OSSAN’S LOVE (2018) COMPARADO: CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL E A IMPRESSÃO DE PERSONAGENS LGBTQIAPN+ NO JAPÃO, por Fernando de Barros Honda e Pedro Gabriel de Souza e Costa

 

Escrito por Tokuo Koji e dirigido por Yuki Saito e Ruto Toichiro, Ossan’s Love S1 é um dorama de 2018 que relata o cotidiano de Haruta Soichi, um corretor imobiliário que começa a viver sozinho depois de sua mãe decidir sair de casa para não ter mais que cuidar do filho que, apesar de adulto, se porta como um adolescente. Com isso, Soichi começa a dividir a casa com Maki Ryota, novo membro da equipe da imobiliária que, pouco tempo depois de se mudar, declara seu amor pelo protagonista. No mesmo período, Kurosawa Musashi, chefe de Haruta, também declara sua paixão por este, chegando a pedir o divórcio a Kurosawa Choko, sua esposa até então. Vemos que essa paixão é antiga, remetendo ao início da relação profissional dos dois, anos antes, quando Haruta era um jovem aprendiz.

 

Ao descobrir sobre o possível desenvolver de relacionamento entre Haruta e Maki, Takegawa Masamune, outro empregado da imobiliária, começa a sondar o protagonista afim de saber o que se passa, sendo por muitas vezes efusivo. No decorrer da trama descobrimos que Masamune é ex-namorado de Maki. Nesse ponto, temos novamente um relacionamento de origem profissional se transformando em amoroso, afinal, Maki era um recém graduado que teve Masamune como seu “mentor” ao entrar no mundo do trabalho.

 

O que se tem a partir daí são diversas idas e vindas com um Haruta confuso com o que está acontecendo, sem saber o que de fato está sentindo, pois, segundo ele mesmo, nunca havia imaginado se relacionar com outro homem. Apesar desse turbilhão, aparentemente o se relacionar com alguém do mesmo sexo não é visto como um problema, Arai Chizu, amiga de infância de Haruta, inclusive dá seu apoio ao protagonista sem o julgar. Mas até que ponto o que é apresentado no dorama reflete o social? Para pensar essa questão investigamos algumas construções. Primeiro, propomos compreender o contexto histórico dos doramas dimensionado aos BL’s, para indicar o processo do papel e da impressão a partir da série.

 

Partindo dos doramas, eles surgem no Japão após a Segunda Guerra Mundial conforme a economia do país melhorava e os aparelhos de televisão se popularizavam, passando a fazer parte do cotidiano (FRANÇA, 2011). O período pós-guerra é marcado por uma mudança no estilo de vida do povo japonês, os homens começam a passar mais tempo fora a trabalho e as mulheres permanecem em casa, com isso, diversos doramas as tinham como público-alvo.

 

Paralelo a isso, por volta dos anos 1960/1970 romances entre meninos começaram a ser escritos pelo público feminino. De acordo com Julio Santos (2017), nessas estórias, chamadas de Boys Love, ou BL’s, o casal composto por dois homens acaba por ter, tradicionalmente, características andrógenas, quase angelicais, contudo, com papéis bem definidos. Enquanto um, que poderíamos considerar o ativo, carrega os estereótipos do papel social masculino, o outro, o passivo, possui características e atitudes ditas femininas.  Nessas estórias, as personagens raramente se veem ou se assumem como homossexuais ou se aprofundam em sua sexualidade. O que temos geralmente são homens que dizem nunca terem sentido nada parecido por outro homem, se relacionado até então somente com mulheres ou nunca tendo se relacionado amorosamente com ninguém. Dessa forma, o dito encontro de almas é algo único e mágico.

 

Esta maneira de retratar os relacionamentos homoafetivos começa a ser mais criticada a partir dos anos 1990 por aqueles que não se sentiam representados, uma vez que, mulheres estavam escrevendo por meio de uma visão exterior, muitas vezes tratada como romantizada e sem debater aspectos de grande importância, como o preconceito, direitos e relacionamentos reais (SANTOS, 2017). Vale frisar que o grande público desse tipo de conteúdo também é feminino, sendo necessário, para entendermos os motivos do sucesso dos BL’s, mesmo com a existência de um preconceito ainda que velado, na sociedade japonesa, voltarmos às origens do povo japonês.

