SEN NO RIKYÛ E OS POEMAS DO CHÁ, por Giorgia Vittori Pires


A cerimônia do chá (chanoyu) é um cerimonial tradicional japonês no qual o anfitrião prepara e serve o matcha – uma espécie de chá verde em pó – para seus convidados. É uma cerimônia com grande influência do Budismo e do Taoísmo, e aqueles que a praticam seguem o caminho do chá (chadô). Essa tradição é considerada uma representação da sociedade japonesa. Por isso não poderia deixar de falar da literatura relacionada a ela, sendo a coletânea de poemas Rikyû Hyakushu (“Os cem poemas do Rikyû”) a mais conhecida.

 

Apesar do nome, não se sabe realmente de quem é a autoria dos poemas, sendo que a teoria mais aceita é a de que Rikyû, aquele que padronizou e difundiu a cerimônia do chá como a conhecemos hoje, juntamente com seus alunos, escreveram a coletânea. O objetivo deles era criar uma maneira mais interessante de ensinar a didática do cerimonial. Justamente por esse caráter educativo é que algumas das poesias se parecem mais com uma explicação do que com um poema propriamente dito. A seguir será apresentado quem foi Rikyû, a história da literatura da cerimônia do chá e a minha tradução e explicação de cinco dos poemas do Rikyû Hyakushu.

 

Rikyû

Sen no Rikyû (1522-1591) é considerado um dos mais importantes mestres de chá, já que teve um grande papel no aperfeiçoamento da cerimônia. Sua influência era tanta que foi o mestre de chá de dois dos senhores feudais mais importantes do Japão: Oda Nobunaga (1534-1582) e Toyotomi Hideyoshi (1537-1598).

 

Rikyû começou a aprender sobre o caminho do chá ainda quando jovem: tinha apenas 19 anos quando conheceu o mestre de chá Takeno Jôô (1502-1555), e acabou se tornando seu discípulo. Durante o reinado de Hideyoshi, foi convidado para ter uma posição na corte, porém recusou, aceitando apenas ser conselheiro honorário [Okakura, 2008].

 

Juntamente com Takeno Jôô, aprimorou a cerimônia e transformou vários de seus conceitos, até que ela se tornou o que é hoje. De acordo com Sôshitsu, uma teoria interessante é a de que Rikyû foi intimado a cometer seppuku (suicídio ritual) justamente por “transformar montanhas em vales”. Sua influência e pensamento revolucionários teriam assustado Hideyoshi e, por isso, em 1591, cometeu suicídio após oferecer uma última tigela de chá aos seus amigos. Apesar disso, seus descendentes puderam continuar a praticar o chanoyu e quando Sôtan - neto de Rikyû - cessou as atividades, dividiu sua propriedade entre seus três filhos. A partir dessa divisão foram fundadas as escolas de chá que continuam ativas até hoje: a Urasenke, a Omotesenke e a Mushanokojisenke.

 

Com Rikyû o estilo da cerimônia do chá japonesa ficou mais refinado, formalizando a estética do wabi, que determinou o gosto do japonês pelo simples. Ele afirma que a decoração sóbria, de despojada elegância, é uma “expressão simbólica de toda uma arte de viver em harmonia perfeita. ” [Rikyû em SOSHITSU, 1981]. Ademais, ele introduz os quatro princípios da cerimônia, os quais são chamados de wakeiseijaku (和敬静寂). Percebe-se que cada ideograma representa um dos princípios, que são a harmonia, o respeito, a pureza e a tranquilidade.

 

O caminho do chá resulta no equilíbrio entre os elementos artísticos, formais e filosóficos. Nenhum é independente e é a união de suas melhores qualidades que formam o aspecto cerimonial do chanoyu. A apreciação artística se torna uma meditação da filosofia Zen Budista e a fluidez da cerimônia surge apenas quando se domina a forma [Hammitzsch, 2016].

 

Rikyû Hyakushu

De acordo com Zalewska [2015], o primeiro escrito sobre cerimônia do chá (chasho) se chamava Sôjinmoku (1626) e era composto de três volumes: o primeiro apresentava as maneiras do anfitrião e convidado agirem; o segundo, as regras da sala do chá e como este era produzido; e o último era voltado para a prática do chá.

 

Existiam diversas formas de chasho como, por exemplo, coleções de anedotas (itsuwashû), sobre os encontros de cerimônia ou sobre famosos mestres. Outro exemplo eram os kaiki, notas sobre tudo o que se relacionava à cerimônia do chá, como a comida, jardinagem e até mesmo imagens sobre o assunto. Porém, o gênero literário apresentado neste trabalho é a poesia tanka.

