ORIENTES E ORIENTALISMO EM GILBERTO FREYRE: OLHARES SOBRE OS INDIANOS, por Arlindo Souza

 


Gilberto Freyre é reputado como um dos autores que “inventaram o Brasil”. Sua obra é vasta e sua importância é reconhecida no Brasil e no exterior. Contudo, mesmo para este tão conhecido e estudado autor, pelo caráter sobejamente prolífico de sua produção, existem ainda pontos a serem debatidos e analisados, de onde destacamos as suas abordagens sobre “os orientes”. Aqui, o que temos investigado é não apenas a sua vasta e inexplorada interlocução com autores orientalistas (das mais variadas procedências) – e de onde provém, naturalmente, a sua “fonte” orientalista – , mas o próprio orientalismo que, consequentemente, emerge em seus escritos. Temática sobre a qual desenvolvemos a tese provisoriamente intitulada “Os Orientes de Freyre e o orientalismo lusotropicalista na  «Questão de Goa» (1954-1961): reflexos no jornal Diário de Notícias de Lisboa”, tendo esta pesquisa resultado na produção de artigos e participações em congressos e simpósios ao longo dos últimos quatro anos.

 

No decorrer dos nossos estudos sobre a produção freyreana, quando o assunto em questão são os orientes (ou as “não-Europas” de um modo geral) por ele abordados, constatamos que o conceito de orientalismo de Edward Said ali se aplica em perfeita conformação. Afinal, Said define orientalismo como uma visão essencializada sobre o “outro”. Mais precisamente, como uma “distinção ontológica e epistemológica (...) entre «o Oriente» e (a maior parte do tempo) «o Ocidente»”. Distinção esta que, reproduzida por uma “enorme massa de escritores (...) poetas, romancistas, filósofos, teóricos políticos, economistas e administradores imperiais”, serviu e serve como “ponto de partida para elaboradas teorias, épicos, romances, descrições sociais e relatos políticos a respeito do Oriente, dos seus povos, costumes, «mente», destino e assim por diante” [Said, 1990, p. 14] – sendo desta forma, como ver-se-á, que Freyre procede ao abordar as “não-Europas”.

 

Todavia, se o orientalismo, também segundo Said, é um “estilo ocidental para dominar, reestruturar e ter autoridade sobre o Oriente” [Said, 1990, p. 15], e Freyre fora um brasileiro, portanto, um homem não oriundo de um país imperialista, Marta Pacheco Pinto torna o conceito mais abrangente ao afirmar que o “fenómeno orientalista coloca-se (...) como um [fenómeno] de natureza gnosiológica e representacional” [PINTO, 2013, p.100], que pode ser “entendido ou não como reflexo de um vínculo colonial e ocupação efectiva de um território oriental”. Assim, nesta acepção, ao se instituir como doxa, ao espelhar uma visão do mundo com a qual um grupo sociocultural age em conformidade, o orientalismo está relacionado mais à identidade na qual determinado grupo sociocultural se enxerga (ou deseja ser enxergado) do que estritamente com a sua posição de agente dominante no jogo geopolítico.

 

E será precisamente deste “lugar de fala”, a saber, o Ocidente (mas o “Ocidente Ibérico” – tratamos deste assunto em SOUZA, 2020), que Freyre lançará seu olhar para Orientes, Áfricas e Trópicos. Com uma “agenda” preocupada em salvar o “complexo lusotropical” das influências culturais tanto das não-Europas (estas, as “verdadeiras ameaças”) quanto do “outro Ocidente” (o ocidente anglossaxão, “burguês”, “carbonífero”, “imperialista” etc.) no contexto pós-Segunda Guerra Mundial, ao defender que o Brasil seria “o futuro” líder do mundo lusófono, Freyre termina por se aproximar (e “ser aproximado”) do Estado Novo salazarista. Que, então desejoso de defender suas posições imperiais “agarrara-se” ao conceito de lusotropicalismo. Conceito este que concorria para a afirmação de que a presença portuguesa nos “trópicos” era “efetivamente benéfica” para os povos colonizados, ao contrário (supostamente) da forma mais exploratória dos imperialismos burgueses representados por Inglaterra, França, Bélgica, Holanda etc.

