UM ENTERRO CELESTIAL NEM DIURNO E NEM NOTURNO, MAS CREPUSCULAR: UMA ANÁLISE DA OBRA XINRAN À LUZ DO IMAGINÁRIO DURANDIANO, por Jander Fernandes Martins e Vitória Duarte Wingert

 


Para começo de conversa...

O presente artigo analisa uma das obras mais famosas da renomada autora chinesa que ganhou destaque internacional por suas obras literárias que exploram questões sociais, culturais e históricas da China contemporânea, a saber, Xinran. Assim, o presente artigo dá continuidade ao empreendimento realizado, alhures, pelos autores. (Wingert; Martins, 2018).

 

Nesse sentido, aqui, nos debruçamos analiticamente sobre outra obra da autora, na perspectiva da Teoria Geral do Imaginário de Gilbert Durand (2002). Nosso objetivo é mostrar que, apesar do enredo, contexto e situação vivida pelos personagens (reais) do livro, serem e estarem imersos em uma cultura chinesa e tibetana, há traços que indicam que, na perspectiva durandiana, as manifestações culturais vividas (personagens) são marcadas por uma estrutura noturna, enquanto sua face narrada (autora) parece estar estruturada diurnamente, logo, como síntese deste processo cultural, tem-se a narrativa em uma estrutura dramática, portanto, noturna sintética.

 

Dentre as ene possíveis motivações que justificariam a escolha, elegemos essa obra como objeto de análise, uma vez que, tanto quanto as outras obras da autora (Xinran, 2007; 2009), não somente é posto em xeque a representação e posição das mulheres orientais, como também, relações entre humanos e não-humanos. (Wingert; Martins, 2018)

 

No entanto, apesar de ser outra obra da autora que impele a desconstrução dessa imagem pitoresca de um “oriente inventado” (Said, 2007). Aqui, toma-se o fenômeno que deu vida para a narrativa, como objeto analisado, um enterro celestial, portanto, “morte” perspectivada (tibetanos, protagonista, autora do livro), à luz da Teoria do Imaginário (Durand, 2002).

 

Xinran, uma mulher diurna em um contexto noturno

Como sugere o subtítulo, apresentar a autora torna-se imperativo no presente trabalho. Apesar de adotar o pseudônimo Xinran, seu nome de nascimento é Guo Xinran, nasceu em Pequim, China, em 1958. (Wingert; Martins, 2018) A obra "Enterro Celestial" ("Sky Burial"), é um de seus livros mais famosos, publicado originalmente em 2004, é outro livro importante de Xinran. Nessa obra, Xinran conta a história de Shu Wen, uma mulher chinesa que se aventura em uma jornada pelo Tibete em busca de seu marido, um médico militar desaparecido. (Xinran, 2004) Ao longo de sua carreira literária, Xinran continuou a escrever sobre questões relacionadas às mulheres e à sociedade chinesa, lançando outras obras significativas, como "As boas mulheres da China” (2004) e “Testemunha da China: vozes de uma geração silenciosa” (2009).

 

Deste modo, Xinran é considerada uma voz importante na literatura contemporânea chinesa, trazendo à tona histórias e experiências pessoais que muitas vezes são negligenciadas ou suprimidas. Sua abordagem sensível e empática ao retratar as vidas das mulheres chinesas contribuiu para uma maior compreensão das complexidades sociais e culturais do país.

 

Assim, para entender o contexto social e cultural em que Xinran escreveu "Enterro Celestial", é importante considerar tanto a história da China quanto a situação específica do Tibete durante o período em que o livro se passa. A China passou por grandes transformações sociais e políticas ao longo do século XX. Durante a Revolução Cultural (1966-1976), o país experimentou um período de intensa agitação política e profundas mudanças sociais, fruto da implementação das políticas comunistas lideradas por Mao Zedong. Não obstante, a questão da disputa territorial acerca do Tibete.

 

Nesse sentido, "Enterro Celestial" foi publicado em 2004, mas a história do livro se passa nas décadas de 1950 e 1960, logo, está inscrito e marcado por eventos significativos na história chinesa. No livro, Xinran explora a história de Shu Wen, que se aventura no Tibete em busca de seu marido desaparecido. O Tibete é uma região com uma cultura e uma identidade distintas, e historicamente tem sido um ponto de tensão entre a China e o Tibete devido às disputas sobre autonomia e independência. No Ocidente, tal disputa ganhou proeminência e espaço pelo forte movimento e campanha de talvez o seu mais famoso tibetano, Dalai Lama.