 

No Shinto, primeira doutrina espiritual do Japão, consta como mito criador que primeiro vieram deuses masculinos e, apenas, na quarta geração veio a surgir uma entidade feminina (Izanami), que pede a entidade masculina (Izanagi), em casamento, mas desta união acabam saindo monstros. Somente quando a ordem se inverte e é Izanagi quem realiza o pedido, afinal isso é visto como papel do homem aos olhos dos deuses, é que são gerados os filhos mais perfeitos: as ilhas e elementos da natureza (SAKURAI, 2014). Nessa perspectiva, o papel das mulheres seria o de gerar, isso é obviamente uma redução, mas que ilustra a forma como elas viriam a ser vistas: a base de uma pirâmide cujo topo deveria ser ocupado pelo homem.

 

Conforme a nação se desenvolvia, acaba entrando em contato com monges chineses e consequentemente adotando o budismo, assim, homens japoneses começaram a viver nos templos desde a infância, afastados das mulheres. Nesses templos a prática sexual não era permitida, porém, a prática com mulheres era punida com veemência em detrimento da que porventura viesse a ocorrer entre os homens. Com o passar do tempo era inclusive comum que os mestres se relacionassem com seus discípulos, na verdade isso fazia parte do ciclo: “O laço fraternal criado entre mestre e discípulo era, antes de erótico, considerado uma extensão da relação superprotetora entre professor e aluno muito característica da sociedade japonesa mesmo nos dias de hoje” (SANTOS, 2017, p.23-24). No decorrer dos séculos, o Japão se torna um país feudal, no entanto, os relacionamentos observados nos templos budistas permaneceram sendo usuais nos castelos regidos por samurais. Ou seja, os samurais se relacionavam com seus jovens aprendizes. Nesse período, surge uma figura importante: o Wakashu.

 

O Wakashu era o nome dado aos meninos que estavam passando pela puberdade, entre a pré-adolescência e os primeiros anos da vida adulta, muitas vezes ainda com traços andrógenos, que se penteavam e vestiam trajes específicos, parecidos com as das mulheres. Não obstante, por essas características, acabavam por ser considerados pertencentes a um terceiro gênero, nem homem, nem mulher e os homens que se relacionavam com eles não necessariamente se atraiam por outros homens. Quando a relação era entre um samurai e um wakashu havia a troca de votos de amor eterno, similares aos presentes em um casamento formal (SAIKAKU, 1990). O que se evidenciava era distinção entre os papeis atribuídos, o mais velho como “homem” e o mais novo, o wakashu, como a “mulher”, este último deixando esta posição ao se tornar adulto, podendo constituir família com uma mulher ou então se relacionar com outro – ou outros - wakashu. Como observamos, as relações homoafetivas, pensando especificamente na entre homens, pelo menos entre um mais velho e um mais novo, não eram vistas como algo errado, pelo contrário, mas claro que as coisas mudariam com a abertura dos portos ao ocidente.

 

Na segunda metade do século XIX o Japão sofria pressão para se abrir ao comercio internacional, conforme chegavam os primeiros navios a sociedade se transformava mais uma vez. De acordo com Santos (2017), durante o período em que se mantiveram isolados, os japoneses se desenvolveram tecnologicamente, porém, aqueles que vinham do ocidente faziam questão de convencê-los de sua superioridade, cobrando do povo nipônico equiparação ao modelo capitalista ocidental. Dessa forma, a sociedade japonesa ao aproximar-se do ocidente, adotando diversos aspectos culturais, teve suas práticas seculares repreendidas, o que até então era comum e visto como sinal de respeito, não era mais admissível, sendo inclusive, em um primeiro momento, caracterizado como sodomia e proibido por lei (LUNSING, 2005). O preconceito perdurou por todo o século XX e a comunidade LGBTQIAPN+, como um todo, só começa a receber alguma atenção ao final deste e início do novo milénio.

 

A partir dessa contextualização, podemos pensar Ossan’s Love. Lançado em 2018, o dorama conseguiu sair de seus esteriótipos, surpreendendo por agradar um público mais abrangente que tradicionalmente atingido pelos BL’s. Com base no estudo de Miyuki Morikawa (2022) acerca da efetividade das mensagens paratextuais da série, é possível começar a compreender o que pode explicar tal situação. O primeiro ponto seria que apesar de os diretores trataram a estória como um conto de amor, sabiam que o foco do público estaria no ossan - homem de meia idade. A maioria dos artigos sobre a série a tratou como um romance entre homens, evitando usar termos como gay ou homossexual, a autora ainda fala de como os publicitários japoneses, na maioria das vezes, não focam na diversidade sexual quando realizam as sinopses promocionais de filmes com temática LGBTQIAPN+, substituindo termos como “homossexual romance” por “human romance” (MORIKAWA, 2022, p 11).