 

Tanka são poemas curtos compostos de trinta e uma sílabas poéticas, divididas em cinco versos de 5-7-5-7-7 sílabas. Apesar de serem escritos como um único poema, era comum encontrar coletâneas que reuniam uma determinada quantidade de poemas, sendo que o modelo mais famoso eram os hyakushu uta, conjuntos de cem poemas. O primeiro hyakushu uta sobre a cerimônia do chá foi o Sachô hyakushuka (1642), cujos poemas eram bem técnicos, com a ideia de ajudar a lembrar os detalhes sobre utensílios e o restante da cerimônia [Zalewska, 2015].

 

Na metade do século XVII existiam diversos poemas sobre os utensílios do chá e os seus temae - procedimentos da cerimônia do chá -, mas começavam a surgir autores que tentavam expressar uma ideia mais geral sobre o caminho do chá. Esses eram denominados dôka (poemas do caminho), cujo objetivo, de acordo com Sen Sōshitsu (1977), era transmitir o conhecimento e as técnicas de diferentes artes e ideologias.

 

O dôka de cerimônia do chá mais conhecido é a coletânea Rikyû Hyakushu (“Cem poemas de Rikyû”), ou Rikyû dôka (“Poemas do caminho de Rikyû”), ou Jôô Hyakushu (“Cem poemas de Jôô”). Zalewska reconhece que até hoje não se sabe a autoria dos poemas, mas acredita-se que tenha havido uma contribuição de ambos. Além disso, também não se tem uma data oficial de publicação, pois os poemas foram escritos no decorrer de sua vida.

 

Deixando essa questão de lado podemos observar o seu conteúdo: cento e dois poemas didáticos sobre ensinamentos importantes da cerimônia do chá; dentre eles podemos encontrar aqueles cujo tema consiste nas técnicas e aqueles que almejam expressar a essência do caminho do chá.

 

A coletânea começa com cinco poemas voltados para a iniciação ao caminho do chá, ao aprendizado e aos ensinamentos sobre a cerimônia. Eles variam entre a perspectiva do aluno e do professor, explicando as qualidades que devem ter para se seguir o caminho de maneira correta. A maioria dos poemas que seguem esses cinco retratam o significado dos detalhes dos procedimentos, a maneira de lidar com os diversos utensílios e a relação entre anfitrião e convidado. Chegando ao fim da coletânea voltam os poemas com ideias mais gerais. Em todos os poemas podemos perceber os esforços do autor em captar a essência da cerimônia do chá.

 

Traduções

A seguir serão apresentadas as traduções, feitas por mim, de cinco poemas de Rikyû retirados da edição Rikyû Hyakushu Handbook [2013], da Tankosha Publishing Co Ltd. Ao fim de cada tradução, constará uma explicação dos poemas:

 

Aqueles que começam a praticar por influência externa, seja a recomendação de alguém ou por obrigação, dificilmente conseguiriam progredir seus estudos. Sempre existirão altos e baixos, coisas que gostamos ou odiamos durante o caminho, por isso é tão importante ter paixão pelo que se estuda, ou então o que era novidade rapidamente se torna entediante.

 

O problema da paixão é que às vezes as expectativas são muito altas, mas não se tem toda a destreza esperada. Essa falta de jeito é completamente normal, principalmente se formos levar em conta que a cerimônia é uma arte performática difícil de ser executado perfeitamente se nunca tiver sido praticada anteriormente. Enquanto não há experiência suficiente é necessário ter muita diligência. É só com o esforço e experiência que se evolui e conquista méritos.

 

Trata-se de um poema que evidencia a importância da forma para as artes japonesas. Essa mentalidade de “ataque com uma mão defenda com a outra” está presente em diversas artes marciais, como o Kendo e o Karatê. Na cerimônia do chá a ideia é a mesma, só aplicada de forma um pouco diferente. Enquanto uma mão está ativamente executando uma ação a outra está ativamente em repouso.

 


Isso significa que não se pode largar a outra mão só porque ela não está sendo usada no momento. Pode parecer algo simples de fazer, mas quando estamos aprendendo, acabamos nos concentrando tanto em acertar a sequência que sem perceber a outra mão é esquecida. Quando a forma não é mantida, acaba-se tendo uma aparência desleixada e por muitas vezes acaba fazendo com que o estudante do caminho do chá se confunda nos movimentos. O poema diz que “a mão direita / move / o coração zela / pela esquerda”, isso significa que quando o cérebro está cuidando para fazer os movimentos certos – ativamente executando —, o coração está cuidando para não ficarmos largados – ativamente em repouso.