 

Destarte, para a construção discursiva da legitimidade da autoridade portuguesa (hegemonia, no caso da sua intenção para o caso do Brasil) no “complexo lusotropical”, ainda colonial nos anos 1950/1960, encontramos, nos textos freyreanos, toda uma série de essencializações de cariz eminentemente orientalista. As quais partiam do princípio de que os povos dominados (aqui, em questão, os goeses) estariam mais bem servidos se estivessem sob a tutela dos portugueses (ideia do “fardo do homem português” implícito no “mito imperial” salazarista apontado por Fernando Rosas [ROSAS, 2001, p.1034]). Afinal, estes os “civilizaram” e “cristianizaram” melhor do que qualquer outro europeu. Pois ainda que Freyre aponte a “transigência”/tolerância como um caráter “castiçamente português”, é certo que o autor brasileiro celebrava as e predominâncias do elemento cristão europeu em suas colônias.

 

Vê-se, portanto, com frequência Freyre utilizar-se de tropos orientalistas para tratar dos indianos e goeses “não assimilados”. Emergindo noções como a de que os orientes eram lugares de “aventura”, “do místico”, “de magia”, “do exótico”, “do irracional”, “do vasto”, “do femeal”, “de ameaça”, “de cores”, “de odores”, “de riquezas”, “de corrupção”, “do edêmico”, “do burlesco”. E, os orientais, eram “lascivos”, “femeais”, “traiçoeiros”, “ingratos”, “ameaçadores”, “suscetíveis”, “despóticos”, “submissos”, “frágeis”, “emasculados” etc., mas, por outro lado “sábios”, “puros”, “imaculados”. Pois, ao fim e ao cabo, as essencializações orientalistas não correm apenas no sentido “negativo”, mas também no “positivo”. Não obstante um “positivo” que mantém o oriental em uma posição subalterna: ao invés de intelectuais, são sábios, místicos; ao invés de honestos, de bom caráter, são puros e imaculados. Sempre de modo a opor, por exemplo, a racionalidade Ocidental à irracionalidade Oriental: os “mágicos” orientais e os “lógicos” ocidentais – expressão comparativa que surge em Aventura e Rotina, de 1953, mas que se repete com mais força em Insurgências e ressurgências atuais, de 1983.

 

E é com esta abordagem orientalista que Freyre, ao tratar dos inícios da presença lusa no “Oriente”, relata que o Ocidente (leia-se o ocidente ibérico, o português, sobretudo) é o elemento masculino, fecundador, e o Oriente o elemento feminino. Aqui, para o autor, o próprio momento das “Grandes Navegações”, fora uma “Idade sociologicamente viril” [FREYRE, 1953b, p. 99]. E, ao chegar aos “orientes”, os portugueses logo fizeram “sentir sua presença na «imensa Ásia», (...) como [homens] capazes de amar mulheres orientais e ser por elas amados. Capazes de fecundar mulheres de cor e fazer sair dos seus ventres portugueses também de cor...” [FREYRE, 1953a, p. 347]. E se o elemento “feminizador” do oriente fica evidente no trecho acima, outro elemento orientalista também aparece: o tratar a Ásia como um local incomensurável, imenso. E, por isso mesmo, palco em que os intrépidos europeus podem realizar mil heróicas aventuras.

 

Mas, se os portugueses possuíam um ímpeto “másculo” e “viril”, por outro lado, os hindus, por exemplo, possuíam características “de mulher” [FREYRE, 1953b, p. 59], “de efebos” [FREYRE, 1953a, p. 307] – um “costume muito oriental de substituir-se às vezes a mulher pelo menino bonito” [FREYRE, 1953b, p. 114] – ou mesmo “assexual” [FREYRE, 1953b, p. 94].  E, quando não femeais, Freyre descreve os hindus como “melancólicos”, e os “mestiços euroasiáticos” “como doentes, melancólicos”. Frágeis e inferiores fisicamente, como se vê no como no trecho a seguir: “Não é de se estranhar num grupo de renegados desses, a inferioridade física que faz deles uma população tão fraca. Tão mofina. Tão sensual – mesmo para o Oriente” [FREYRE, 1936, p. 637]. Aqui, curiosamente, apesar de parecerem doentes, eles surgem, nesta descrição, como sensuais – não sendo claro o que autor quer dizer com “sensuais mesmo para o Oriente”. Menção esta (à “fragilidade física dos indianos”) que aparece também em Aventura e Rotina [FREYRE, 1953a, p. 349].