 

De acordo com a obra (Xinran, 2004), a história de Shu Wen se desenrola no momento de ocupação chinesa no Tibete, na década de 1950. Assim, o contexto social e cultural em que Xinran escreveu "Enterro Celestial" é marcado por transformações sociais na China e pela situação política delicada no Tibete. Devido a isso, a narrativa permite ao leitor vislumbrar um olhar sensível sobre as experiências individuais em meio a essas dinâmicas históricas, retratando questões de identidade, cultura e relacionamentos entre diferentes grupos étnicos e culturais.

 

Sobre a obra, suas temáticas e personagens...

Inicialmente, cabe destacar que se trata de uma obra de ficção, porém, baseada em eventos reais. Resumida e inicialmente, em Enterro Celestial (2004) é narrado a história de Shu Wen, uma jovem enfermeira chinesa que decide deixar sua vida na China para ir atrás de seu marido, Kejun, médico militar, que fora designado para uma missão no Tibete. Sua decisão em ir atrás de seu marido, deve-se por receber a notícia da morte dele, ou seja, o enredo se desenvolve em torno da busca de Shu Wen por Kejun. (Xinran, 2004)

 

Como estilo narrativo, a obra apresenta outros personagens, também, com suas histórias é possível identificar, nesses cenários, o abrupto processo de aculturação e enculturação, que marcam processos de colonização e que, hoje, diante dos estudos decoloniais.

 

Vejamos: SHU WEN: protagonista, é apresentada como uma mulher corajosa que parte em uma jornada perigosa para encontrar seu marido, por ser médica dermatologista, consegue autorização para realizar missão no Tibete. KEJUN: O marido de Shu Wen, médico oficial do Exército de Libertação Popular chinês. Sua história pessoal e sua ligação com o Tibete desempenham um papel central no enredo do livro. É em torno de sua morte (tratada inicialmente como desaparecimento) que a história se desenrola. ZHUOMA: é uma jovem tibetana que se torna uma figura importante na vida de Shu Wen. A partir do encontro com a protagonista, e dos laços de amizade estreitados, tem-se contato com a perspectiva cultural e das tradições do Tibete. QIANGBA, O VELHO ERMITÃO: o mesmo é apresentado em capítulo próprio, e nele, pode-se adentrar à cultura tibetana, tanto na perspectiva budista, quanto das tradições locais Bö. Para nós, aqui está a chave de compreensão do artigo que propomos, tanto quanto para o desfecho da narrativauma vez que é através deste personagem que a protagonista se vê diante do fenômeno “enterro celestial”. (Xinran, 2004, p. 117-131, e pp. 132-141)

Além disso, o livro aborda uma série de temas significativos, quais sejam:

 

“Amor e devoção”: A história central gira em torno do amor de Shu Wen por seu marido e sua devoção em encontrá-lo. (Xinran, 2004, pp. 20-35) “Identidade e pertencimento”: Shu Wen enfrenta desafios em sua identidade pessoal enquanto navega entre a cultura chinesa e tibetana. O livro levanta questões sobre a formação da identidade em um contexto multicultural e as tensões resultantes dessa interação. (Xinran, 2004, pp. 36-82) “Consequências da ocupação”: O livro aborda as consequências da ocupação chinesa no Tibete. Xinran explora as histórias individuais de tibetanos que foram afetados pela presença chinesa, revelando o impacto nas tradições culturais, na religião e nas relações interpessoais. (Xinran, 2004, pp. 82-94). “Espiritualidade e fé”: A jornada de Shu Wen pelo Tibete a expõe a práticas espirituais e crenças religiosas tibetanas. O livro explora as noções de espiritualidade, fé e transcendência em meio à adversidade. (Xinran, 2004, pp. 95-140)

 

Assim, temos um entrelaçamento temático ao longo do enredo de "Enterro Celestial". Buscando identificar elementos estruturantes do mesmo, é possível identificar estruturas que substanciam a condição humana, as complexidades culturais e as experiências individuais em um dado contexto histórico e político. Todas, estruturas figurativas passíveis de serem identificadas por meio das inúmeras narrativas míticas e imagéticas, que retratam as diversas condições humanas, porém todas condicionadas aos dois fenômenos angustiantes em que o sapiens se enreda, a morte e o esvair do tempo. (Durand, 2002)

 

