JAPANESENESS: O ORIENTALISMO JAPONÊS, por Cássio Gabriel de Campos Silva

  

Edward Said em seu livro publicado em 1979, Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente, examinou a representação do Oriente através da ótica Ocidental e como isso foi usado para justificar o imperialismo europeu, uma vez que este faz uma construção do Oriente como uma cultura exótica, estática e inferior. Apesar da expressão ter sido amplamente divulgada por Said, o Orientalismo desenvolve-se desde o século XVIII com o maior contato europeu com a Ásia e norte da África, onde artistas, escritores, e acadêmicos passaram a criar uma grande quantidade de conteúdo sobre o oriente, enfatizando estereótipos que criavam uma imagem inferior destes povos, além de ameaçadoras para o estilo de vida europeu.

 

O Japão da Era Meiji (1868 – 1912), iniciado com a Restauração Imperial sobre o governo militar dos Tokugawa, é caracterizado como um período de mudanças extremas no governo e na sociedade japonesa. Estas mudanças foram tão grandes que, apesar de alguns historiadores denominarem o período de Restauração Meiji, foi uma verdadeira revolução, derrubando praticamente todas instituições arcaicas do Xogunato Tokugawa, e substituindo-as por instituições “modernas” do ocidente. Segundo Benedict Anderson, o sucesso da Restauração Meiji, bem como a ocidentalização do Japão, só teve sucesso devido a três fatores fortuitos: “Primeiramente foi o relativo elevado grau de homogeneidade etno-cultural japonesa resultado de dois séculos e meio de isolação e pacificação interna pelo Bakufu. [...] Segundo, a antiguidade única da casa imperial [...] e a presença do emblemático Japanese-ness [...], que facilitou a utilização do Imperador para os propósitos oficiais-nacionalistas do governo [...]. Terceiro, a entrada de bárbaros foi abrupta, massiva, e violenta o suficiente para fazer com que a população politicamente conectada buscasse programas de autodefesa nacional com o novo governo.” [Anderson, 2016, p.95 – 96, tradução nossa]

 

Anderson, apesar de atribuir ao Japaneseness como um dos fatores fortuitos para o sucesso da Restauração Meiji e a modernização do Japão, em momento algum ele explica o termo. Na língua inglesa, adjetivos terminados em “ness”, tornam-se substantivos com o significado de “estado, condição, qualidade”, portanto podemos traduzir Japaneseness como “a qualidade de ser Japonês”, porém isso fica muito aquém do real significado do termo. Portanto, o objetivo deste projeto é definir o que pode ser entendido como Japaneseness durante o período Moderno Japonês (1868 – 1945), demonstrando sua similaridade com o Orientalismo descrito por Edward Said, assim como tornou-se um fator crucial para o sucesso do governo Meiji e sua influência no Imperialismo japonês do século XX. Para alcançar tal objetivo, analisaremos como foi feita a ocidentalização do governo Meiji, bem como isso influenciou o discurso da expansão imperialista japonesa.

 

Religião e o Governo Meiji

O Japão, desde 1639, durante o governo Tokugawa, teve suas fronteiras fechadas para o mundo, mantendo pouquíssimo contato com alguns comerciantes holandeses no porto de Nagasaki e nas Ilhas Ryukyu, que, apesar da forte influência do governo Tokugawa, oficialmente eram um reino independente e um estado tributário da Dinastia Qing, por este motivo conseguiram manter certa autonomia e seu comércio com navios chineses. No entanto, no começo do século XIX, manter esse isolamento tornou-se cada vez mais difícil. A ilha de Ezo (atual Hokkaido), sofreu com duas incursões russas, que destruíram alguns assentamentos japoneses, a presença de navios europeus e norte-americanos em águas asiáticas cresceu exponencialmente, principalmente britânicos, levando o Xogunato a fortalecer as defesas das margens. No entanto, notícias do continente sobre o resultado da Guerra do Ópio chegaram aos líderes do governo, fazendo-os iniciar alguns tratados de comércio com potências ocidentais para que o Japão não se tornasse uma colônia. Porém tais tratados eram desiguais e deixavam o Japão em uma posição semi-colonial, os quais seriam revistos quando o arquipélago alcançasse um nível de modernização reconhecida pelos europeus. Essa abertura repentina das fronteiras juntamente com a corrupção generalizada da classe samurai que resultou em diversos problemas administrativos e econômicos, levaram à queda do Xogunato Tokugawa e à Restauração Meiji. Entretanto, diferentemente do que aqueles que lutaram pela Restauração esperavam, o novo governo não tinha força suficiente para expulsar os estrangeiros e muito menos de desfazer os Tratados Desiguais sem levar o país à guerra com as forças ocidentais, iniciando assim uma verdadeira odisseia para a modernização do Japão, visando o reconhecimento dos países ocidentais e a revisão dos Tratados Desiguais.