 

Sobre os mestiços “anglo-indianos” e “luso-indianos” Freyre participa que:

 

“Enquanto o mestiço de português com indiano pode levar-se a situações de maior enlevo social, mesmo quando cacogênico, (...) na Índia parece para os homens envelhecerem [mais frequentemente] como Gandhis, feios e até grotescos, do que como o belo Tagore que conheci nos meus dias de estudante (...) nos Estados Unidos. [Tagore] que foi na velhice uma espécie de Goethe indiano: um Goethe com olhos e cabelos quase de mulher e barba quase de profeta”. [FREYRE, 1953a. p. 351]

 

Aqui as descrições físicas dos indianos e dos luso-indianos aparecem mais uma vez carregadas de estereótipos orientalistas. Primeiramente destacamos a “ressalva” que Freyre faz aos luso-indianos. Em um primeiro momento o autor ressalta a possibilidade de mobilidade social no meio “indo-português” (referindo-se a Goa), mas o que nos chama atenção é o uso de uma expressão própria de uma sorte de antropologia física que Freyre alegava combater: a expressão “cacogênico”. Ora, esta é um termo (cacogenia) que designa “degeneração racial” derivada de miscigenações entre “raças” de “níveis diferentes”, deixando claro mais uma vez como Freyre não rompe definitivamente com uma antropologia física mais racialista que havia (ainda) em seu tempo – não obstante estejamos a falar de um texto de inícios dos anos 1950, mais precisamente de trinta anos após o seu “clássico” CG&S que é quando se supõe que Freyre tenha se descolado deste tipo de abordagem.

 

Relativamente aos indianos, as colocações de Freyre chegam a extremos, denotando dois lados orientalistas: aquele que inferioriza os “orientais” e aquele que, de alguma forma, busca os “exaltar”. Assim, ou eles são “feios e grotescos”, como Gandhis (notem o plural, pois, sob o orientalismo, os orientes e orientais facilmente se confundem, até se transformarem numa turba disforme e indistinguível, sem individualidade alguma), ou sábios, belos, beirando o etéreo e, mais uma vez feminino, como Tagore. Destacaríamos, assim, aqui, também a associação do “oriental” com uma imagem idealizada de sábios e profetas, mais místicos do que racionais, mais “mágicos” do que “lógicos”.

 

Esta “imagem” emerge quando são descritos/mencionados intelectuais, juristas, homens de letras e eruditos de formação acadêmica (científica, portanto) mais do que consistente, como Tagore, Gandhi e Panduronga Pirsulencar. Ao falar, por exemplo, sobre o “professor Pirssulencar”, Freyre descreve que pareceu, ao ouvi-lo, ouvir cantos Marata numa voz "orientalmente doce[FREYRE, 1953b, p. 272]. Já quando Freyre se refere ao líder Gandhi, diz que este lhe parece alguém “Com um ar menos de letrado de instituto que de sábio bom das Mil e Uma Noites. Com corpo magro, moreno e sempre muito limpo e protegido apenas por um lençol branco que era também o tapete voador em que viajava...” [FREYRE, 1953b, p. 165].

 

Ora, aqui aparecem os já citados estereótipos do oriental sábio (e tenhamos em conta que Gandhi possuía um diploma de Direito e uma formação acentuadamente ocidentalizada), ascético, limpo, que parecia usar um tapete voador etc, mas também aparece o que se nos apresenta como uma verdadeira confusão tipicamente orientalista: Gandhi era um homem hindu, mas Freyre entendeu que ele se parecia com um alguém que, não demoraria muito, sairia em um “tapete mágico voador” – sendo que as histórias do “Livro das Mil e Uma Noites” são um conjunto de histórias escritas em persa e em árabe. Distante, portanto, de ser, como Gandhi, hindus.

 

O caráter “etéreo” dos hindus aparece, ainda, em outro breve trecho de Aventura e Rotina, onde são referidos como “que de tão asceticamente hindus parecem ex-homens já desencarnados...” [FREYRE, 1953a p. 405], fantasmagóricos e frágeis. Por outro lado, no que diz respeito ao comportamento cotidiano do indiano, Freyre encontra uma conexão (um tanto desconcertante) deste com o brasileiro. Para ele, indianos e brasileiros são afeitos a “intrigasfalsidadeboatossussurros... bizantinismo... [FREYRE, 1953a, p. 348]. Atribuições estas, sobre os “orientais” que são colocadas por Said como marcadamente orientalistas.