 

Ensinamentos não são ditos ou escritos, mas são transmitidos diretamente de coração para coração, de maneira que o outro compreenda assuntos profundos e sutis que não podem ser expressos em palavras. Existem ensinamentos que só podem ser transmitidos da mente para o coração e a verdade não pode ser definida por conceitos. Isso significa que o caminho da iluminação e esclarecimento não pode ser transmitido em palavras escritas ou faladas.

 

É um poema importantíssimo, pois se as pessoas ficarem presas às regras, esperando alguém ensiná-las, nunca conseguirão avançar de verdade em seus estudos. Afinal o que importa não é o que se vê, mas sim a sinceridade e devoção do coração do aprendiz.

 


A cerimônia do chá é repleta de paradoxos que se complementam. Tal como na cultura japonesa, onde yin e yang estão fortemente presentes, a cerimônia também busca o equilíbrio dessas forças opostas. Para todo momento pesado e escuro haverá um momento de leveza e claridade; dessa forma, deve-se tentar balancear as ações.

 

Na explicação do poema, o exemplo do bambu verde em contraste com as árvores secas do outono mostra claramente a harmonia contraditória ligada ao aspecto visual exterior. A explicação também ressalta a importância do arranjo dos utensílios.

 

Para se criar um ambiente agradável, o anfitrião prepara a sala de chá de forma a se equilibrar com o ambiente externo. Por exemplo: no inverno o convidado se sentará mais próximo do fogareiro para se manter aquecido; já no verão ficará mais distante. Aqui podemos perceber o cuidado em manter em equilíbrio as temperaturas opostas. A meu ver, o que melhor representa o yin e yang, quanto à conduta, é a maneira com que o anfitrião manipula os utensílios: caso eles sejam leves devemos segurá-los como se fossem pesados, assim como o seu oposto.

 

Dizer que a cerimônia é simplesmente ferver água, preparar e beber chá é extremamente paradoxal, já que ela é cheia de regras e detalhes para memorizar. Porém, acho importante ressaltar que existe uma grande diferença entre ser simples e ser simplório, e o chadô definitivamente não é simplório. Essa simplicidade e paz interior só são alcançadas quando todos os princípios da cerimônia – harmonia, respeito, pureza e tranquilidade — estiverem sendo executados.

 

Parece simples, mas fazer um chá sem deixar a mente viajar é mais difícil do que imaginamos. Focar no aqui e agora e preparar uma bebida de acordo com os princípios do chanoyu, com o coração sincero, leva tempo. Isso porque alcançar o simples exige treinamento, experiência e internalização.


Existem duas fases para aqueles que estão iniciando no caminho do chá. Na primeira ainda se faz necessário pensar no próximo movimento e toda a sequência da cerimônia. A segunda é quando isso se torna automático e o cérebro do praticante não precisa mais focar naquilo. Nesse momento corre o perigo de começar a divagar, por isso é necessário dedicação e foco para conseguir se manter na ação presente, por esse motivo que muitas vezes a cerimônia é considera uma meditação prática.

 

Conclusão

O cuidado com a tradução de alguns poemas e a pesquisa histórica e cultural desenvolvidas na execução deste trabalho aprofundam as questões sobre a poesia clássica e as diversas manifestações da cerimônia do chá. Acredito que isso seja importante, dada a complexidade dos poemas e sua intersecção com diversos aspectos da cultura japonesa, como a poesia, a língua e as artes clássicas. Considerando que o Brasil é o país com maior comunidade japonesa fora do Japão, surpreende que não existam muitas pesquisas sobre esse material em língua portuguesa, sendo que o único material disponível está restrito às escolas de chanoyu.

 

Como dito anteriormente, o Rikyû Hyakushu se enquadra em diversos estilos literários clássicos, como por exemplo chasho, dôka e tanka. Mesmo assim, só são conhecidos por aqueles que estudam mais profundamente a cerimônia do chá. Inseri-lo como referência da poesia clássica japonesa apresenta-se como ponto de importância deste texto, levantando novas questões sobre a origem dos poemas e sua função.

 

É possível ainda salientar a importância dos poemas didáticos para os praticantes da cerimônia do chá e para os estudantes da literatura e poesia clássica japonesa, mesmo que essa coletânea não seja muito difundida no ambiente acadêmico. Embora sejam considerados complexos e específicos, os poemas possuem a finalidade de instruir os praticantes da cerimônia para uma forma mais natural e de fácil memorização, além de evidenciar um profundo entendimento sobre a estética japonesa, chinesa e até mesmo coreana por parte daqueles que conviviam nesse meio artístico.

