OS KUSHANS E A CONFEDERAÇÃO DO GRANDE YUEZHI: DIVERGÊNCIAS EM PERSPECTIVAS HISTORIOGRÁFICAS SOBRE MIGRAÇÕES NOMÁDICAS NA ÁSIA CENTRAL, E A FUNDAÇÃO DO IMPÉRIO KUSHAN (SÉC. II A.E.C - SÉC. I E.C.), por Cristian de Silveira

 

O Império Kushan, um dos grandes impérios da Antiguidade, se localizava nas regiões que centralizavam rotas comerciais transcontinentais que prosperavam nesse período, as chamadas de “Rotas da Seda”. Inserido onde atualmente se encontram o Paquistão, Afeganistão, Tajiquistão, Uzbequistão, Quirguistão, e também parte da Índia e da China, esse Império detinha dimensões gigantescas, com essa grandiosidade territorial refletindo também uma diversidade cultural imensa. A formação desse império durante o primeiro século da Era Comum (E.C.) foi, de forma semelhante, feita a partir de um contexto cultural complexo. As regiões da Ásia Central e das Estepes Eurasiáticas passavam por fluxos migratórios constantes nos séculos anteriores à formação do Império Kushan. Esses fluxos migratórios foram feitos tanto por grupos sedentários, como os gregos, que ali se assentaram após as conquistas de Alexandre, O Grande na segunda metade do quarto século A.E.C., quanto por grupos nomádicos que migraram para essas regiões por motivações culturais e conflitos políticos, como foi o caso dos Grande Yuezhi. Os Grande Yuezhi eram um grupo nomádico de onde hoje seria a província de Gansu, na China, que se deslocou, num primeiro momento, até a região do noroeste da China durante o segundo século A.E.C.. Esse deslocamento foi devido à conflitos dos Grande Yuezhi com o Império Xiongnu, um dos primeiros grandes Impérios Nomádicos, reconhecido por seu conflito de longa duração com o Império Chinês, que resultou na construção da Grande Muralha da China, e na expansão do território chinês até onde hoje se localizam suas províncias mais ocidentais.

 

Durante o percurso de deslocamento dos Grande Yuezhi para a Ásia Central, onde até então prosperavam os reinos helenísticos sucessores do Império Macedônico de Alexandre na figura do Reino Greco-Báctrio e do Reino Indo-Grego, os Grande Yuezhi supostamente causaram o deslocamento de grupos nomádicos iranianos, denominados de Sakas, para a região da Ásia Central. Nessa primeira leva de migrações de grupos nomádicos para os reinos helenísticos na Ásia Central, os Sakas causaram a desestabilização e eventual fragmentação desses reinos, com os diferentes clãs que formavam os grupos Sakas mantendo uma presença nesses territórios a partir desse ponto.

 

Após conflitos entre os Grande Yuezhi agora com os Wusun, outro grupo nomádico que se localizava onde hoje atualmente seria a região oeste da China, os Grande Yuezhi continuam o seu deslocamento para oeste, se dirigindo até os territórios que estavam sob controle dos Sakas na Ásia Central e Meridional, os derrotando e passando a controlar essas regiões. Depois dessas inúmeras levas de migrações nomádicas para as regiões que posteriormente formariam o Império Kushan, abre-se uma lacuna onde perspectivas historiográficas que tomam como base as fontes históricas orientais e ocidentais sobre a identidade e origem dos Kushans como membros de uma dessas confederações nomádicas começam a se divergir de forma significativa.

 

Especificamente, a questão sobre a origem do povo Kushan tem sido objeto de intensos debates e perspectivas divergentes na historiografia. Neste artigo, exploraremos as diferentes visões apresentadas por inúmeros acadêmicos que lidam com essa área, buscando compreender as nuances e complexidades que envolvem a identidade e trajetória histórica dos Kushans. Neste estudo, analisaremos as diversas teorias propostas pelos pesquisadores, buscando identificar as evidências e lacunas que sustentam cada perspectiva. Ao aprofundar nosso conhecimento sobre as diferentes visões historiográficas acerca dos Kushan, almejamos obter uma compreensão mais abrangente e informada sobre a construção do Império que centralizou as Rotas da Seda, e também da História da Ásia Central, Meridional e das Estepes Eurasiáticas como um todo.