 

A ideia de um Extremo Oriente “colorido”, “encantado”, e “delicado” também é fartamente observada em Freyre. Lá, no Oriente, os animais ficavam “orientalmente soltos à rua” e os frutos eram milagrosos, coloridos, perfumados, e afrodisíacos [FREYRE, 1953b, p. 68]. Neste aspecto, o livro Um Brasileito em Terras Portuguesas pode ser visto como um exemplo de que se pode ver o “oriental” de modo “positivo” mas, mesmo assim, orientalista, essencializado. Nele, Freyre “fala pelos orientais”, diz “como eles eram”, os “conhece através da ciência” (sempre citando estudiosos ocidentais especialistas em Oriente...), versa sobre a sua religiosidade, sobre seus traços psicológicos e sociais, de modo que o “método orientalista” de produzir saber reproduzindo representações sobre o “outro” é aqui fartamente observado.

 

Detectamos essencializações de ordem orientalista, ainda (e curiosamente), quando Freyre fala sobre determinadas características dos portugueses. E elas começam quando Freyre analisa os primeiros momentos dos portugueses no Oriente. Os “Orientes eram cores [FREYRE, 1953b, p 109]; lugares de descobertas e de um “idílio voluptuoso” [FREYRE, 1953b, p. 109]; onde “o cotidiano era misturado ao fantástico” [FREYRE, 1953b, p 112]; lugar de “todos os pecados” [FREYRE, 1953b, p 114]; lugar de “mistérios e exotismos tropicais” [FREYRE, 1953b, p. 114]; de “águas misteriosamente tropicais” [FREYRE, 1953b, p. 117]; dos “excessos do álcool” [FREYRE, 1953a, p. 67]; lugar onde os jovens manifestavam a “tendência a desejar casamentos exóticos com “mulher de cor” em “uniões aventurosas” [FREYRE, 1953b, p 118]; cujos aspectos fantásticos ficaram imortalizados na obra Peregrinação, do célebre orientalista do século XVI Fernão Mendes Pinto [FREYRE, 1953b, p. 118].

 

Concluindo. Ao perscrutarmos: a vasta interlocução de Freyre com os autores orientalistas de seu tempo (e de antes); o próprio contexto em que o autor vive e escreve; assim como as relações sociais e profissionais que trava. Temos que seria virtualmente incontornável que, na mais branda das hipóteses, se encontraria uma tópica orientalista em sua obra. No entanto, quando nos detemos mais atentamente em seus escritos – considerados como um todo, mas, especialmente, aqueles produzidos num contexto de maior aproximação do autor com o Estado Novo Salazarista, portanto, a partir de fins dos anos 1930 e início dos anos 1940 – vemos que, desde O Mundo que o Português Criou (1940), livro chave para o conceito de lusotropicalismo e que não inocentemente ganha este novo título justamente no ano da comemoração portuguesa do “Duplo Centenário” [CASTELO, 1999], as ideias orientalistas aparecem com mais frequência e clareza. No entanto, este viés orientalista do “mestre de Apipucos” é tema em que estão sendo dispensadas ainda apenas as “primeiras tintas”.

 

Referências

Arlindo José Reis de Souza é doutorando pelo Programa Interuiniversitário de Doutoramento em História pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

 

CASTELO, Cláudia. O modo português de estar no mundo: o luso-tropicalismo e a ideologia colonial portuguesa: 1933-1961, Porto, Edições Afrontamento, 1999

 

FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mocambos. São Paulo, Nacional, 1936.

 

________________. Aventura e Rotina: Sugestões de uma Viagem à procura das Constantes Portuguesas de Caráter e Ação. Rio de Janeiro, José Olympio, 1953a.

 

________________. Um Brasileiro emTerras Portuguesas. Rio de Janeiro, José Olympio, 1953b.

 

________________. Insurgências e ressurgências atuais. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1983.

 

PINTO, Marta Pacheco. Traduzir o outro oriental. A configuração da figura feminina na literatura portuguesa finissecular (Atónio Feijó e Wenceslau de Moraes). Tese de doutoramento. Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. 2013.

