PEROZ E OS ÚLTIMOS SASSÂNIDAS NA CORTE TANG: UMA ANÁLISE DAS RELAÇÕES SINO-SASSÂNIDAS AO LONGO DA HISTÓRIA, por Samantha Alves de Oliveira

 

O fim do Império Sassânida [224-651] foi um período conturbado da história do Irã. Após o resultado desastroso das guerras de Khosrow II [r. 591-628] contra o Império Bizantino, a família Sasan não conseguiu manter a unidade do império, com generais provincianos se autoproclamando imperadores e cunhando moedas em seus nomes [Daryaee, 2010: 43-45]. Yazdgerd III, o último imperador sassânida, foi coroado em 632, mesmo ano da morte do profeta Maomé, que foi seguida pelo estabelecimento do Califado Rashidun [632-661] e o início da guerra santa islâmica sobre Bizâncio e o Império Sassânida [Zarrinkub, 1975: 1]. Ele viveu um reinado errante, pressionado a se deslocar para o leste do império devido aos avanços árabes no Irã, facilitados pelo sectarismo instalado no território [Daryaee, 2010: 51-52]. Seu assassinato na cidade de Merv em 651 marca o fim do Império Sassânida para a historiografia, abrindo o caminho para a expansão do islamismo sobre a Ásia Central, mas os povos que viviam nas regiões na fronteira leste do império, como Sistão, Cabulistão, Tocarestão e Sogdiana, resistiram ativamente à dominação árabe sobre seus territórios até o início do século VIII [Rezakhani, 2017: 173].

 

Essa resistência teve a participação de descendentes de Yazdgerd III, dos quais o príncipe Peroz é o mais conhecido, por buscar o apoio da maior potência política, militar e cultural da Ásia naquele momento: a China Tang. Conhecemos sua história devido ao registro feito pelos historiadores chineses no Jiu Tang Shu [Velho Livro de Tang] e no Xin Tang Shu [Novo Livro de Tang], as duas Histórias Oficiais [em chinês, Zhengshi 正史] referentes à Dinastia Tang, que narram a trajetória de Peroz desde sua resistência militar na Ásia Central, após um pedido de ajuda ao Imperador Tang Gaozong [r. 649-683], até sua ida à corte chinesa em Chang’an, onde recebeu um título militar do imperador e viveu o resto de seus dias. Neste texto, buscarei contextualizar a trajetória de Peroz do Irã até a corte Tang dentro das relações políticas existentes entre a China e o Império Sassânida ao longo do tempo e das transformações que ocorriam no continente asiático ao longo do século VII.

 

Os primeiros contatos entre a China e a região do Irã foram estabelecidos no século II AEC, durante o reinado do Imperador Han Wudi [r. 141-87 AEC], a partir das viagens de Zhang Qian para as terras a oeste da Dinastia Han [206 AEC-220 EC]. Elas iniciaram as trocas diplomáticas e comerciais entre os chineses e as chamadas “Regiões Ocidentais”, inaugurando o início da Rota da Seda, entendida aqui tanto como “um conjunto de estradas e trajetos comerciais abertos pela China entre o leste asiático e o mar Mediterrâneo” quanto como “um processo de aproximação cultural entre diferentes sociedades asiáticas” [Pinto, 2023: 8]. A posição geográfica do Irã colocou rapidamente a região no papel de intermediadora das relações econômicas e culturais entre a China, a Índia e o Mediterrâneo [Tashakori, 1974: 1], exercido primeiro pelo Império Parto [247 AEC-224 EC], contemporâneo à Dinastia Han, e, posteriormente, pelos sassânidas.

 

A ascensão do Império Sassânida coincidiu com o fim da Dinastia Han e a fragmentação política do território chinês, o que impediu o contato diplomático entre as duas regiões por alguns séculos. Foi durante a Dinastia Wei do Norte [386-535], resultado da unificação territorial dos povos turco-mongóis que habitavam o norte da China pelos Tuoba Wei, que as relações diplomáticas entre sassânidas e chineses foram estabelecidas. É também nesse momento que os chineses passam a se referir à região não mais pelo termo Anxi 安息, transliteração do nome do imperador parto Ársaces I, mas pelo termo Bosi 波斯, provavelmente derivado do nome Pars [ou Pérsia], província natal da família Sasan [Tashakori, 1974: 42].