 

Deslocamentos nômades à Ásia central: o império Xiongnu e os Yuezhi

A região das Estepes Eurasiáticas Orientais, abrangendo partes das atuais regiões da China, Mongólia e Rússia, testemunhou o surgimento de uma nova e poderosa organização política na segunda metade do terceiro século A.E.C.: o Império Xiongnu. A formação do Império Xiongnu nas Estepes Orientais ocorreu em um contexto histórico marcado por interações e conflitos entre diferentes grupos étnicos e poderes políticos na Ásia Central. Segundo Stark, este império representou o que ele chama de uma formação verdadeiramente imperial, a qual controlava e adquiria uma multitude de territórios e uma grande diversidade de populações a partir de sua esfera territorial original (Stark, 2021, p. 85).

 

O Império Xiongnu também acabou desencadeando grandes mudanças políticas para além de seus limites territoriais. Processos de deslocamentos populacionais foram iniciados decorrentes dos conflitos entre os Xiongnu com outros grupos nomádicos. Um grupo de interesse entre esses a ser mencionado é o dos nômades Yuezhi, que depois de serem derrotados pelos Xiongnu acabaram saindo de suas terras originais, que incorporavam grande parte da atual província de Gansu, na China, por volta do ano de 176 A.E.C., e acabaram se dividindo em dois grupos. Um desses grupos, chamados de “Grande Yuezhi”, tomaram rumo para oeste, onde tomaram as terras ao longo da região da Jungharia, no norte da atual província de Xinjiang, na China, de outro grupo nomádico que ali residia, um dos grupos Saka, que consequentemente se retiraram para sudoeste, e entraram em conflitos com os greco-báctrios, saqueando suas cidades. O outro grupo, chamado de “Pequeno Yuezhi”, se retirou para o sul, para as montanhas de Nan Shan. Os Grande Yuezhi acabaram sendo expulsos de sua nova localização pouco tempo após sua ocupação na mesma, sendo dessa vez derrotado pelos Wusun, outro grupo nomádico que vivia próximo aos Yuezhi originalmente. Sendo forçados novamente a se realocar, os Grande Yuezhi se movimentaram para oeste até os territórios de Sogdiana, onde entraram em contato com os diferentes povos presentes na região da Ásia Central e em seus arredores (Stark, 2021, p. 85-87; Beckwith, 2009, p. 84-85; Barisitz, 2017, p. 36; Cribb; Hermann, 2007, p. 60).

 

No contexto desse campo histórico, as perspectivas apresentadas pelos pesquisadores da área sobre os diferentes povos inseridos no contexto da região da Báctria e seus arredores não possuem um consenso fixo. Autores como Beckwith não se adentram muito sobre os processos de contatos e conflitos entre os diversos grupos incluídos nesse contexto geográfico. Ele salienta, como já foi citado acima, da expulsão inicial de grupos Sakas da região da Jungharia pelos Grande Yuezhi, e que essa expulsão desencadearia em um grande processo migratório desses Sakas que os levariam até o norte da Índia. Os Grande Yuezhi começariam um processo de conquista do território da Báctria a partir de sua ocupação em Sogdiana, e assim formariam um reino neste território chamado de Tocaristão, por volta de 130-120 A.E.C., que seria dividido entre cinco líderes tribais inicialmente, mas que finalmente teria seu poder centralizado na figura de Kujula Kadphises, chefe da tribo dos Kushan, que fundaria na metade do primeiro século E.C. o Império Kushan (Beckwith, 2009, p. 84-85).

 

Outros autores como John Boardman (2015) também mantêm uma argumentação bem superficial do processo de conquista do território Báctrio pelos Grande Yuezhi, com um diferencial de apontar um conflito direto entre os Grande Yuezhi com os greco-báctrios, que não são citados diretamente por Beckwith (Boardman, 2015, p. 136-137). Barisitz e Cribb (2007), como também já vimos acima, falam respectivamente de invasões e saques de territórios greco-báctrios pelos Sakas antes das invasões nesses territórios protagonizadas pelos Grande Yuezhi. Cribb fala sobre uma possível integração das populações Sakas com os posteriores invasores Grande Yuezhi, e ressalta um retrato comparativo das diferentes populações ali inseridas a partir de suas culturas e de suas relações com a realidade material existentes, como suas posições sobre a tradição helenística que ainda se mostrava presente ao longo da Ásia Central. Um fator de interesse citado por Cribb é o de conflitos evidenciados entre Kujula Kadphises com populações vizinhas Sakas ou Citas (Cribb; Hermann, 2007, p. 60-63). Barisitz mantém uma perspectiva concisa de invasões sucessivas ao território greco-báctrio, primeiro por Sakas e posteriormente pelos Grande Yuezhi, porém não descrevendo as possíveis relações entre os dois grupos, concluindo somente com a eventual conquista de todo o território do antigo reino greco-báctrio pelos Grande Yuezhi e a eventual fundação do Império Kushan (Barisitz, 2017, p. 36).