 

SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

 

ROSAS, Fernando. O salazarismo e o homem novo: ensaio sobre o Estado Novo e a questão do totalitarismo. Instituto Ciências Sociais da Universidad de Lisboa. In Análise Social, Vol. 35, No. 157, HISTÓRIA POLÍTICA (Inverno de 2001), pp. 1031- 1054

 

SOUZA, Arlindo J. Reis de. Os Orientes e Ocidentes de Freyre: tópica Orientalista em Casa-grande & Senzala e o Ocidente em Sobrados e Mucambos, in. Revista de Estudios Brasileños, Salamanca, Vol 7 – n. 14. Ediciones Universidad de Salamanca, p. 153-167, 2020

14 comentários:

  1. Prezado Arlindo Souza,

    desde já gostaria de deixar aqui meus cumprimentos pela comunicação.

    Uma dúvida me surgiu à mente durante a leitura de tua comunicação: pelo pouquíssimo de leitura que tenho dos textos de Gilberto Freyre, por vezes ele tenta algum diálogo com termos linguísticos da cultura que ele menciona, por exemplo as raízes árabes de palavras lusófonas, assim como certos padrões culturais que se estabeleceram no cotidiano colônia brasileiro matriciados na cultura muçulmana, entre outros aspectos. Em relação a essa questão com a Índia, Freyre não faz sequer uma tentativa de diálogo com vernáculos sânscritos, ou hindis, em suas visões sobre cotidianos indianos? Por um bom tempo ambos os territórios pertenceram, de uma maneira ou de outra, ao império marítimo português, com algumas trocas culturais refletidas ainda hoje em diversas manifestações culturais, estando essa presença indiana mais próxima do que pudéssemos supor e, por isso mesmo, talvez ao alcance de Freyre, tal como no caso da cultura árabe-muçulmana... enfim, não há sequer um momento em que Freyre estabelece esse tipo de diálogo...????

    Desde já agradeço pela atenção.

    Atenciosamente,

    Matheus Landau de Carvalho.

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    1. Arlindo José Reis de Souza8 de agosto de 2023 às 09:00

      Estimado Matheus Landau de Carvalho

      Muito obrigado pela sua pergunta. De fato Freyre reconhece as contribuições tanto dos muçulmanos quanto dos judeus em praticamente todos os seus escritos. E isto, de fato, é uma contribuição importante de Freyre para a compreensão da História de Portugal e do Brasil, tendo se refletido tanto no Brasil quanto em Portugal. Em Portugal, inclusive, gerou (e ainda gera, embora em muito menor escala) certo mal estar entre alguns historiadores portugueses, que apreciam mais as suas origens europeias. No entanto, o que tenho dito a este respeito (em artigo e na tese em que estou trabalhando), é que a visão de Freyre sobre estes não-europeus é recorrentemente carregada de orientalismos. O que ocorre tanto quando ele vê tais contribuições de forma positiva quanto quando lança mão de algumas preconcepções negativas.
      Sobre as relações com o "Extremo Oriente" e mesmo o "Estado da Índia" português, Freyre diz, já em Casa Grande & Senzala, que os "orientais" não apenas contribuiram para a economia e cultura portuguesa (via Estado da Índia), mas que se relacionavam diretamente com o Brasil. Trocando e contribuindo com arquitetura, culinária, vestimentas etc. Mas aqui também o faz de modo essencializado: por um lado, enfatizando os "odores", as "cores", o "exotismo", o "misticismo" etc. destas contribuições: por outro, destacando a adequação destas contribuições ao tropical Brasil.
      Em Sobrados e Mucambos, por exemplo, critica tanto Brasil quanto Portugal por estes estarem, a partir da ida da Família Real ao Brasil, se afastando destas contribuições que tanto contribuem para tornar única a cultura do "mundo lusófono", por assim dizer. Freyre criticava a "ocidentalização" provocada pela aproximação do Brasil e Portugal aos franceses e ingleses, por exemplo.
      Então, sim. Freyre estabelece relações do Brasil com o "Oriente" (Índia inclusive, naturalmente), mas o faz de modo generalizante à moda orientalista.

      Espero ter respondido a contento!

      Atenciosamente.

      Arlindo José Reis de Souza

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    2. Prezado Arlindo Souza,

      agradeço muito pela resposta. De fato, apesar da recorrência em suas análises vernaculares lusofonia-mundo árabe-muçulmano, por exemplo, Freyre nunca tira os dois pés de uma perspectiva orientalista... mesmo dentro de variações de análise, como você destacou sobre as contribuições positivas e as preconcepções negativas, ele sempre acaba concluindo dentro de um reduzido espectro de variação analítica sobre realidades de origem asiática...