 

O estudo de Morikawa (2022) reforça que os BL’s são consumidos majoritariamente por mulheres que, por não poderem se relacionar com homens enquanto homens gay, em teoria, viveriam de alguma forma essa fantasia por meio dessas produções, um tipo de “mundo dos sonhos”, idealizado, onde seriam possíveis reflexões acerca da sexualidade e um escape das normas sociais. Nessa lógica, o envolvimento entre homens seria visto como sublime, pois, por se tratar justamente de dois homens, estariam equiparados, sem que um subjugasse o outro, uma relação igualitária.

 

Em Ossan’s Love, Musashi, em muitos artigos é chamado de “protagonista feminina” (MORIKAWA, 2022) por agir como uma adolescente de romances colegiais. Enquanto alguns grupos viam a estória como comédia, outros a viam como uma estória de amor, independente disso, ao que parece, os espectadores se afeiçoaram a personagem do “chefe”, independentemente de sua orientação sexual. A aceitação do drama abarcou tanto o público LGBTQIAPN+ que, cansados de estórias com uma abordagem trágica do tema, se viu de certa maneira representado, quanto o público heterossexual que, mesmo não consumindo tais produções com frequência, simpatizou com os romances entre as personagens, não os ridicularizando ou criticando. Contudo, quando se fala da produção no âmbito da discussão da conquista de direitos, o impacto, inicialmente, seria baixo, já que, no mundo apresentado, as personagens LGBTQIAPN+’s parecem já ter seus direitos civis garantidos e serem totalmente aceitas. Por outro lado, essa “realidade” poderia sugerir um futuro melhor, aparentemente aceito pela audiência (MORIKAWA, 2022).

 

Em suma, Morikawa (2022) nos diz que a maneira como Ossan’s Love foi promovido e trabalhado, mascarando o conteúdo ao rotulá-lo como uma estória de amor entre homens ou simplesmente não mencionando este aspecto, fez com que a série fosse assistida por outras pessoas que normalmente não a consumiriam, principalmente por homens heterossexuais, o que seria positivo por um lado. Todavia, o dorama pode sim ser criticado por mostrar membros hetero e homossexuais da sociedade vivendo em harmonia quando pensamos na representatividade, nas leis e nos direitos LGBTQIAPN+, já que o Japão, com toda a sua relevância no mundo do entretenimento, atualmente se encontra longe do ideal.

 

Na série é possível vermos os aspectos trabalhados até aqui. Haruta é mostrado como tendo tido somente relacionamentos heterossexuais, se enquadrando no que se espera dos BL’s, ao contrário de Maki, que seria uma quebra com a fórmula, tendo em vista suas relações prévias com outros homens. Santos (2017) deixa claro em sua pesquisa que o observado em relação aos wakashus não se aplica diretamente aos BL’s, contudo não podemos ignorar que além das características que poderiam ser confundidas tradicionalmente, em Ossan’s Love existem duas situações que dificultam mais a separação desses pontos.

 

Em flashbacks somos apresentados a um Haruta mais jovem, um aprendiz de Musashi, que por sua vez se apaixonando por seu pupilo, mantendo tal paixão em segredo por dez anos. Em outra ocasião, descobrimos que Takegawa, no passado, fora namorado de Maki, tendo o conhecido quando este havia recém-saído da faculdade, ou seja, Takegawa também exerceu o papel de “mestre”. Musashi, por sua vez, declara seu amor por Haruta aos quatro ventos – por mais de uma vez -, remetendo a troca de votos dos samurais com seus wakashus. Dessa forma, poderíamos - deixando bem claro que não podemos afirmar - dizer que as situações apresentadas se assemelham ao visto previamente.

 

Por fim, se por um lado essa maneira de interpretar o dorama parece uma superação de preconceitos, e quiçá reminiscências de um Japão de outrora, por outro, teríamos um Musashi visto por um viés cômico – que inicialmente não seria algo errado – e com características de uma protagonista feminina, reforçando que, mesmo as relações apresentadas serem de certa forma normalizadas e respeitadas por todos dentro do dorama, os estereótipos permanecem e são reforçados.