 


 

Referências

Giorgia Vittori Pires é graduada em Língua e Literatura Japonesa da Universidade Federal do Paraná e autora do livro O Som do Chá [http://lattes.cnpq.br/5366439494761261]

 

Rikyû hyakushu handbook. Kyoto: Tankosha publishing co ltd, 2013.

 

SÔSHITSU Sen. The Japanese Way of Tea: From Its Origins in China to Sen Rikyu. Trandução: V. Dixon Morris. Hawaii: University of Hawai'i Press, 1998

 

OKAKURA, Kakuzo. O livro do chá. Tradução: Leiko Gotoda. 3ª edição. São Paulo: Estação Liberdade, 2008.

 

Kogujiten zen’yaku dokkai. 2ª edição. Tokyo: Sanseidô, 2001

 

HAMMITZSCH, Horst. O Zen na Arte da Cerimônia do Chá. Clássicos Zen. São Paulo: Editora Pensamento, 2016.

 

ZALEWSKA, Anna. Expressing the essence of the way of tea: tanka poems used by tea masters. Varsóvia: Analecta nipponica, journal of polish association for japanese studies, 2015 

3 comentários:

  1. Olá, parabéns pelo trabalho! Gosto muito da estética wabi-sabi que se consolida com a cerimônia do chá aperfeiçoada por Sen no Rikyû. Sabe-se que essa prática tradicional tem origem chinesa e influência budista, também vinda da China através da península coreana. Apesar disso, a cerimônia passa a se diferenciar com Rikyû com relação à cerimônia de chá chinesa, que possuía utensílios mais extravagantes e estética simétrica (distinta do conceito wabi-sabi). Saberia me dizer quais são as possíveis diferenciações socioculturais que modificaram e solidificaram a forma de praticar o chanoyu no Japão, mesmo que tenha a mesma influência do Zen Budismo presente na China?

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    1. Att, Fernanda Kaory Ikegami Sato. (Esqueci de assinar)

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  2. Giorgia Vittori Pires11 de agosto de 2023 às 07:31

    Muito obrigada pela ótima pergunta! Espero que minha explicação não fique muito grande.

    A diferença entre as duas cerimônias de chá começa, na realidade, muito antes de Rikyû. Começa na China durante a Dinastia Song (960-1279). O chá era em pó e era preparado batendo com água quente com o auxílio de um batedor feito de bambu. É também nesse época que os monges budistas começam a elaborar um complexo ritual para apreciar o chá, que é o início da cerimônia japonesa que conhecemos hoje.
    Até então, no Japão, havia um grande fluxo cultural entre os dois países, que foi interrompido entre os períodos Heian e Kamakura (1185-1333). Essa “pausa” permitiu que os japoneses assimilassem o que haviam aprendido e a transformassem em um estilo intrinsecamente japonês. Nesse período o ato de beber chá foi deixado de lado, até que o estudioso do Budismo chamado Myôan Eisai retornou da China e começou a ensinar sobre o Zen sulista e a popularizar o modo chinês de se beber o chá (batido), mas a prática ainda continuava limitada aos monastérios.
    Essa influência do Zen continuou pelo período Sengoku (1467-1568) e as artes japonesas começaram a serem moldadas por seus fundamentos. Nesse período três nomes se destacam na cerimônia do chá. Primeiro temos Murata Jukô (1422-1502), ele difundiu a cerimônia do chá para além dos monastérios; em seguida, Takeno Jôô (1502 -1555), começou a utilizar o termo Wabi para a cerimônia do chá, e só então, Sen no Rikyû (1522-1591) que aprimorou a cerimônia e formalizou a estética do wabi-cha, resultando na cerimônia que conhecemos atualmente.
    Enquanto isso a China tinha sido dominada pelos mongóis até a Dinastia Ming (1368-1644), deixando um rastro de consequências em sua cultura, já que poucas pessoas lembravam os costumes antes desse período. Justamente por esquecerem como se praticavam determinadas artes é que o método de preparo do chá mudou, e é aqui que fica evidente a diferença entre técnicas e fundamentos da cerimônia japonesa e da chinesa. A cerimônia japonesa encontrou sua influência na dinastia Song e na própria história do Japão, enquanto a cerimônia chinesa, na Dinastia Ming.

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