      Uma leitura dele sempre nos exige percepções sutis sobre discurso linguístico e raciocínio argumentativo o tempo todo...

      Adorei sua resposta, desconhecia os aspectos que você citou... aprendi mais uma... ;)

      Forte abraço...

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  2. Leitura instigante e provocativa!
    Duas dúvidas:
    1. No final do texto você fala de "estudiosos ocidentais especialistas em Oriente" que Freyre utilizava como referência que entendia como "científica", pode indicar as principais obras e autores que ele se referenciou para abordar a China, em especial?

    2. Ao falar de orientalismo enquanto um uma representação que depende da posição de quem fala, e sendo Freyre não um "ocidental", mas um latino-americano, isso me fez refletir o seguinte: para não-ocidentais (não europeus e não norte americanos) produzirem discursos e práticas orientalistas é preciso que sua autorepresentação tenha um afinidade ou aproximação com o que entende ser o "ocidente"?
    (ou seja, se um brasileiro se ver como "ocidental", este teria mais chance de ser orientalista? E, ao contrário não se vendo assim, teria menos chance?)

    Matheus Oliva da Costa.

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    1. Arlindo José Reis de Souza8 de agosto de 2023 às 10:02

      Estimado Matheus Oliva da Costa

      Agradeço muito as suas pertinentes perguntas.

      1. Em relação aos Orientes e não-Europas em geral, Freyre agia de modo muito semelhante aos orientalistas. Ou seja: via-de-regra lançava-se de autores não orientais para obter conhecimento sobre os orientes. Reproduzindo, assim, por estes filtros, muito do discurso orientalista em seus escritos. A lista de autores orientalistas que ele cita é vastíssima, contando com praticamente todos os "orientalistas clássicos" citados por Said no livro o Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente, e mais alguns, entre eles alguns alemães, estadunidenses e portugueses. Em relação à China, Freyre é mais vago. Possivelmente (e digo "possivelmente" por que o caso Chinês não está tanto no meu escopo) em função de dois fatores: 1) quando da visita ao "ultramar português" não ter visitado Macau; e 2) o fato de Macau não ser um "problema" para o governo português que o convidou (Macau permaneceu como parte de Portugal - "Território Especial" - até 1999).
      Sobre a China vejo, portanto, poucos autores citados, mas daria destaque a John B
      Griffing, com os textos "A comparison of the effects of certain socioeconomic factors upon size of family in China, Southem Califórnia and Brazil"; "Natural eugenics, in Brazil "Journal of Heredity (American Genetic Association), vol. XXXI, na 1, Washington; e "The acceleration of biological deterioration", Sociology and Social Research, vol. 23. (citações que aparecem na 48ª edição de Casa Grande & Senzala, de 2003). James Wetherell em Stray notes from Bahia: being extracts from letters, &C., during a residence of fifteen years(Liverpool, MDCCCLX); John Luccock, Notes on Rio de Janeiro and the southern parts of Brazil, taken during a residence of ten years in that country from 1808 to 1818, Londres, MDCCCXX. Estes últimos (Wetherell e Luccock, autores que estabeleciam comparativos entre o Brasil e a China.


      2. Como apontado no texto, a questão da identidade (no caso, a ocidental) é chave para a adoção de uma postura orientalista. No entanto, existem textos que apontam mesmo para a existência de um "orientalismo interno", naturalmente, produzido por elites locais que passam a usufruir de privilégios junto a administração metropollitana (ver Catholic Orientalism, de Xavier e Zupanov, 2015). Mas nestes casos também existe um movimento de "ocidentalização". Ou seja, penso que mesmo que não ocidental, uma auto-idenficação como ocidental exerce uma influência importante na tessitura de discursos orientalistas.

      Grato pelas perguntas, e espero ter ajudado, Matheus!

      Arlindo José Reis de Souza

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    2. Muito obrigado pelas respostas ricas e precisas, Arlindo!

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  4. Primeiramente parabéns pelo seu excelente trabalho. Um ponto que chamou a minha atenção foi o fato de que Gilberto Freyre apresentava duas perspectivas diferentes em relação aos indianos, uma centrada em aspectos negativos e outra em qualidades. Assim, eu gostaria de saber como essas duas noções se relacionavam.

    Alisson Eric de Souza Simão Pereira

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    1. Arlindo José Reis de Souza11 de agosto de 2023 às 15:35

      Boa tarde, Alisson Pereira.