 

Apesar da forte influência ocidental na modernização do Japão, o governo Meiji não se submeteu completamente aos invasores estrangeiros, adaptando as ideias alienígenas ao método vernáculo, começando a desenhar o primeiro rascunho do que se tornará o orientalismo exclusivo japonês. Uma das primeiras ideias ocidentais a serem adaptadas foi o conceito de religião. Como Hardacre afirma: “quando ideias sobre religião originada na Europa e América vieram para o Japão, elas entraram em uma sociedade que não possuía um conceito ou termo equivalente, não havia uma ideia de uma esfera diferente da vida que poderia ser chamada de religião, e nem que uma religião genérica poderia haver variantes como o Cristianismo, Budismo etc” [Hardacre, 1989, p.63, tradução nossa]. Sendo uma demanda dos países dos Tratados a liberdade de livre prática religiosa, o Japão viu a necessidade de colocar tudo sob um mesmo teto. Trent Maxey vê essa generalização através da burocratização da religião, o qual ele chama de “gramática da religião” e a define como: “as regras conceituais e administrativas que governam e articulam as políticas de Estado relativas à religião.” [Maxey, 2014, p.2, tradução nossa]

 

A primeira tentativa para aplicar essa gramática da religião, foi tentar transformar o Xintoísmo como a religião oficial do Governo Meiji, sendo fortemente defendido por intelectuais do período pré-moderno (chamados de Kokugaku-sha, ou Nativistas), e também por seus sucessores durante a Era Meiji, como a essência da identidade Japonesa [Hardacre, 2017], portanto, enxergando na religião indígena a oportunidade perfeita para consolidar seu governo sem ser pela força, encontrando legitimidade em suas ações e no reconhecimento do Imperador como governante supremo. Antes da Restauração Meiji, o Imperador já realizava rituais xintoístas com intuitos religiosos e tradicionais, porém após a Restauração, atos oficiais do passaram a ter formatos ritualísticos, como por exemplo o Juramento Imperial de 1868, que pretendia expor as intenções do imperador para com o Japão, como por exemplo a união dos corações e mentes do povo por uma melhor governabilidade do império; quebrar as amarras das tradições malignas e basear suas ações nos princípios das leis internacionais; entre outras. Entretanto, como John Breen atesta: “o Juramento é ‘performativo’, nunca é apenas um texto, uma declaração ou um conjunto de declarações. Um juramento é, por definição, uma performance e, dadas certas condições – notavelmente o uso de símbolos e sua proximidade íntima do sagrado – essa performance se torna em um ritual.”[Breen, 1996, p.409, tradução nossa]

 

Fonte: Inui, N. (1928). Proclamation of the Imperial Oath 「五箇條御誓文」Gokajō no go-seimon[Painting]. Meiji Memorial Picture Gallery, Shinjuku, Tokyo, Japan.

 

Como podemos ver na imagem acima, a Proclamação do Juramento Imperial, apesar de ter sido um ato oficial do governo, ele é extremamente ritualístico, onde todos os participantes usam roupas ritualísticas, o Imperador, cercado por um biombo de três faces, fica no meio do ambiente, e, no lugar de maior prestígio onde todos podem ver, possui um pequeno santuário com itens de purificação onde o imperador realizaria as oferendas às deidades e uma mesa baixa com o juramento escrito, o qual seria lido por Sanjo Sanetomi em nome do Imperador Meiji. Essa inserção da religião no governo, era visto por seus líderes como uma maneira ocidental de exercer o poder e unificar o povo em prol de uma causa comum, chegando ao seu ápice, após várias idas e vindas, no final do Período Meiji com o que foi chamado de Estado Xintoísta.