 

O Wei Shu [Livro de Wei] registra a primeira embaixada sassânida enviada à corte chinesa, no ano 455, durante o reinado do imperador Yazdgerd II [r. 439-457]. Segundo János Harmatta [1971: 136], a maior parte do governo de Yazdgerd foi marcada pela guerra contra os quidaritas, e a busca por apoio político e militar é uma possível motivação para o envio de uma delegação à China. Depois disso, o imperador Peroz I [r. 459-484] enviou quatro embaixadas à corte Wei, entre 461 e 479; para Abbas Tashakori [1974: 42-44], elas também foram motivadas pela constante ameaça heftalita à fronteira leste do Império Sassânida. Embora nenhuma ajuda chinesa tenha chegado em ambos os casos, o envio dessas embaixadas demonstra que os sassânidas não apenas buscavam cultivar relações amigáveis com os chineses, como também viam neles um possível aliado contra os povos nômades que não apenas comprometiam a segurança de suas fronteiras, como atrapalhavam o fluxo de mercadorias vindas do leste asiático para o Irã.

 

Embora a maior parte das iniciativas diplomáticas tenham vindo do Império Sassânida – segundo Tashakori [1974: 47], as Histórias Oficiais chinesas registram a chegada de, pelo menos, dezessete delegações sassânidas na China, entre 455 e 648 –, os chineses também enviaram, em menor escala, algumas missões para a Pérsia, atestando as boas relações entre as duas regiões. Uma tradição iraniana relata que a corte sassânida recebeu uma embaixada chinesa durante o reinado de Khosrow I [r. 538-578], um dos períodos mais prestigiosos da história sassânida, e as fontes chinesas relatam o envio de emissários chineses ao Império Sassânida pelo menos uma vez na Dinastia Wei e uma na Dinastia Sui [581-618] [Tashakori, 1974: 45-46].

 

A ascensão dos Tang na China coincidiu com o início da desintegração do Império Sassânida, que, segundo Touraj Daryaee [2010], pode ser dividida em três fases. A primeira consistiu no declínio da legitimidade monárquica da família Sasan entre 628 e 630, causada pelo fracasso da guerra contra os bizantinos durante o reinado de Khosrow II, e agravada pelo fratricídio cometido por Kawad II [r. 628-630]. A segunda foi o período de sectarismo e divisão, quando vários concorrentes políticos se autoproclamaram imperadores em diversas províncias do império entre 630 e 636, demonstrando a fraqueza do poder central. A terceira e última corresponde ao reinado errante de Yazdgerd III [632-651], que tentou restabelecer um governo legítimo, mas precisava se manter continuamente em movimento para se fazer presente entre as elites locais do império, o que impediu uma organização política e militar capaz de frear os avanços árabes sobre o Irã, forçando o deslocamento contínuo de Yazdgerd III para as províncias a leste do império.

 

Enquanto isso, na China, o processo de reunificação territorial e política iniciado pela Dinastia Sui foi consolidado no início da Dinastia Tang, inaugurando um período que seria “unanimemente considerado uma ‘era de ouro’ para a civilização chinesa, marcado por um intenso desenvolvimento cultural, tecnológico, literário e cosmopolita” [Pinto, 2023: 62]. A estabilidade interna do início da dinastia permitiu aos primeiros imperadores Tang voltar os olhares para o exterior, levando à expansão territorial e da área de influência chinesa sobre a Ásia Central, que atingiu o seu ápice em meados do século VII, após a destruição dos Turcos Orientais e o restabelecimento do Protetorado das Regiões Ocidentais em 640 [r. [Pinto, 2023: 70-71].

 

É neste contexto que, em 647, Yazdgerd III envia uma embaixada à corte chinesa em Chang’an, poucos anos antes de seu assassinato em Merv, em 651. Essa informação está presente no Jiu Tang Shu [Forte, 1996: 361], e é reforçada pelo historiador árabe al-Tabari na obra Tarikh al-Rusul wa al-Muluk [História dos Profetas e Reis], que diz que Yazdgerd enviou mensageiros aos líderes dos turcos, dos sogdianos e da China pedindo auxílio contra os árabes [Smith, 1994: 54]. Como vimos, a busca por ajuda chinesa contra inimigos pode ter um precedente na história sassânida [nos casos de Yazdgerd II e Peroz I], mas “provavelmente a grande distância e […] a presença dos Turcos Ocidentais no meio do caminho, tornariam qualquer tentativa de intervenção militar insustentável e arriscada demais para os chineses” [Oliveira, 2021: 42].