      Agradeço a apreciação e a pergunta! Essa "oscilação", ou "olhar vacilante", nos dizeres de Said, sobre "os outros", "orientais", é relativamente comum quando se trata de perspectivas orientalistas. E embora talvez não seja comum tanta dualidade em um mesmo autor, Freyre é conhecido pela sua ambiguidade em relação a diversos assuntos por ele tratado.
      "Qualidade" esta que ele mesmo ressalta quando versa sobre seus próprios escritos. Quando o assunto são "os judeus" ou "os muçulmanos" ocorre o mesmo tipo de ambiguidade, inclusive. Assim sendo, Freyre não via problemas (segundo suas palavras mesmo) neste tipo de oscilação. Ele se sentia um autor livre e "isento" (embora saibamos que não era bem assim), sendo o "equilíbrio de antagonismos" comuns em suas obras.

      Maia uma vez grato.

      Arlindo José Reis de Souza

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  5. Boa noite!
    Muito interessante a discussão da comunicação, bem como um tema paralelo, o da ocidentalidade ou não de um intelectual brasileiro, que não obstante não ser de um país considerado imperialista, terminou reproduzindo o discurso orientalista.

    O ponto que mais me chamou a atenção foi essa imagem do outro como "feminino", à qual, pelo que li, nacionalistas indianos tentaram reagir estimulando a formação física e militar, numa idealização do que seria o novo sujeito pós-colonial. Entre as organizações criadas com esse fim está a Rashtriya Swayamsevak Sangh, predecessora do atual partido
    no poder na Índia.

    A minha pergunta é: Freyre não conhecia tais movimentos? Se tinha ciência deles, o que comentou sobre tais esforços, visto que eles entravam em conflito com a caracterização dos indianos como essencialmente débeis fisicamente, e conformados a isso?

    Carlos Alejandro Rico Guevara

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    1. Arlindo José Reis de Souza11 de agosto de 2023 às 15:58

      Boa tarde, Carlos Alejandro Rico Guevara.

      Muito obrigado pela pergunta, excelente por sinal!

      De fato, não econtrei menções, nos livros de Freyre sobre este movimento. Freyre via-de-regra, não apenas reproduzia essencializações que desecreviam o oriente (e os indianos em particular) como femeal", como adotou uma perspectiva favorável ao imperialismo português. A propósito, sempre afirmava que os portugueses não eram imperialistas, e reproduzia a nomenclatura utilizada pelo Estado Novo português "províncias" ao se referir às colônias portuguesas. Freyre fazia coro com os próreceres do regime corporativista português e chamava as colônias de "portugais tropicais".
      Nessa linha, sempre chamava os nacionalistas indianos de "invasores", "imperialistas", "radicais" etc.
      Já em Aventura e Rotina, de 1953, por exemplo, Freyre começa a utilizar a expressão "mágicos contra lógicos" (que se reforça em livros como "Insurgências e Ressurgências atuais: cruzamentos de sins e nãos em um mundo em trasnsição") ao se referir aos movimentos de libertação nacional - os quais seriam uma "ameaça maior do que o comunismo" à civilização ocidental.
      Com isso, se Freyre conhecia os movimentos (e possivelmente conhecia), cuidava de não os mencionar para não os "fortalecer" (uma conjectura minha).

      Mais uma vez grato.

      Arlindo José Reis de Souza

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  6. Olá Arlindo. Sobre o caráter contemporizador do português assumido na colonização lusitana na América, como Freyre a entende na Ásia?

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    1. Arlindo José Reis de Souza11 de agosto de 2023 às 16:10

      Boa tarde, Prof. Rafael Egídio.

      Muito grato pela pergunta!

      Em Casa Grande & Senzala Freyre começa a propor um modelo de análise para o tipo de presença portuguesa nos trópicos que vai caracterizar o seu conceito de lusotropicalismo (que, entre outras cosias, reforça este - suposto - caráter contemporizador português).
      No entanto, será a partir de O Mundo que o Português Criou (de 1940) que as ideias lusotropicalistas começarão a tomar mais forma) e - o que torna este conceito "especial" para o regime português - "se espalhar" para todas as áreas de colonização portuguesa. Ou seja, a partir deste livro de 1940 Freyre começa a "insistir" que os portugueses foram "contemporizadores" em todos os seus domínios ultramarinos: na América, na Ásia e na África.

      Mais uma vez grato pela pergunta!

      Arlindo José Reis de Souza

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