Do imaginário celestial à um enterro celestial

A dimensão imaginária do ser humano tem sido objeto de estudo e fascínio ao longo dos séculos. Desde mitos e rituais até narrativas contemporâneas e práticas simbólicas, o imaginário desempenha um papel fundamental na construção da identidade individual e coletiva. As estruturas antropológicas do imaginário referem-se aos padrões, símbolos e significados subjacentes que dão forma às representações simbólicas e imaginárias de uma determinada cultura ou sociedade. (Durand, 1979; 1985; 1989; 1995; 1996; 2002; 2004a; 2004b; 2008)

 

Assim sendo, o autor propõe que o imaginário humano possui uma estrutura subjacente que transcende as diferenças culturais. Essa estrutura antropológica do imaginário é composta por padrões simbólicos e arquétipos que são compartilhados pelas sociedades humanas que, como se vê no conjunto de sua obra, é a materialização concreta de regimes de imagens (diurno e noturno), estruturadas em narrativas heróicas, místicas e/ou sintéticas que são reflexos psíquicas de reflexos dominantes biológicos (bípede, sucção e cópula), que instauram (ou permitem a instauração) de esquemas verbais heroicos, antifrásicos e dramáticos. (Durand, 2002)

 

Mais ainda, o autor propõe a existência de arquétipos e estruturas mitológicas subjacentes ao imaginário humano, que se manifestam em símbolos, mitos, rituais e obras de arte. Ele analisa esses símbolos e suas relações, identificando padrões recorrentes e universais. Com essa abordagem, busca-se revelar as estruturas profundas do imaginário coletivo e compreender como essas estruturas influenciam a cultura, a identidade e a subjetividade dos indivíduos. (Durand, 1979; 1985; 1989; 1995; 1996; 2002; 2004a; 2004b; 2008)

 

Metodologicamente, o imaginário como diretriz de estudos, vale ressaltar aquilo que o autor francês formulou e denominou de mitodologia, que por sua vez, divide-se em mitocrítica e mitanálise. Enquanto, a mitocrítica analisa os mitos pessoais, que dão orientação aos projetos de vida de cada indivíduo e que também comungam projetos mais amplos que são relativos à coletividade. Já a mitanálise, por sua vez, é um método de investigação fundado em uma racionalidade hermenêutica, a qual tem como um de seus principais intentos, localizar e interpretar as imagens, os símbolos e os mitos no imaginário, presentes nas mais variadas culturas, regiões e momentos históricos. (Durand, 1979; 1996)

 

Portanto, resumidamente, temos como premissas da Teoria Geral do Imaginário dois regimes:

 

“[...] O Regime Diurno tem a ver com a dominante postural, a tecnologia das armas, a sociologia do soberano mago e guerreiro, os rituais da elevação e da purificação; o Regime Noturno subdivide-se nas dominantes digestiva e cíclica, a primeira subsumindo as técnicas do continente e do habitat, os valores alimentares e digestivos, a sociologia matriarcal e alimentadora, a segunda agrupando as técnicas do ciclo, do calendário agrícola e da indústria têxtil, os símbolos naturais ou artificiais do retorno, os mitos e os dramas astrobiológicos. [...] (Durand, 2002, p. 58, itálicos do original).

 

Nesse sentido, cremos que Ana Taís Barros (2010, p. 135, itálicos do original), traduz elucidativamente o que o autor francês postula:

 

“[...] No universo mítico heróico, a ação fundamental é da distinção, engendrada pelo reflexo postural, que privilegia as sensações à distância, visão e audiofonação: é pondo-se de pé que o homem libera a vista e o ouvido, podendo melhor exercer esses sentidos; libera também a mão que se ergue tanto para o combate quanto para o julgamento. No universo mítico místico, a ação primordial é confundir, sugerida pela dominante da descida digestiva, trazendo imagens de intimidade, calor, alimento, substância etc. No universo mítico dramático (regime noturno), a ação predominante é reunir, que se coaduna com a dominante copulativa e suas constantes rítmicas [...]”.

 

Enfim,  a totalidade desses fenômenos produzidos e acumulados pelo conjunto da humanidade, explicados acima e que encontramos nas mais variadas formas narrativas e imagens que, por meio de sua capacidade psicobiológica se eleva a condição de ser subjetivamente pensante (Imaginário) tenta dar conta desta condição, genuinamente, humana, que é a busca incessante de vencer o tempo e a morte, por um lado, e a eufemização desta condição se entregando e abraçando o tempo incontrolável e a morte, por outro lado. (Durand, 2002)

 

Análise: um enterro noturno, narrado diurnamente?