 

As coisas seriam diferentes durante o reinado de Tang Gaozong [r. 649-683], com o colapso dos Canato Turco Ocidental em 658 e a submissão dos povos que se encontravam sob o seu território aos chineses, colocando o Império Tang no seu ápice de expansão sobre a Ásia Central [Oliveira, 2021: 45]. Naquele momento, o domínio chinês nas Regiões Ocidentais se estendia da Bacia do Tarim até as fronteiras do Irã Oriental e, para administrar terras tão distantes, a Dinastia Tang adotou uma política externa que foi definida por Wang Zhenping [2013: 8-10] como “pluralismo pragmático”: conhecendo o caráter fluido e mutável das relações políticas das sociedades nômades de fronteira, os Tang concluíram que seria impossível controlar completamente e permanentemente aquelas regiões, optando por um sistema de governo indireto [em chinês, jimi 羈縻, literalmente “rédeas de cavalo e cabresto de gado”] que empregava os próprios líderes locais na administração das áreas conquistadas em troca de tributos regulares à corte chinesa em Chang’an. Esses territórios eram organizados em Prefeituras [zhou ] e Comandos de Área [dudufu 都督府] e respondiam aos Protetorados [duhufu 都護府], jurisdições comandadas por oficiais Tang que interferiam nas questões locais apenas quando necessário [Skaff, 2012: 247-249].

 

Segundo o Jiu Tang Shu e o Xin Tang Shu, após a morte de Yazdgerd III, seu filho Peroz fugiu para o Tocarestão e, em 661, enviou um memorial à corte chinesa, informando sobre os ataques árabes ao seu território e pedindo auxílio militar. Em resposta, Gaozong enviou o magistrado Wang Mingyuan para estabelecer dezesseis Comandos de Área naquela região, recém-integrada ao sistema de governo indireto chinês após a queda dos Turcos Ocidentais, que responderiam ao Protetorado do Oeste Pacificado [Anxi duhufu 安西都護府]. Entre eles, o Comando de Área Persa [Bosi dudufu 波斯都督府] foi estabelecido na cidade de Jiling [疾陵城], identificada com a atual Zaranj, no Sistão, na fronteira entre o Afeganistão e o Irã [Harmatta, 1971: 140-141], e Peroz foi nomeado o seu comandante-chefe [dudu 都督]. Esse seria o mais longe que os braços do Império Tang chegariam no interior da Ásia e o controle, precário devido à distância e à ameaça árabe constante, também não duraria muito tempo: em 673, os árabes conseguem ocupar o Sistão e Peroz vai para Chang’an, sem nunca retornar ao Irã. Após sua morte, seu filho Narseh também tentou reestabelecer o controle sobre a região com o apoio militar do Tocarestão, retornando sem sucesso para a corte chinesa em 708 [Oliveira, 2021: 45-49].

 

De qualquer forma, a nomeação de Peroz para um comando no Sistão, uma das províncias sassânidas que mais resistiram à dominação árabe da região, nos indica que a família sassânida ainda possuía alguma legitimidade para a população e as elites locais do leste do Irã [Oliveira, 2021: 47]. Domenico Agostini e Soren Stark [2016] também demonstraram, a partir de documentos árabes, iranianos, evidências numismáticas e fontes chinesas, que, mesmo após a morte de Peroz e Narseh, descendentes [ou impostores que usavam o nome] da família Sasan continuaram reivindicando o controle sobre as áreas de Cabulistão e Zabulistão, no Irã Oriental, inclusive enviando embaixadas com tributos para a corte Tang até meados do século VIII, mesmo após a Batalha de Talas, em 751, sacramentar a dominação islâmica sobre a Ásia Central.