 

Yu (2021) acaba elaborando uma perspectiva que contraria muitas das posições adotadas pelos autores acima. Na perspectiva de Yu, o grupo ou tribo denominado de Kushan, ou “Guishuang”, como é chamado pelas fontes chinesas, fazia parte de uma das quatro tribos Sakas que foram expulsas da região da Jungharia, e foram em direção até o reino Greco-Báctrio, onde derrubaram o reino em por volta de 140 A.E.C, pelo menos uma década antes da invasão dos Grande Yuezhi a esse território. Os conflitos que os Grande Yuezhi acabaram tendo nessa região, dessa forma, não poderiam ter sido contra os greco-báctrios, e sim contra essas tribos Sakas que ali tinham se instalado. As quatro tribos Sakas que constituíam esse grupo eram os Asii, os Gasiani, os Tochari e Sacarauri. Essas tribos controlavam o território da Báctria de forma completamente autônoma, principalmente quando comparado com o reino Greco-Báctrio, que era estruturado sob a figura de um rei (Yu, 2011, p. 4-7). 

 

Os chamados de “Gasiani” são apontados por Yu como os próprios Kushan ou Guishuang, com essa diferença de denominação vindo de uma simples transcrição do mesmo nome, sendo essa tribo, como já apontado acima, uma das que seriam conquistadas algumas décadas depois pelos Grande Yuezhi. A organização desses territórios agora então controlados pelos Grande Yuezhi foi o de dividir essas áreas de forma que a região central da Báctria e seus arredores ficassem sob seu controle direto, enquanto que as regiões orientais ficassem sob controle das chamadas cinco tribos, ou os cinco “Xihou 翖侯”, como as fontes chinesas as nomeiam. Xihou 翖侯 seria um título conferido a esses grupos subordinados dos Grande Yuezhi, como um costume originado, ou pelos Grande Yuezhi, ou pelos grupos anteriormente inseridos no território da Báctria, ou até mesmo como um título conhecido e usado por todos eles. Esses cinco Xihou 翖侯 provavelmente foram organizados a partir de grupos já existentes dentro do território da Báctria antes de sua conquista pelos Grande Yuezhi, como as quatro tribos Sakas que dominavam o território logo antes dessa conquista. Uma dessas tribos ou Xihou 翖侯 teve o nome de Guishuang, e foi dessa tribo que surgiu a figura de Kujula Kadphises (Yu, 2011, p. 2-9; 2021, p. 1-2).

 

“Qiujiuque 丘就卻 (Kujula Kadphises), o fundador da dinastia Guishuang 貴霜, tinha sido o Xihou 翖侯 dos Guishuang 貴霜 no estado de Daxia大夏.  [...] Ele se estabeleceu como rei; seu estado foi nomeado de Guishuang 貴霜 depois dos outros quatro Xihou 翖侯 terem sido destruídos. Depois de 50 E.C., ele capturou Paropamisadae de Gondophares ou seu sucessor que veio de Sakastão (regiões superiores ou médias do atual Rio Kabul). Depois disso, Qiujiuque 丘就卻 depôs o rei dos Grande Yuezhi 大月氏, seu antigo suserano, que estava entrincheirado na Báctria e nas áreas arredores, e completou a unificação do Tocaristão. Por volta de 60 E.C., Qiujiuque 丘就卻 se movimentou para o sul e ocupou Gandhara e Taxila, onde ele aniquilou o restante das forças da família de Gondophares. A dinastia de Kushan assim se estabelecia.” (Yu, 2021, p. 2, tradução nossa)

 