 

É evidente que a presença de estereótipos e discussões sobre o que seria feminino – ou mesmo visão feminina – ainda permeiam nos estudos sobre o dorama, no entanto, esta pode ser considerada uma lente do papel considerado da mulher, estrito ao campo cisgênero­ e dito feminino. Em Ossan’s Love S1 há o transbordar da tela para o cotidiano midiático, o que reforça os papéis ativo/passivo, feminino/masculino ao apresentar os atores interagindo em eventos, redes sociais e promocionais como se ainda estivessem na série. Os atores acabam por incorporar os papéis estabelecidos no audiovisual e na sociedade, o que reforçaria um ciclo de naturalização, sendo este o processo de impressão a partir da imagem.

 

De acordo com Constantin Stanislavski, as impressões:

 

“deixam no trabalho do ator uma marca permanente. São livres de premeditação e de preconceito. Não sendo filtradas por nenhuma crítica, passam desimpedidamente para as profundezas da alma do ator, para os mananciais de sua natureza, e muitas vezes deixam vestígios inextirpáveis, que permanecerão como base do papel, o embrião de uma imagem a ser formada” (2021, p. 21).

 

Na série isto é um misto de leveza e questionamento, pois, se trabalharmos somente o que está superfície, acabamos ignorando um gigantesco iceberg que se esconde logo na relação da imagem vinculada dos atores no cotidiano com o que se passa na tela. A camada da imagem escamotearia a relação do cotidiano com a série, pois os atores teriam a mesma relação que há no show de entretenimento.

 

O audiovisual torna-se então, pelo ciclo, o reforço de estereótipos que têm a ambígua característica de naturalizar relações homoafetivas com o encaixe de papéis já estabelecidos do que seria o feminino e da mulher. Neste contexto, podemos entender de qual forma a série se relacionaria com a sociedade, seria a partir da imagem. Conforme António Damásio:

 

 “os padrões mapeados constituem o que nós, criaturas conscientes, conhecemos como visões, sons, sensações táteis, cheiros, gostos, dores, prazeres e coisas do gênero — imagens, em suma. As imagens em nossa mente são os mapas momentâneos que o cérebro cria de todas as coisas dentro ou fora de nosso corpo, imagens concretas e abstratas, em curso ou devidamente gravadas na memória [...] imagens auditivas, visuais ou somatossensitivas [...]” (2011, p. 95-96).

 

Ossan’s Love S1, em síntese, é uma oportunidade para questionar os papéis de gênero, os relacionamentos, a cultura e história do Japão em um plano de fundo do cotidiano.

           

Referências

Fernando de Barros Honda é doutorando em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), mestre em Comunicação e Linguagens pela Universidade Tuiuti do Paraná (UTP-Bolsista CAPES). Graduado em fotografia e graduando em letras – português e japonês pela Universidade Positivo. Coordenador do Projeto AsianTelas [www.gptelas.com/asiantelas], ligado ao grupo de pesquisa Telas: cinema, televisão, streaming, experiência estética.

 

Pedro Gabriel de Souza e Costa é mestrando, pesquisador CAPES com bolsa

integral do PPGCom da Universidade Tuiuti do Paraná, Curitiba, e Coordenador do Projeto AsianTelas [www.gptelas.com/asiantelas], ligado ao grupo de pesquisa Telas: cinema, televisão, streaming, experiência estética.

 

DAMÁSIO, António. E o cérebro criou o homem. Tradução de Laura Teixeira Motta. 1. ed. São Paulo: Companhia das letras, 2011.

 

FRANÇA, Bárbara Lisiak de. HANA YORI DANGO: O FENÔMENO DO DORAMA NO BRASIL. Monografia (Graduação em Comunicação Social) – Faculdade de Comunicação, Universidade Federal da Bahia. Salvador, p. 78. 2011.

 

LUNSING, Wim. LGBT Rights in Japan. Peace Review: A Journal of Social Justice, United Kingdom, v. 17, p. 143-148, 2006.

 

MORIKAWA, Miyuki. The Effective Paratextual Messages of the Japanese Gay TV Drama Series Ossan’s Love. Expert Journal of Marketing, v. 10, n. 1, p. 11-20, 2022.

 

SAIKAKU, Ihara. The great mirror of male love. Tradução de Paul G. Schalow. Palo Alto: Stanford University Press, 1990.

 

SAKURAI, Célia. Os japoneses. 2a ed. São Paulo: Editora Contexto, 2014.