 

Enquanto, para os últimos sassânidas no leste do Irã, o apoio chinês representava a sua maior chance de recuperar o território perdido e restabelecer o Império Sassânida, para os chineses, a submissão de líderes estrangeiros “reforçava o ideal de superioridade da civilização chinesa sobre o mundo, com sua esfera de influência chegando em terras longínquas do Ocidente” [Oliveira, 2021: 51]. Esse ideal está bem representado na entrada para a tumba do Imperador Gaozong no Mausoléu de Qianling, rodeada por um grupo de estátuas de pedra em posição de reverência que retratam líderes e emissários estrangeiros que, em sua maioria, serviram à dinastia como vassalos ou oficiais militares. Para Tonia Eckfeld [2005: 23-25], essas estátuas, em conjunto com as outras esculturas que flanqueiam o caminho para a câmara funerária imperial, simbolizam a dimensão do poder acumulado pelo imperador em vida. Hoje, todas as estátuas estão decapitadas e com suas inscrições apagadas pelo tempo, mas algumas delas foram registradas na obra Chang’an Zhitu [Registro Ilustrado de Chang’an], escrita por Li Haowen durante a Dinastia Yuan [1279-1368], que inclui o nome de Peroz na lista de emissários estrangeiros [Pashazanous e Sangari, 2018: 502-503].

 

Vemos, portanto, que a história de Peroz é um bom ponto de partida para analisarmos o contexto político em que o Irã e a China se encontravam no século VII, evidenciando a existência de relações diplomáticas entre potências tão distantes quanto a China e o Império Sassânida, possibilitadas pelo desenvolvimento da Rota da Seda ao longo da Ásia Central, e que levaram ao exílio de um príncipe persa na corte chinesa em Chang’an. A relação entre os últimos sassânidas e a Dinastia Tang nos ajuda a entender o nível de complexidade das interações políticas entre as sociedades asiáticas naquele período.

Referências

Samantha Alves de Oliveira é licenciada e mestranda em História pela Universidade de Brasília, sob a orientação do professor Leandro Duarte Rust. Dedica-se, desde 2018, ao estudo das relações entre a China Tang e o Império Sassânida, utilizando como fonte principal o Jiu Tang Shu. E-mail: samanthaadeo@outlook.com

 

AGOSTINI, Domenico; STARK, Sören. “Zāwulistān, Kāwulistan and the Land Bosi 波斯 – on the question of a Sasanian Court-in-Exile in the Southern Hindukush”, in Studia Iranica, Paris, 45, 1, 2016, p. 17-38.

 

DARYAEE, Touraj. “When the End is Near: Barbarized Armies and Barracks Kings of Late Antiquity”. In: MACUCH, Maria et al. Ancient and Middle Iranian Studies: Proceedings of the 6th Euopean Conference of Iranian Studies, held in Vienna, 18-22 September 2007. Wiesbaden: Harrassowitz Verlag, 2010. p. 43-52.

 

ECKFELD, Tonia. Imperial Tombs in Tang China, 618-907: The Politics of Paradise. Nova York: Routledge Curzon, 2005.

 

FORTE, Antonino. “The Edict of 638 Allowing the Diffusion of Christianity in China”. In: PELLIOT, Paul; FORTE, Antonino. L’inscription nestorienne de Si-ngan-fou, edited with supplements by Antonino Forte. Kyoto: Paris: Collège de France, Institut des hautes Études Chinoises 1996. p. 375-428.

 

HARMATTA, János. “Sino-Iranica”, in Acta Antiqua Acadamiae Scientiarum Hungaricae 19, 1971, p. 113-147.

 

OLIVEIRA, Samantha Alves. O último sassânida? A narrativa do Jiu Tang Shu sobre o fim de um império persa. Trabalho de Conclusão de Curso [Licenciatura em História] – Universidade de Brasília, Brasília, 2021.

 

PASHAZANOUS, Hamidreza; SANGARI, Esmail. “The Last Sasanians in Chinese Literary Sources: Recently Identified Statue Head of a Sasanian Prince at the Qianling Mausoleum”, in Iranian Studies, Volume 51, Issue 4, 2018. p. 499-515.

 

PINTO, Otávio Luiz. Rota da Seda. São Paulo: Contexto, 2023.

