composta de um povo (grupo étnico, definido biologicamente), um território delimitado e uma cultura (entendida como língua e tradições sociais)”. [Funari, 2013, p.48].

 

Assim, esse modelo teórico e metodológico adotado pelos arqueólogos se alinhou com as pesquisas históricas que também estavam se desenvolvendo no Oriente médio e ajudou a alimentar o nacionalismo ao longo do século  XX na região. Assim, entendemos que na Palestina e em Israel, a arqueologia desempenhou também um papel político ao incentivar e a de promover a identidade e unidade nacional. Ressaltamos que o patrimônio arqueológico é entendido como um bem material concreto e assim um objeto de valor não apenas material, mas principalmente simbólico para o grupo social na qual está inserido, caso não seja, o material é descartado como lixo. Ao realizar o seu trabalho, o arqueólogo assume a responsabilidade de produzir conhecimento sobre os vestígios materiais ou artefatos escavados e que a partir daí assumem um papel importante na formação identitária e memorial dos grupos ou indivíduos envolvidos, pois como salienta Pedro Paulo Funari:

 

 “A criação e a valorização de uma identidade nacional ou cultural relacionam-se, muitas das vezes com a arqueologia. Nesse caso, predominam com frequência os interesses dos grupos dominantes mediados pela ação do Estado”. [Funari, 2003, p.101]

 

Dentro desta perspectiva, ressaltamos assim, que arqueologia (objeto, teoria e metodologia) enquanto ciência está submetida ao contexto social na qual ela está inserida, pois:

 

“Qual a relação entre a arqueologia, em geral percebida como uma ciência neutra, e a política, ou seja, a esfera das relações de poder? A arqueologia é sempre política, responde a necessidades político-ideológicas dos grupos em conflito nas sociedades contemporâneas”. [Funari, 2003, p.100]

 

Neste sentido, também o arqueólogo Bruce Trigger ressalta a relação entre a ciência arqueológica e o sistema político e social na qual ela esta inserida:

 

“Arqueólogos acreditam que, porquanto os achados de suas disciplinas são consciente e inconscientemente, vistos como tendo implicações quer para o presente, quer para a natureza em geral, as condições sociais variáveis influenciam não apenas as questões abordadas como também as respostas que os arqueólogos se predispõem a considerar aceitáveis”. [Trigger, 2004, p.12].

 

Portanto, não devemos pensar a ação dos arqueólogos de forma autônoma. Eles estão inseridos dentro de redes de sociabilidade e de uma estrutura que em suas mais diversas instâncias estava ligada ao poder dominante da época. Produzindo um discurso cientifico e que lhes davam uma legitimidade perante a sociedade, respaldando assim, muitas das vezes a visão de mundo da classe dominante.

 

O desenvolvimento das pesquisas arqueológicas ganharam impulso na região com o fim do Império Otomano, e principalmente com a formação do Estado de Israel. Assim, a arqueologia se diversificou com o incremento de estudos também voltados ao passado hebraico e realizados por arqueólogos e institutos de pesquisas israelenses. Sendo assim, no Estado de Israel, a pesquisas arqueológicas se consolidaram e foram guiadas pela perspectiva de uma  arqueologia histórico-cultural:

 

“A forte ênfase bíblica na arqueologia israelita e na ainda mais antiga arqueologia palestina "ajudou a criar uma disciplina individual sensivelmente não afetada por concepções metodológicas externas" (Hanbury-Tenison 1986:108). Na sua maioria, os arqueólogos israelenses são treinados em pesquisa bíblica e histórica e devotam muito tempo ao estudo da história, da filologia e história da arte. A arqueologia paleolítica é bem menos importante e a influência da arqueologia antropológica limita-se, geralmente, ao incentivo ao uso de apoios técnicos na análise de dados. Relativamente pouca atenção é

dada à arqueologia dos períodos cristão e islâmico (Bar-Yosef & Mazar, 1982). Embora a maioria dos israelenses veja de modo positivo a pesquisa arqueológica, alguns grupos religiosos ultraconservadores se opõem a ela, alegando que perturba antigos sepultamentos hebreus (Paine, 1983).”[Trigger, 2004, p.227]

 

Nesse sentido, se desenvolveu em Israel uma arqueologia nacionalista e muito interligada com os projetos políticos israelenses:

 

“No moderno Estado de Israel a arqueologia tem um papel bem diferente: confirmar os laços entre uma população recém-chegada e seu passado antigo. Conferindo um teor de realidade concreta às tradições bíblicas, ela exalta a consciência nacional e fortalece as reivindicações de colonos israelitas de direitos sobre as terras que estão ocupando. Em particular, Massada, lugar da última resistência dos zelotes frente aos romanos, em 73 d.C., tornou-se um monumento de grande valor emocional e cerimonial, como símbolo do desejo de sobreviver do novo Estado israelita. Massada foi um dos mais grandiosos projetos arqueológicos empreendidos por arqueólogos israelitas e desfrutou de

vasta publicidad” [Trigger, 2004, p.227]

 

Nos últimos anos, a ciência arqueológica ligada à região de Israel tem sido palco de inúmeros debates e mudanças teóricas e metodológicas. Nesse sentido, se acirrou um grande debate nos meios arqueológicos. De um lado, autores que enxergam o papel da arqueologia enquanto meio de provar os eventos bíblicos e do outro lado, autores que enxergam a arqueologia apenas como um dos meios disponíveis para se estudar os diversos os aspectos ligados ao referido período histórico:

 