 

SANTOS, Julio Fernando Oliveira dos. O PREGO QUE SALTA É LOGO MARTELADO: PRODUZINDO E NEGOCIANDO DISCURSOS SOBRE A HOMOSSEXUALIDADE NO JAPÃO. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Ciências Sociais) – Universidade Federal Fluminense, Coordenação de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, p. 132. 2017.

 

STANISLAVSKI, Constantin. A criação de um papel. Tradução de Pontes de Paula Lima. 28. ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2021.

7 comentários:

  1. Como a abordagem das impressões no trabalho do ator, conforme descrito por Constantin Stanislavski, se relaciona com a representação de papéis de gênero, relacionamentos e cultura japonesa na série Ossan’s Love S1, considerando a influência das imagens na mente humana?

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    1. Fernando de Barros Honda10 de agosto de 2023 às 16:57

      Obrigado pela pergunta, Anna Soares. Primeiro, gostaria de contextualizar o autor: Stanislaviski não utiliza o termo "representação", sei que eu e o professor Pedro em nosso texto utilizamos no decorrer do texto representado, representados e etc., no entanto, a localização da palavra está de fato no escopo do senso comum de identidade, assim como quando elejemos uma só pessoa para a partir dela diversas outras poderem ter voz. Bom, Stanislaviski vai para outro lugar que de certa forma é aquém a representação, pois em seu texto o termo utilizado é o "encarnar". Para ele o autor encarna o papel e assim o personagem aparece, portanto, não diz respeito a representar o papel mas, sim, encarná-lo. Ele se torna o personagem, ele é o personagem. Veja por exemplo Zé do Caixão, que mesmo sendo José Mojica Marins, ao encarnar Zé do Caixão no tamanho das unhas. Assim, os atores em OSSAN'S Love permanecem no papel da série mesmo em outras formas de mídia, como em fotos no instagram, vídeos e entrevistas para o streaming, ou mesmo na televisão japonesa, assim, o que o público compreende como papel de gênero - os esteriótipos ou trejeitos masculinos ou femininos - são reforçados pelos atores a todo o momento, tanto no dito "real" quanto "ficcional". As imagens mentais a que Antonio Damasio menciona decorrem desse campo semântico, da experiência do público, imagens podem ser ou não literalmente oque se vê a partir dos olhos, mas o cerno seriam nas imagens construídas peli imbricamento do dia a dia. Sabe quando você olha para algo e pensa imediatamente em alguma coisa para sistematizar o que se vê? Pode ser uma palavra, uma lembrança, enfim uma relação que se faz a partir da cognição. O resultado disso é: os papéis sociais em OSSAN's Love simplesmente são reproduzidos pelos atores, seja por viverem naquela sociedade, pelos olhares dos produtores ou do marketing e no reforço que o público lhes mostra. Essas são as impressões. Algo que não passa por um filtro racional, pois está ali e engatilha o encarnar a partir delas o papel no ator dando vida à personagem.

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  2. De que maneira a incorporação desses papéis pelos atores, tanto no audiovisual quanto na sociedade, pode contribuir para um ciclo de naturalização e perpetuação desses padrões, como discutido no texto?

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    1. Fernando de Barros Honda10 de agosto de 2023 às 17:03

      Anna, essa pergunta tem relação com a resposta anterior, vou a partir dela continuar o pensamento. O ciclo de naturalização advém da "representação", justamente o olhar de identidade. O público ao observar a obra recebe as impressões e devolve novamente para quem produz e atua - literalmente ou não - na série. Isso é algo intrínseco na vivência humana. Tanto pelos veículos midiáticos quanto no cotidiano as relações causam mudanças ou naturalizações. O ciclo começa a se romper quando há uma quebra no transpasse dessas impressões, o que causaria um estranhamento no público, mas com o tempo o amortecimento decorre e temos um início de mudança no paradigma. Em suma, os atores imbuídos de romper o ciclo dos padrões de naturalização, no caso os papéis de gênero, não deveriam ter as próprias divisões de padrão de gênero.