Cribb,  em contrapartida, expõe uma perspectiva sobre o título de Xihou 翖侯 como um título dos povos Yuezhi e Wusun sob uma transcrição chinesa, ou possivelmente como um título chinês dado a líderes aliados. Cribb também discorda de outras perspectivas de Yu, e interpreta o título de Xihou 翖侯 como algo que era reservado às elites dentro da esfera social dos Grande Yuezhi, e portanto considera que somente membros da corte ou membros vinculados familiarmente com o próprio rei poderiam ser conferidos tais títulos. Na sua visão, portanto, os cinco Xihou 翖侯 não poderiam ser de grupos locais que foram conquistados pelos Grande Yuezhi, o que não se adequaria com a importância que esse título carregava (Cribb, 2018, p. 1 e 4-5). A localização dos Xihou 翖侯 também acaba sendo outro ponto de oposição entre a visão abordada acima de Yu com a de Cribb. Segundo o último:

 

“A localização dos xihou como expostos por Grenet deixam claro que eles ocupam o mesmo território que o Han Shu indica para a localização da corte do rei dos Grande Yuezhi, a norte do Rio Oxus/Amu Darya (媯水 guishui). Isso oferece mais evidências de que os cinco xihou, incluindo o xihou de Kushan, eram parte da elite dos Grande Yuezhi ao invés de princípes locais. De acordo com o Hou Han Shu (Hill 2009, p. 28–29), mais de cem anos depois que os cinco xihou tinham sido encarregados de Tocaristão, Kujula Kadphises (丘就卻 qiujiuque), o xihou de Guishuang, depôs os outros quatro xihou e se estabeleceu como o único governante em Tocaristão. Essa ação o tornou o líder do antigo estado dos Grande Yuezhi, mas parece provável que o título de rei dos Grande Yuezhi já havia se tornado obsoleto, já que não existe menção desse título desde o Han Shu. O Hou Han Shu torna claro que Kujula Kadphises e seu filho não foram identificados por seus vizinhos como os Grande Yuezhi, mas como reis Kushan, mesmo que os Chineses continuassem a se referir a eles como reis dos Grande Yuezhi. A ascensão de Kujula Kadphises parece ter ocorrido por volta de 50 d.C (Cribb 2018) [...]” (Cribb, 2018, p. 5-6, tradução nossa)

 

Cribb também vê a origem do nome Kushan como o nome familiar do primeiro Xihou 翖侯 de Kushan, que também contraria a perspectiva de Yu de se referir a uma das tribos Saka que invadiram a Báctria antes dos Grande Yuezhi, como visto anteriormente (Cribb, 2018, p. 17).

 

Dessa forma, a diversidade das perspectivas sobre esse campo ainda demonstram um certo nível de incongruências sobre esse período e região. O contraste entre a visão de autores como Yu e Cribb por si só já encapsulam esse argumento. As diferentes origens propostas tanto para o nome dos Kushan, quanto para a sua relação com os chamados de Grande Yuezhi e as tribos Sakas, o contexto e prestígio por trás do título de Xihou 翖侯, e a identidade por trás dos grupos que adquiriram esse título realçam muito bem como os estudos sobre esse período de constantes conflitos e deslocamentos populacionais ainda é um espaço para amplos debates, mesmo que as abordagens adotadas por Cribb tenham um maior apoio por estudiosos da área (Cribb, 2018, p. 16-17).

 

Stark reforça o argumento de que esses deslocamentos populacionais dos grupos como os Grande Yuezhi para a Ásia Central, apesar de serem descritos pelas fontes historiográficas chinesas como grandes processos migratórios desses povos, provavelmente descreviam por maior parte o deslocamento das elites que pertenciam a esses grupos, com essa narrativa chinesa de migrações de grande escala tendo de ser analisadas “[...] como um reflexo de processos políticos e etno-genéticos muito mais complicados (mas sem dúvida incluindo o deslocamento das elites nômades e grupos dependentes)” (Stark, 2021, p. 86). Além disso, ele também elabora sobre como esses processos de mudanças territoriais e políticas não devem ser vistas como resultantes exclusivamente dos conflitos iniciados ou causados pelo Império Xiongnu:

 