 

O Estado Xintoísta começou a ser esboçado após líderes do governo perceberem o problema de utilizar os Kamis como figuras centrais para a unificação do povo, chegando à conclusão de que a figura central do país deveria ser o Imperador, porém sem abandonar o poder ritualístico do Xintoísmo. Essa transição chegou a uma conclusão na Promulgação da Constituição Imperial em 1889, onde, como podemos ver na imagem abaixo, diferentemente da Proclamação do Juramento Imperial, o Imperador Meiji está localizado na posição mais nobre do ambiente, não estando escondido por biombos, pelo contrário, estando em um patamar mais elevado em relação aos presentes, e usando roupas militares ocidentais, demonstrando sua alta posição como líder supremo das forças armadas.

 

Fonte: Adachi, G. (1889). View of the Issuance of the State Constitution in the State Chamber of the New Imperial Palace. [One sheet of a triptych of woodblock prints; ink and color on paper]. The Metropolitan Museum of Art. New York, NY, United States of America. https://www.metmuseum.org/art/collection/search/55247?ft=imperial+japan&off

set=0&rpp=40&pos=34

 

Japaneseness e o Estado Xintoísta

A promulgação da Constituição Meiji contou como um marco para o fim do período semi-colonial japonês, uma vez que após a promulgação, o Japão passou a fazer parte do cenário internacional e passou a ter força o suficiente para revisar os Tratados Desiguais firmados na primeira metade do século XIX. Mas também é um marco para o começo do desenvolvimento imperial-colonialista japonês, bem como de sua própria forma de orientalismo, o Japaneseness.

 

Japaneseness não foi algo espontâneo que surgiu na sociedade Japonesa, mas foi desenvolvido pelo governo através do Estado Xintoísta e endossado pela Constituição. Tal endosso pode ser encontrado em diversos Artigos da Constituição, porém como podemos ver no prêambulo da versão inglesa comentada por Itō Hirobumi, e ausente na versão japonesa, objetiva deixar claro para os estrangeiros que o Japão não possui uma cultura exótica, estática e inferior, mas sim que está em pé de igualdade, inclusive como cultura superior e capaz de “levar a civilização” a povos menos desenvolvidos:

 

“PREÂMBULO. Tendo, em virtude das glórias de Nossos Antepassados, ascendido ao Trono de uma sucessão linear ininterrupta por eras eternas; desejando promover o bem-estar e desenvolver as faculdades morais e intelectuais de Nossos amados súditos, os mesmos que foram favorecidos com o benevolente cuidado e afetuosa vigilância de Nossos Antepassados [...].” [Itō, 1889, p. XI, tradução nossa]

 

Outro ponto importante que deve ser chamado atenção na Constituição Meiji, é o Artigo 28, onde lê-se: “Súditos japoneses devem, dentro dos limites não prejudiciais à paz e à ordem, e não antagônicos aos seus deveres como súditos, gozar de liberdade de crença religiosa” [Constituição Meiji, 1889, in Itō, 1889, p.53, tradução nossa]. Portanto, os deveres dos súditos, como a reverência ao Imperador e a participação em rituais e festivais promovidos por Santuários Xintoístas, ultrapassavam o direito de crença religiosa. Essa reverência e ritualística, os ideais de desenvolvimento moral e intelectual dos súditos, bem como a ótica de superioridade japonesa, foram transportados para colégios de toda a nação através do Édito Imperial sobre Educação de 1890.