 

REZAKHANI, Khodadad. ReOrienting the Sasanians: East Iran in Late Antiquity. Edimburgo: Edinburgh University Press, 2017.

 

SKAFF, Jonathan Karam. Sui-Tang China and Its Turko-Mongol Neighbors: Culture, Power and Connections, 580-800. Nova York: Oxford University Press, 2012.

 

SMITH, G. Rex [tr.]. The History of al-Tabari, Volume XIV: The Conquest of Iran. Albany: State University of New York Press, 1994.

 

TASHAKORI, Abbas. Iran in Chinese Dynastic Histories: A study of Iran’s relations with China prio to the Arab conquest. Tese [Master of Arts in Asian Studies] – Australian National University. Camberra, 1974.

 

WANG, Zhenping. Tang China in Multi-Polar Asia: A History of Diplomacy and War. Honolulu: University of Hawai’i Press, 2013.

 

ZARRINKUB, Abd Al-Husain. “The Arab Conquest of Iran and Its Aftermath”. In: FRYE, Richard Nelson [ed]. The Cambridge History of Iran, Volume 4: The Period From The Arab Invasion to the Saljuqs. Cambridge: Cambridge University Press, 1975, p. 1-56.

6 comentários:

  1. Parabéns pelo texto rico e informativo Samantha.
    Ficou claro que houve várias relações diplomáticas entre povos asiáticos nos séculos estudados, bem como disputas e apoios militares.
    O texto está claro e tem um objetivo bem direto. Por isso, minha dúvida seria em termos práticos, já que sabemos que esses temas ainda são novos no Brasil até nas universidades, e quase desconhecidos nas escolas. Claro que imagino o caso de licenciados em História, mas pode ser para aulas de Filosofia ou Geografia, também, por exemplo. Como você recomendaria que professores da educação básica (se preferir focar, só do Ensino Médio) poderiam trabalhar com essas informações em sala de aula tendo em vista uma educação intercultural e cidadã?

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    1. Oi, Matheus! Bom te ver por aqui e agradeço muito o seu comentário.

      Eu não sou professora do ensino básico, então realmente não me vejo como a melhor pessoa para responder essa pergunta, mas acredito que o ensino de história nas escolas precisa passar por uma reformulação curricular que abarque uma perspectiva de história mais global e inclusiva, de modo que haja espaço para que a história de outros povos - para além da Europa - sejam inseridos no curículo básico de uma forma que evidencie a grande diversidade da experiência humana ao longo do tempo e espaço, mas também as conexões e influências que esses povos exerceram uns sobre os outros nesse processo. Isso também envolve uma reformulação da grade curricular dos próprios cursos de licenciatura em história, que seguem reproduzindo o eurocentrismo acadêmico, mas eu já vejo mudanças positivas nesse sentido, com estudantes e pesquisadores cada vez mais interessados em quebrar essas barreiras.

      De qualquer forma, uma sugestão que eu daria para professores do ensino básico abordarem esse assunto, seria dentro de uma série de aulas sobre a Rota da Seda e sua importância nos processos históricos que abarcaram não apenas o continente asiático, mas também a Europa e a África, através do comércio no Mediterrâneo. Uma aula que mostrasse os contatos políticos, comerciais e culturais entre os vários povos que participaram do desenvolvimento da Rota da Seda, incluindo as trocas que ocorreram entre a China e o Império Sassânida, por exemplo. Quanto à bibliografia, a quantidade de trabalhos em língua portuguesa é realmente limitada, mas eu recomendaria o livro "Rota da Seda", do porfessor Otávio Luiz Pinto, como um ponto de partida interessante para estruturar o conteúdo.

      Espero que minha resposta tenha sido satisfatória e continuo à disposição para mais perguntas.

      Samantha Alves de Oliveira

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    2. Muito obrigado, Samantha! Respondeu sim, e vou guardar com carinho a resposta para ser aplicada e sugerida a colegas em um momento oportuno.

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  2. Boa tarde,

    Antes de tudo, parabéns pelo texto. Ele deixa claro a extensão dos contatos diplomáticos entre a China e o império sassânida.

    Minha pergunta é focada menos na área política ou diplomática, mas na esfera cultural. Existem indícios de um intercâmbio religioso ou intelectual entre a China e a Pérsia sassânida? Ou o contato entre essas duas civilizações permaneceu restrito ao comércio de bens materiais e o envio de embaixadas com tributos por parte dos persas?