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  3. Maria Paula de Andrade Praia8 de agosto de 2023 às 15:21

    Excelente artigo, especialmente por traçar um panorama da indústria do BL e da prática sexual homoafetiva no Japão. É pertinente destacar que, apesar de romper paradigmas, o drama carrega resquícios de estereótipos de gênero, algo ainda bem presente no audiovisual. Eu ainda não pude assistir Ossan’s Love (2018), no entanto, assisti outro drama de sucesso, “Kinou Nani Tabeta” (2019). Este é adaptado de um mangá seinen (voltado para homens jovens) que não necessariamente entra na categoria de BL, mas sim de “food drama”, apresentando um casal homoafetivo na faixa dos quarenta anos que vivem juntos e tem como elemento central um dos pilares da cultura japonesa: a comida. A série de TV, no entanto, obteve sucesso maior entre mulheres de meia idade. Com isso em mente, gostaria de fazer duas perguntas:

    1. Qual seria o principal motivo para o crescente número de adaptações live-action de obras de sucesso como Ossan’s Love (2018) e Kinou Nani Tabeta (2019)?

    2. Dado que existe uma distinção entre representação e realidade dos indivíduos LGBTQIA+ na mídia, surge uma preocupação de que esses dois aspectos possam se confundir, especialmente considerando a natureza da narrativa transmídia. Quais seriam os possíveis efeitos positivos e negativos da representação de relacionamentos do mesmo gênero na mídia e como isso pode influenciar a aceitação e o entendimento da diversidade sexual pela sociedade japonesa?

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    1. Pedro Gabriel de Souza e Costa9 de agosto de 2023 às 14:47

      Olá, Maria Paula. Primeiramente, muito obrigado pelo comentário e pelas perguntas. Vamos lá.
      Bom, sobre a primeira pergunta, o que posso dizer é que provavelmente se trate de uma questão financeira. Se um determinado produto fez sucesso com um determinado público e gerou um determinado lucro, existe a possibilidade de ampliar seu alcance. Isso é observado em outras obras, inclusive quando vemos versões ocidentais de produtos orientais. Por exemplo, como você constatou, o mangá é voltado aos homens jovens, mas quando é levado para o audiovisual, abarca as mulheres de meia idade que não consumiriam o mangá. Dessa forma, dois públicos são atingidos e, ao mesmo tempo, poderia instigar uma procura inversa - homens jovens interessados em conhecer o live-action e o inverso também -, aumentando novamente os ganhos.
      Agora, em relação a segunda pergunta, pelo lado positivo, proporcionaria uma aproximação e um diálogo dentro da sociedade japonesa. Falar sobre é o primeiro passo que pode ser dado para romper paradigmas. Contudo, é igualmente necessário que se rompam os estereótipos. No entanto, no caso de Ossan's Love, o maior problema que observamos é uma falsa superação das dificuldades de ser LGBTQIA+. No mundo de Ossan's, todos são aceitos, os problemas são outros. Não que fosse necessário "pesar o clima" e mostrar preconceitos absurdos, mas, para quem "chega de paraquedas" em uma produção dessas, pode parecer que todos os direitos estão garantidos, o que levaria a uma descrença das lutas da comunidade fora da ficção.

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    2. Fernando de Barros Honda10 de agosto de 2023 às 16:40

      Muito obrigado pelas suas perguntas, Maria Praia. Complementando a resposta do professor Pedro, e podendo sistematizar a minha resposta para as duas questões que você traz, penso que atrelada à necessidade econômica que a globalização fomenta, os streamings e o alcance a um público mainstream causam o interesse em produzir obras que comumente chamam-se "BL". Maria, neste contexto, a possibilidade de produzir rapidamente uma adaptação de uma obra já previamente feita torna-se viável, mais ainda quando diz respeito a mangás ou quadrinhos. Basicamente um storyboard em que a adaptação para o formato audiovisual já pode ser vislumbrada e precificada. Assim, de fato cada um desses trabalhos (mangás e adaptações) são frutos de sua época e herança cultural do país, mas há algo além, a aceitação do público pelos streamings. Veja, a série "OSSAN's Love" está disponível no Viki Rakuten, embora os filmes não estejam, diversas outras produções asiáticas podem ser vistas com legendas em inglês e português, o que torna futuras adaptações planejadas para uma linha de pensamento global à diversidade de relacionamentos. A influência da aceitação da diversidade na sociedade japonesa deriva muito em parte do olhar ocidentalizado e possivelmente cristão, quanto para questões do próprias do país. A minha leitura é de que a aceitação vem a ocorrer a partir da naturalização de relacionamentos homoafetivos amarrados a papéis de gêneros homem e mulher, para, posteriormente, romper com os estes papéis e trabalhar a estrutura dos relacionamentos com uma base mais abrangente.

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