O ritual funerário em "Enterro Celestial", pode ser acessado a partir do capítulo 7, intitulado “Qiangba, o velho ermitão”, e é nesse capítulo que se inicia a apresentação da tradição tibetana funeral e, por conseguinte, a cosmovisão tibetana de morte. Tema caro para os autores que tratam narrado   começa com a preparação do corpo do falecido. Os familiares e amigos lavam e vestem o corpo com roupas tradicionais, demonstrando respeito e honra ao falecido. Em seguida, o corpo é colocado em um caixão, muitas vezes feito de madeira, decorado de forma elaborada e simbólica. (Xinran, 2004)

 

Durante o ritual, há uma série de práticas e crenças que são seguidas. São feitas orações e incensos são queimados como forma de comunicação com o mundo espiritual. Músicas e cantos podem ser entoados para acompanhar o processo. Os familiares e amigos também trazem oferendas, como comida, bebida e objetos simbólicos, para serem colocados ao lado do caixão. Uma parte importante do ritual é o corte de mechas de cabelo dos familiares próximos do falecido. Isso simboliza a união e a conexão entre os vivos e os mortos. As mechas de cabelo são então colocadas no caixão como uma forma de acompanhamento e proteção espiritual para o falecido. Após o ritual, o caixão é levado para o local de enterro, que pode ser um cemitério ou um local designado. O enterro em si pode variar dependendo das crenças e costumes familiares. Alguns podem preferir o enterro em covas individuais, enquanto outros podem optar por enterros em colinas ou montanhas sagradas. (Xinran, 2004)

 

Quanto ao fenômeno, segundo grandes mestres da espiritualidade tibetana, denominam como “Powa”, que seria uma espécie de treinamento para o processo de morte, reencarnação ou a cessação do ciclo de nascimento-morte. (Chagdu Tulku, 2019; Gyatso, 2006; Rinpoche, 1999) Esses temas se entrelaçam ao longo da narrativa, proporcionando uma reflexão sobre tradições culturais. (ALDROVANDI, 2008)

 

A morte, na perspectiva durandiana, atravessa os dois pólos das grandes imagens, assim como, os três esquemas verbais que estruturam essas mesmas imagens/narrativas (heróicas, místicas e sintéticas). Levando em consideração o “quadro isotópico” de Durand (2002), a morte enquanto fenômeno que, em suas múltiplas facetas (túmulo, morada, luz, trevas, céu, inferno, iniciação, sacrifício, berço...) perpassa os regimes, as estruturas de imagens e identificáveis através de sua simbologia e esquemas verbais, nos permitiu identificar o que se segue:  “os arquétipos heroicos (diurnos)”:  luz, trevas, cume, o herói, a asa... Através do ato de “separar” as partes do corpo do falecido, no ritual de enterro celestial. “Os arquétipos místicos (noturnos)”:  a morada, a mulher, o centro, a mãe, o animal gigante. Através do ato de confundir e eufemizar o abraço da morte. (Durand, 2002, p. 443)

 

Simbolicamente, temos ainda: o mantra e o sol como “símbolos heroicos”, elementos recorrentes no texto. Enquanto, o túmulo, o ventre, o mandala, o berço como “símbolos místicos”. Temos ainda, o universo militar, tematizar todo o contexto narrativo, dinâmicas bélicas que, simbolizam a estrutura diurnas culturais e que perpassam a jornada de Wen Shu até a revelação derradeira, o suicídio de seu marido Kejun. (Xinran, 2004).

 

Assim, evidenciamos se tratar de uma obra características da condição de ocidentalização do oriente, tanto quando desta orientalização do ocidente, condição destas mesclas dinamizadas por processos culturais e econômicos, retrato da “mundialização e globalização” instaurada nos últimos 40 anos (Canclini, 2000).   Isto é, temos um contexto narrativo (livro), em caráter diurno, sob a ótica de uma autora privilegiando um tom narrativo heroico. Em contrapartida, a análise e leitura da obra, na perspectiva durandiana (Durand, 2002), permite-nos captar o relato de uma dada cultura (colonizada), que é representada em seu caráter/aspecto noturno (especialmente, o fenômeno da morte e do funeral). E que, como síntese dessa dinâmica, na concretude dos personagens reais, identificamos um “trajeto antropológico” noturno sintético, uma vez que Wen Shu, Tibete, China, marido suicida, personagens coadjuvantes (QiangBa, Zhouma...) e narradora só se entrecruzam seus trajetos, no plano narrativo, portanto, na condição de drama, na estrutura dramática, naquele limiar diurno-noturno, crepuscular. (Durand, 2002, p. 443)

 

Conclusão

Neste paper, discutimos a autora Xinran e seu livro "Enterro Celestial". Fornecemos uma visão geral da carreira literária de Xinran, destacando seu papel como uma renomada escritora chinesa que aborda questões sociais e culturais em suas obras. Exploramos o contexto social e cultural em que "Enterro Celestial" foi escrito e, em seguida, descrevemos o enredo do livro, os temas recorrentes e as principais personagens.