“Apesar disso, outro fator importante pode também ter sido o caos no qual o controle grego na Báctria foi posto depois do assassinato de Eukratides I em algum momento por volta de 145 A.E.C. (e não o contrário, como é normalmente visto). Não é improvável que facções competindo entre si dentro da Báctria deliberadamente chamaram contingentes tribais e bandos de guerra pessoais de seus vizinhos do norte como suporte. Tal cenário não é só amplamente atestado para períodos posteriores, mas explicitamente mencionado também para o caso aproximadamente contemporâneo dos Arsácidas chamando contingentes Sakas contra seus rivais Selêucidas no início da década de 120 A.E.C.. Então talvez a chegada de novos grupos nomádicos em Báctria e o estabelecimento de regimes políticos por elites de origem nomádica, mesmo se originalmente engatilhadas pela expansão dos Xiongnu e as subsequentes mudanças nas estepes orientais (ocupação do Vale de Ili pelos Wusun 烏孫), não foi o resultado de “invasões nomádicas”, mas de processos complexos que aconteceram muito mais gradualmente do que é normalmente assumido.” (Stark, 2021, p. 86, tradução nossa)

 

De qualquer forma, o Império Kushan, fundado por Kujula Kadphises no primeiro século E.C., acabou eventualmente incorporando todos os territórios que tinham pertencido ao reino Greco-Báctrio, e assim iniciou um processo de expansão que englobou grandes partes do território da Ásia Central, adentrando até o subcontinente indiano (Barisitz, 2017, p. 36 e 41).

 

“No decorrer do primeiro século E.C, os Kushans expandiram seu domínio para Khorezm/o Mar de Aral, Ferghana, Margiana, Sul do Afeganistão, Gandhara (a área envolta de Taxila), e o Punjab e incorporou todo o vale do Indo, a parte superior do vale do Ganges (Norte da Índia), e Gujarat (na costa do Mar Arábico); durante um período de fraqueza interna da dinastia Han na primeira metade deste século (como pode-se ver acima), o Império Kushan até mesmo temporariamente estendeu sua autoridade para a metade ocidental da Bacia de Tarim, incluindo Kashgar, Yarkand, e Khotan.” (Barisitz, 2017, p. 41, tradução nossa)

 

Cribb ressalta o período das migrações dos grupos nomádicos na Ásia Central, que resultaram na dissolução do reino Greco-Báctrio, como um processo de reestruturação das culturas e redes de contato que ali tinham se desenvolvido. Essas novas instituições são vistas pelo autor como um fator a ser considerado no contexto da posterior formação das Rotas de Seda, e mesmo que as rotas tenham se desenvolvido propriamente muito depois desses processos econômicos e culturais já terem ocorrido, ainda assim podem ter sido, em parte, possibilitadas pelos mesmos. Apesar da visão de Cribb de que o reino Greco-Báctrio poderia ter limitações no meio econômico referindo-se às atividades comerciais com os povos ocidentais à Ásia Central, devido ao território do Império Parta bloquear esses contatos, ele não procura propor que o fim do reino Greco-Báctrio necessariamente tenha resultado no início desse processo de redes comerciais de grande escala, mesmo que temporalmente exista uma interpolação entre o fim do reino Greco-Báctrio com os processos que iniciaram as Rotas da seda, mas somente procura salientar essa consideração. A ascensão do Império Kushan beneficiou as redes que se desenvolveram a partir das migrações nomádicas à Ásia Central, onde a estabilidade de seu território, que também incorporava parte da Ásia Meridional, proveu uma infraestrutura que possibilitou um comércio internacional de larga escala através de sua região, que se iniciou durante o primeiro século E.C. (Cribb; Hermann, 2007, p. 63-64).

 

A extensão territorial do Império Kushan tinha dimensões estrondosas, e dessa forma, mantinha uma grande diversidade cultural dentro de sua sociedade. As culturas dos diferentes grupos aos quais seu território já tinha pertencido, como os aquemênidas, gregos, partas e indianos, foram assimiladas dentro dessa realidade. O Império Kushan teve seu apogeu por volta da segunda metade do primeiro século E.C. até a primeira metade do terceiro século E.C., transferindo durante o primeiro e segundo séculos E.C. o seu centro político de seus territórios ao longo da Ásia Central para o norte do subcontinente indiano, onde a maior parte das novas cidades fundadas pelo império se localizavam. Esse foi um momento de prosperidade para o império, que, ao mesmo tempo que possibilitou o desenvolvimento das Rotas da Seda logo no início desse período, também foi beneficiado por sua posição central nas Rotas da Seda. Isso fez com que, tanto as Rotas da Seda, quanto o próprio Império Kushan participassem ativamente nos processos de trocas comerciais e contatos culturais que ajudaram na disseminação dessas produções culturais diversas, com o império agindo como um mecanismo para exponencializar  esses processos promovidos pelas rotas (Behrendt, 2007, p. 4 e 39; Decaroli, 2015, p. 13-14; Barisitz, 2017, p. 42; Cribb; Hermann, 2007, p. 62-64; Liu, 2010, p. 43).