    Atenciosamente,
    Vinícius Andrade de Araújo

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    1. Oi, Vinícius, agradeço muito pelo seu comentário. E sim, também houve um intercâmbio cultural entre as duas regiões, que antecedem o período sassânida, sobretudo por intermédio dos povos iranianos da Ásia Central através da Rota da Seda.

      O budismo chinês, por exemplo, foi muito influenciado por monges iranianos, que foram responsáveis pela tradução de várias obras budistas do sânscrito para o chinês. Um destaque vai para o monge budista An Shigao 安世高 (fl. 148-170 EC), que, segundo a historiografia chinesa, era um príncipe parto (identificado pela historiografia como um dos filhos do rei Pácoro II, r. 78-116 EC) que foi para a China e fundou uma escola de tradução de textos budistas para o chinês. Durante o período sassânida, embora a religião oficial de Estado fosse o zoroastrismo, o budismo era muito praticado nas províncias orientais do império, que desenvolveram um estilo artístico próprio em sua iconografia budista, que se espalhou pela Ásia Central e chegou ao norte da China, sendo predominante nos oásis da Bacia do Tarim.

      O próprio zoroastrismo também chegou na China durante o período sassânida (a partir do século VI), por intermédio sobretudo dos sogdianos, e que se tornou especialmente popular durante as dinastias Sui e Tang, marcadas por um grande fluxo de imigrantes persas na China. A maior parte dos praticantes eram estrangeiros de origem iraniana que viviam no norte da China, mas templos zoroastristas foram construídos em várias cidades importantes, como Chang'an e Luoyang, as duas capitais da dinastia Tang. No entanto, o zoroastrismo não ganhou muitos adeptos entre os chineses (se eu não me engano, eles eram proibidos de praticá-la) e era visto como uma religião estrangeira.

      O Cristianismo Nestoriano - ou Igreja do Oriente - foi introduzido na China no final do Império Sassânida, com a chegada do sacerdote persa Aluoben 阿羅本 em 635 e, em 638, foi construída a primeira igreja nestoriana na China, a pedido do imperador Tang Taizong. Segundo a estela funerária de Aluoben, encontrada em Chang'an, ele era um nobre persa que recebeu títulos oficiais similares aos de Peroz, e que, por isso, os historiadores acreditam que ele fazia parte da família real sassânida. Isso não seria tão absurdo, dado que o próprio Peroz mandou construir um templo em Chang'an que provavelmente era nestoriano e, embora a religião oficial do Império Sassânida tenha sido o Zoroastrismo, os últimos imperadores sassânidas tinham uma ligação muito próxima com o nestorianismo. Se eu não me engano, há uma história sobre Yazdgerd III ter sido enterrado (prática proibida pelo zoroastrismo) e velado por um sacerdote nestoriano, por exemplo. Como o zoroastrismo, o nestorianismo também era visto como uma religião de estrangeiros.

      Durante o período Huichang (841-845), no reinado do imperador Tang Wuzong (r.840-846), iniciou-se uma perseguição a religiões estrangeiras na China, incluindo o budismo, o zoroastrismo e o nestorianismo. Dessas, apenas o budismo, por já ter sido fortemente assimilado pelos próprios chineses, se manteve vivo na cultura chinesa, e os praticantes do zoroastrismo e do nestorianismo, em sua maioria não-chineses, passaram por um processo de sinicização, levando ao declínio das práticas na China. O nestorianismo passou por um revivamento na Dinastia Yuan e o zoroastrismo desapareceu quase por completo.

      O que eu conheço mais e, portanto, tenho mais propriedade para falar, é sobre essas influências religiosas do Império Sassânida sobre a China. Mas sei que existem estudos sobre a influência iraniana na arte chinesa, sobretudo na região do Norte da China. Quanto ao caminho contrário - influências chinesas sobre a cultura sassânida - confesso que desconheço, mas sua pergunta me incentivou a colocar esse tópico na minha lista de pesquisas futuras.

      Espero ter respondido com clareza e estou à disposição caso haja mais alguma dúvida!

      Samantha Alves de Oliveira

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