 

Também, dedicamos um subcapítulo para discorrer sobre o arcabouço teórico que norteou o presente trabalho, a Teoria Geral do Imaginário postulada por Gilbert Durand. Para que assim, houvesse condições de apresentar os achados da análise acerca do ritual funerário tibetano realizado com o marido procurado da personagem nacionalista chinesa Wen Shu.

 

Assim, Enterro Celestial (2004) é uma obra literária significativa de Xinran, que possui relevância histórica e cultural, pois, entendemos que a obra oferece, além de uma visão da sociedade chinesa, uma compreensão global promovendo reflexão sobre questões sociais e culturais importantes.

 

Por fim, temos uma cultura oriental, a qual acreditamos alicerçada em um regime de imagens noturnas, percebidas através dos rituais funerários tibetanos, vivido por uma personagem real, e narrada por uma personagem que já vive culturalmente os condicionantes da mundialização cultural (Canclini, 2000).

 

Concluindo, tal fato, nos impele, à luz da teoria durandiana, a propor o entendimento de que, com o avanço e complexificação das dinâmicas vertiginosas instauradas no último século passado, as grandes imagens que arregimentaram culturalmente a humanidade, em diurno (ocidente) e suas narrativas de enfrentamento e controle do tempo e da morte, e noturno (oriente) com suas narrativas que eufemizam a soberania do tempo e da morte, percebemos que, nesta obra chineses, tibetanos e ocidentais parecem partilharem da mesma angústia e medo, em especial, “face à morte”. Entretanto, esmiuçando a obra fica evidente que, a angústia narrada advém da perspectiva ocidentalizada da narradora e do leitor, uma vez que, tanto protagonista quanto personagens envolvidos no rito funerário eufemizam tal fenômeno vivido por Kejun e Qiangba.

 

“[...] Pôs a mão no bolso onde guardava a fotografia de Kejun. Ao passar os dedos sobre a imagem [...] murmurou as palavras ‘Om mani padme hum’. No céu, uma família de gansos voava para casa. Ali não havia abutres sagrados nem enterros celestiais [...].” (Xinran, 2004, p. 156)

 

Referências

Jander Fernandes Martins é Mestre e Doutor em Processos e Manifestações Culturais (Universidade FEEVALE). Pedagogo (UFSM) e professor concursado em Rede Municipal de Campo Bom-RS. E-mail: martinsjander@yahoo.com.br

 

Vitória Duarte Wingert é Mestra em Processos e Manifestações Culturais (Universidade Feevale). Doutoranda em Diversidade Cultural e Inclusão Social (Universidade Feevale). Licenciada em História (Universidade FEEVALE). Professora concursada em Rede Municipal de Campo Bom-RS.  E-mail: vitoriwingert@hotmail.com.

 

ALDROVANDI, Cibele Elisa Viegas. O monge, a morte e o estupa: práxis e padrões funerários no Budismo primitivo a partir das fontes arqueológicas e textuais. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 18: 155-182, 2008

 

BARROS, Ana Taís Martins Portanova. Comunicação e imaginário – uma proposta metodológica. Intercom – Revista Brasileira de Ciências da Comunicação São Paulo, v.33, n.2, p. 125-143, jul./dez. 2010.

_________________________________. Mito, Comunicação E Experiência SimbólicaXXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019b.

 

CANCLINI, Néstor Garcia. Cultura Híbridas: estratégias para Entrar e Sair da Modernidade. Trad. Heloisa Pezza Cintrão, Ana Regina Lessa. 3ª Ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000.

 

CHAGDU TULKU, R. Vida e morte no Budismo Tibetano. Trad. Candida Bastos. 3ª ed. Revisada e ampliada. Três Coroas: Makara, 2019.

 

DURAND, Gilbert. Figures mythiques et visages de l’oeuvre: de la mythoccccritique à la mythanalyse. L’ile Verte Berg International, 1979.