 

Considerações finais

O Império Kushan, com sua localização estratégica nas regiões centrais das Rotas da Seda, prosperou como uma das grandes potências da Antiguidade. A formação desse império durante o primeiro século E.C. foi resultado de um contexto cultural complexo, caracterizado por fluxos migratórios constantes na Ásia Central e nas Estepes Eurasiáticas. Diferentes grupos étnicos e povos nômades, como os Grande Yuezhi e os Sakas, desempenharam papéis significativos nesse cenário, culminando no surgimento do Império Kushan.

 

A historiografia tem apresentado perspectivas divergentes sobre as origens dos Kushans, demonstrando a complexidade e a falta de consenso sobre essa questão. Alguns estudiosos, como Yu, defendem que os Kushan faziam parte de uma das tribos Sakas que invadiram a Báctria antes dos Grande Yuezhi, enquanto outros, como Cribb, acreditam que os Kushan eram parte da elite dos Grande Yuezhi. Outra perspectiva, trazida por Stark, enfatiza a importância do contexto político e étnico da Ásia Central na época e a gradual assimilação de diferentes culturas pelos Kushan.

 

As diferentes narrativas históricas refletem a riqueza cultural e a diversidade étnica da região da Báctria e seus arredores, onde o Império Kushan surgiu. A análise dessas perspectivas historiográficas e o estudo das evidências e lacunas que as sustentam contribuem para uma compreensão mais aprofundada sobre as dinâmicas entre povos sedentários e nomádicos durante a Antiguidade, bem como as fontes primárias da época que comentaram sobre esses contatos. Além disso, o Império Kushan desempenhou um papel fundamental na promoção do comércio e dos contatos culturais ao longo das Rotas da Seda, o que ampliou sua influência e importância na história da Ásia Central, Meridional e das Estepes Eurasiáticas como um todo. Assim, o estudo dos Kushans continua a desafiar pesquisadores a explorar a complexidade e a diversidade das interações culturais e políticas na região.

 

Referências

Cristian de Silveira é Licenciado e Bacharel em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e atualmente é mestrando em História pela Pós-graduação da mesma instituição. Contato: cristiandesilveira@hotmail.com

 

BARISITZ, Stephan. Central Asia and the Silk Road: Economic Rise and Decline over Several Millennia. Springer International Publishing AG, Cham, Switzerland. 2017.

 

BECKWITH, Christopher I. Empires of The Silk Road: A History of Central Eurasia from the Bronze Age to the Present. Princeton University Press. 2009.

 

BEHRENDT, Kurt. The Art of Gandhara in The Metropolitan Museum of Art. The Metropolitan Museum of Art. New York. 2007.

 

BOARDMAN, John. The Greeks in Asia. Thames & Hudson Ltd, London. 2015.

 

CRIBB, Joe; HERRMANN, Georgina. After Alexander: Central Asia Before Islam. Oxford University Press Inc., New York. 2007.

 

CRIBB, Joe. Kujula Kadphises and His Title Kushan Yavuga. Sino-Platonic Papers, 280, Philadelphia. 2018.

 

DECAROLI, Robert. Image Problems: The Origin and Development of the Buddha’s Image in Early South Asia. University of Washington Press, Seattle and London. 2015.

 

LIU, Xinru. The Silk Road in World History. Oxford University Press, Inc., New York. 2010.

 

STARK, Sören. Central Asia and the Steppe. In MAIRS, Rachel. The Graeco-Bactrian and Indo-Greek world. Routledge, New York. 2021, p. 78-105.

 

YU, Taishan. Studies on the History of the Western Regions (From the Seventh Century BCE to the Sixth Century CE): A Study of The Kushan History. The Commercial Press, Beijing. 2021.