“A arqueologia direcionada aos estudos em Israel-Palestina, nos últimos anos, passou por uma revisão do nome, pretendendo certa autonomia frente às correntes acima  citadas,  deixou-se  de  falar arqueologia  bíblica para  se  falar arqueologia  da Palestina ou arqueologia do médio-oriente. Essa mudança de “nome” visa deslocar o exercício   da   ciência   arqueológica,   em   Israel-Palestina,   das   convicções   sejam religiosas  (maximalistas)  ou  não-religiosas  (geralmente  minimalistas),  tendo  como proveito  uma  autonomia  para  a  pesquisa.  Desde  uma  perspectiva  autônoma,  a arqueologia  passa  a  se  situar  num  lugar  bastante  relevante  nas  pesquisas  sobre  a história de Israel.” [Nascimento, 2021, p.139]

 

Apesar de esses debates terem provocados novas reflexões sobre o papel da arqueologia e trazidos novas leituras arqueológicas sobre o passado da região, a ciência arqueológica na região segundo Pedro Paulo Funari, ainda continua muito marcado pelas questões políticas e religiosas:

 

“A Arqueologia tem sido relevante tanto para os fieis como para os estudiosos religiosos, e mais ainda para aqueles que se preocupam com reivindicações territoriais e culturais. Esse fator continua a ser o mais expressivo e não há sinais de que tal movimento se reduzirá. Pelo contrário: os conflitos no Oriente Médio - incluso aqueles que foram baseados ou agravados por conhecimentos e princípios religiosos - têm se expandido no início do século 21.” [Funari, 2018, p.596]

 

Considerações Finais

Ao longo deste breve trabalho procuramos realizar um pequeno levantamento e algumas considerações acerca de alguns pontos importantes sobre o desenvolvimento da ciência arqueológica na região do Estado de Israel e Palestina. Uma arqueologia que surgiu e se desenvolveu em um contexto marcado pela visão religiosa e que logo depois se aproximou e também ajudou a alimentar um movimento nacionalista que levou a independência e a afirmação do Estado de Israel no século XX. Destacando assim, a forma como a ciência arqueológica se relaciona diretamente com as condições políticas e sociais na qual ela esta inserida na região do Estado de Israel.

 

Referências

Marlon Barcelos Ferreira é especialista em arqueologia (IAB-UNIREDENTOR), Mestre em História Social pela PPGHS/UERJ e aluno de Doutorado do PPGHS/FFP/UERJ - Email: marlonbf@hotmail.com

 

FUNARI, Pedro Paulo. Arqueologia. São Paulo: Contexto, 2003.

 

GIORDANI, Mario Curtis. História da Antiguidade Oriental. Petrópolis: Editora Vozes, 1963.

 

FUNARI, Pedro Paulo. “A arqueologia a serviço da fé e da ciência.” In HERÓDOTO,  v. 3, n. 1, Março, 2018. p.588

 

NASCIMENTO, Abimael Francisco do. “História de Israel: desafios do ensino a partir da arqueologia. In KAIRÓS: REVISTA ACADÊMICA DA PRAINHA, v.17, n.1, 2021, p.129

 

TRIGGER, Bruce. História do Pensamento Arqueológico. São Paulo: ODYSSEUS, 2004.

7 comentários:

  1. Anna Maria Litwak Neves8 de agosto de 2023 às 11:00

    Bom dia Marlon. Primeiramente parabéns pelo texto e pelo tema, tenho muito interesse no assunto.
    Gostaria de saber, se for possível você responder, como se estrutura o currículo para formação de arqueólogos nas universidades em Israel? Ainda é um currículo eurocêntrico em termos de metodologia de pesquisa? Existem debates acadêmicos nesse sentido? Desde já, grata!

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    1. Boa tarde Anna. Bem, com relação ao currículo não entrei nessa pesquisa, mas, a influência europeia e americana é forte apesar de nos últimos tempos tem se discutido essas questões. Como no nosso próprio país, mas como exemplo do debate, temos a adoção do termo arqueologia Palestina. Mas são debates intensos e muito iníciais ainda. Obrigado

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  2. Boa tarde, em primeiro lugar parabéns pelo trabalho desenvolvido. Há influência do trabalho de Israel Finkelstein nessa forma de se ver e fazer arqueologia nos sítios arqueológicos do Estado de Israel nos dia de hoje? Como você avaliaria essa influência?
    Fabio Machado do Nascimento

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    1. Boa noite Fabio. Obrigado pelas palavras. Israel Finkelstein é um nome importante e ativo da arqueologia de Israel e com importantes trabalhos. Com certeza influencia a arqueologia local com seus trabalhos e leituras sobre a arqueologia e a história antiga de Israel. Agora avaliar essa influência não conseguiria mensurar esse pergunta. Obrigado Marlon Barcelos Ferreira

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  3. Parabéns pelo texto, Marlon Ferreira. Eu fiquei curiosa a respeito de um aspecto mencionado no texto: as reações de alguns grupos da sociedade israelense à Arqueologia. Eu gostaria que você comentasse mais um pouco sobre como a reação negativa ou oposição de alguns grupos religiosos ultraconservadores afeta a consecução das pesquisas e investigações arqueológicas. Esses grupos conseguem impedimentos legais, institucionais, ou essa oposição não se efetiva como um obstáculo real?
    Alaide Matias Ribeiro

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    1. Boa noite. Obrigado Alaide. Bem, a história e a arqueologia são ciências que tratam de temas sensíveis. Certos grupos ultraconservadores não aceitam determinadas leituras do passado e muitas vezes as escavações são vistas como profanações a determinados lugares. Assim, existe um embate e até mesmo disputas judiciais e etc. Obrigado Marlon Barcelos Ferreira

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