 

_______________. Sobre a exploração do imaginário, seu vocabulário, métodos e aplicações transdisciplinares: mito, mitanálise e mitocrítica. Rev. Fac. de Educação-USP. v. 11, n.1-2. (1985), pp. 244-256. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/rfe/issue/view/2459. Acessado em 22/08/2020.

 

_______________. Beaux-arts et Archétypes: la religion de l’art. 1ª ed. PUF - Presses Universitaries de France, 1989.

 

_______________. A Imaginação Simbólica. Trad. (3ª ed. Francesa-1993) Carlos Aboim de Brito. Edições 70, 1995.

 

_______________. Introduction à la mythodologie: mythes et sociétés. Preface de Michel Cazenave. Éditions Albin Michel, S. A. 1996a.

 

________________. Campos do Imaginário. Textos reunidos por Danielé Chauvin. Trad. Maria João Batakha Reis. Instituto Piaget, 1996b.

 

_______________. As Estruturas Antropológicas do Imaginário: introdução à arquetipologia geral. Trad. Hélder Godinho. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

 

________________. O retorno do mito: introdução à mitodologia. Mitos e sociedades. Revista FAMECOS. Porto Alegre. nº 23, 2004a. Disponível em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/view/3246. Acessado em 29/06/19.

 

________________. O imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. Trad. Reneé Eve Levié. 3ª ed – Rio de Janeiro: DIFEL, 2004b.

 

________________. Ciência do Homem e Tradição: o novo espírito AntropológicoTrad. Lucia P. de Souza. 1ª ed. São Paulo: TRIOM, 2008.

 

GYATSO, Geshe K. Viver significativamente, morrer com alegria: a profunda prática da transferência de consciência. Trad. Tharpa Brasil, 1ª ed. São Paulo: Tharpa Brasil, 2006.

 

RINPOCHE, Songyal. O livro tibetano do viver e morrer.  Trad. Luiz Carlos Lisboa. São Paulo: Talento: Palas Athena, 1999.

 

SAID, Edward W. Orientalismo: o oriente como invenção do Ocidente. Trad. Rosaura Eichenberg. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

 

XINRAN. As boas mulheres da China: vozes ocultas. Trad. Do inglês Manoel Paulo Ferreira1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

 

________. Enterro Celestial. Trad. Do inglês Tuca Magalhaes – São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

 

_________. Testemunha da China: vozes de uma geração silenciosa. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

 

WINGERT, Vitória Duarte; MARTINS, Jander Fernandes. A menina e a mosca: uma análise sobre a construção do estereótipo chinês e relação humano-animal. In: BUENO, Andre; CREMA, Everton; ESTACHESKI, Dulceli; NETO, José Maria. (Org.). Extremos Orientes. 1ed.União da Vitória: Sobre Ontens? LAPHIS/UNESPAR, 2018, v. 1, p. 405-416.

2 comentários:

  1. Fabricio Goulart Rossatto7 de agosto de 2023 às 23:16

    Como as estruturas míticas se manifestam na trama e nos personagens, de acordo com as teorias de Gilbert Durand?

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Boa tarde caros, um prazer interagir com você nesse envento. Então, sem dar "spoiler da obra", a qual recomendo a leitura, as estruturas durandianas se manifestam a partir da análise dos "verbos" na narrativa, uma vez que estes, são a expressão de "gestos" e, para Gilbert Durand, há três gestos reflexos que são dominantes no Sapiens (sucção, bípede e a cópula). Desses três reflexos dominantes, podemos dizer resumidamente, que elevam o homem ao estado de humanidade. Conquistado isso, histórica, sociológica, antropológica e arqueologicamente, em um dado momento (já na pré-história) a espécie sapiens começa a "dar-se conta de dois eventos que lhes escapam à mão: o tempo e a morte. E então, se instaura milenarmente, na forma de gestos, mitos, símbolos, crenças etc. tentativas de vencer ou abraçar a morte. Toda essa construção humana sistematizada, segundo ele, em 2 grandes regimes de imagens (noturno e diurno) que se estendem em 3 estruturas: 1 heroica (diurna) e 2 noturnas (mística e sintética), cada qual, com suas simbologias e narrativas próprias (mas que se entrecruzam também). No caso da obra, vemos esses gestos e simbologias na morte do marido (diurno) da protagonista que, vivencia um funeral tibetano (noturno). Além, é claro, de outros elementos que atravessam toda a narrativa. Assim, recomendo tanto ler a obra de Xinran, quanto a de Gilbert Durand, para maiores aprofundamentos, que excedem o evento. Desde já somos gratos pela participação. Jander e Vitória.

      Excluir

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.