 

YU, Taishan. The Origin of the Kushans. Sino-Platonic Papers, 212. Philadelphia. 2011.

4 comentários:

  1. Olá, Cristian!
    Primeiramente, gostaria de parabenizá-lo pelo seu texto. Tanto pela complexidade do que você está descrevendo e analisando (seja pelas fontes, materialidade ou pela discussão historiográfica) quanto pela ênfase que você está dando ao papel que os povos nomádicos tiveram enquanto agentes culturais dessa importante rede comercial que conectava o mundo euroasiático (que chamamos de maneira muito simplista de Rotas da Seda).

    Dito isso, minha pergunta é: como você avalia a participação dos kushans, por exemplo, para a circularidade material e intelectual entre as sociedades gregas e indianas? Além disso, como essas trocas culturais transformaram os povos da Ásia Central? (afinal, eles não eram meros intermediários).

    Parabéns, sua pesquisa é excelente e apresenta ótimas contribuições!
    José Ivson Marques

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Boa noite José!
      Muito obrigado pela pergunta!
      O Império Kushan foi o palco para a proliferação de diversas religiões através de seu território, como o maniqueísmo, cristianismo nestoriano e o budismo, e para a impulsão dessas religiões pelas redes de contato que uniam a sua região com outros povos para além de seus limites territoriais, através das Rotas da Seda. Acho que um exemplo que responderia muito bem sua pergunta em relação a circularidade material e intelectual entre gregos e indianos promovida ou possibilitada pelos kushans seria o próprio desenvolvimento do estilo de arte de Gandhara, desenvolvido nos territórios centrais do Império Kushan, e denominada por Alfred Foucher como arte “Greco-Budista” (DECAROLI, 2015, p. 14). A arte Greco-Budista representava figuras da crença budista, como o próprio Buda ou seus guardiões e seguidores, segundo influências supostamente greco-romanas para a produção dessas artes. Esse estilo pode nos demonstrar como a tradição helenística se mantinha viva dentro da realidade do Império Kushan, e também em como o budismo ganhou destaque dentro do território do império, principalmente em regiões como Gandhara, que se localiza em parte dos atuais países do Afeganistão e Paquistão, onde floresceram comunidades budistas e provavelmente se desenvolveu esse estilo artístico.
      Então eu diria que além de possibilitarem a circulação e conexão entre produções culturais gregas e indianas através das rotas existentes em seus próprios territórios, os kushans foram agentes ativos da conexão e dos diálogos entre essas duas tradições culturais, tanto por sua conexão com essas culturas através das Rotas da Seda, quanto pela importância que essas tradições culturais já possuíam no território do Império Kushan mesmo antes de sua estruturação.

      Atenciosamente,
      Cristian de Silveira.

      Excluir
  2. Olá, Cristian.
    Parabéns pelo texto e por trazer para debate um comentário historiográfico sobre um tema tão pouco explorado e conhecido. “Grande Yuezhi” é um título dado ao líder militar de uma sociedade política rival dos “Xiangus”. Embora diferentes, provavelmente eles compartilhavam um sistema parecido de organização política. Seria interessante pensar a ascensão dos Kushan dentro do modelo de análise proposto por Barfield, uma vez que eles também se constituíam em nômades como os Xiangus, porém explorando outras bases sedentárias. Fica essa sugestão de leitura ! Obrigado pela sua contribuição.

    BARFIELD, Thomas. Stepp Empires, China, and the silk route: nomads as a force in international trade and politics. In: KHAZANOV, Anatoly M.; WINK, André (Orgs.). Nomads in the sedentary world. London/New York: Routledge, 2001, p. 234–249.

    Carlos Eduardo Martins Torcato

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Boa noite,
      Agradeço muito a sugestão de leitura, não tinha conhecimento desse texto! Acredito que as propostas do autor podem fornecer uma perspectiva muito produtiva para a minha pesquisa. Salientar a dinamicidade da organização política e social dentre as sociedades nomádicas ou semi-nomádicas das estepes é algo essencial para compreender a realidade dos contatos culturais na Antiguidade. O historiador Christopher I. Beckwith, um dos autores em que me baseei, salienta muito essa questão também. Eu ter a possibilidade de me aprofundar nesse argumento a partir de múltiplos autores vai ser muito útil. Obrigado novamente pelo comentário!

      Cristian de Silveira

      Excluir

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.