 

Abaixo, traduzimos o Édito Imperial sobre Educação de 1890, onde é possível as características do Japaneseness:

 

“Faça saber vocês, nossos súditos

Nossos antepassados imperiais fundaram Nosso Império sobre uma base ampla e eterna, e seus súditos sempre unidos em lealdade e piedade filial tem de geração em geração ilustrado a beleza deste. Esta é a glória do caráter fundamental de Nosso Império, e nele também encontra-se a origem de Nossa educação. Vocês, Nossos súditos, sejam filiais com seus pais, afetuosos com seus irmãos e irmãs; como maridos e esposas sejam harmoniosos, como amigos sejam verdadeiros; Mantenham-se na modéstia e moderação; estendam sua benevolência à todos, busquem o aprendizado e cultivem as artes, e deste modo desenvolverão faculdades intelectuais e poderes morais perfeitos; ademais, desenvolverão os bens públicos e promoverão os interesses comuns; sempre respeitem a Constituição e observem as leis; caso alguma emergência surja, ofereçam-se corajosamente para o Estado; e assim guardar e manter a prosperidade de Nosso Trono Imperial contemporâneo com os céus e a terra. Deste modo vocês não serão apenas Nossos bons e fiéis súditos, mas tornarão ilustres as melhores tradições de seus antepassados. O Caminho aqui estabelecido é de fato os ensinamentos legados por Nossos Ancestrais Imperiais, a serem observados por Seus Descendentes e súditos, infalivelmente por todas as eras e verdadeiro em todos os lugares. É Nosso desejo colocá-lo com toda a reverência nos corações, em comum com vocês, Nossos súditos, para que todos possamos alcançar as mesmas virtudes.” [Édito Imperial sobre Educação, 1890, como citado por Hardacre, 1989, p.121 –122, tradução  e grifos nossos]

 

Uma característica do Orientalismo de Said é a forma com a qual países ocidentais retratavam o Oriente, sendo em obras de arte, textos acadêmicos, obras literárias, entre outros. O Japaneseness age de forma mais discreta, não criando uma imagem inferior do outro, mas exaltando as características japonesas. Como é possível ver nos grifos acima, o povo japonês, ao seguir os ensinamentos legados pelos ancestrais, os quais são infalíveis em todas as eras e lugares, garantirão a continuidade eterna do Império do Japão. Podemos ver na imagem abaixo outra forma de mostrar a superioridade japonesa, onde o Édito Imperial sobre Educação juntamente das imagens do casal Imperial (o qual representam a harmonia matrimonial descrita no Édito) deveria ser reverenciado por todos, alunos e professores, não importando sua fé ou religião. O Édito também deveria ser armazenado em um local especial, muitas vezes assemelhando-se a santuários xintoístas, e o conjunto também deveria ser mantido em segurança, como se a própria encarnação do Imperador estivesse no documento e nas fotos, havendo casos em que pessoas sacrificaram suas vidas para proteger os documentos em caso de incêndios e acidentes.

Fonte: The Imperial Rescript on Education 「教育勅語下賜」Kyōiku Chokugo Kashi [postcard]. 「明

治大正昭和大絵巻 」大日本雄弁会講談社.

 

Conclusão

Apesar das limitações deste trabalho, o autor tenta demonstrar que o Japaneseness do Período Meiji, diferentemente do que Anderson afirma, não era uma característica fortuita e inerente da população do período e responsável pelo sucesso da Restauração Meiji e sua Modernização, mas foi uma criação influenciada pelas potências ocidentais nos mesmos moldes do Orientalismo de Said. O Édito Imperial sobre Educação assim como a Constituição Meiji, foram dois marcos na organização do Japaneseness como uma ideologia nacionalista e imperialista. Deste momento em diante, o Japão não era mais peão no complexo jogo de dominação colonial. O Império Japonês não só aprendeu táticas orientalistas, como as assimilou na mentalidade da sociedade. O que antes era um medo de tornar-se colônia de alguma potência ocidental, tornou-se em um desejo de exportar seu “sucesso” aos demais países “inferiores” do Leste asiático. A vitória japonesa sobre o antigo gigante asiático, na primeira Guerra Sino-Japonesa (1894 – 1895), e sobre um país ocidental, na Guerra Russo-Japonesa (1904 – 1905), deu ao Japão a supremacia militar necessária para expandir o Japaneseness para além do arquipélago japonês.

 

Referências

Cássio Gabriel de Campos Silva é estudante PHD do Departamento de Sociologia da Universidade Metropolitana de Tokyo, mesma universidade na qual obteve o título de Mestre das Artes em Sociologia. O autor também é historiador graduado pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

Kiyoto Tanno é professor do Departamento de Sociologia da Universidade Metropolitana de Tokyo e orientador do primeiro autor (Cássio). Professor Tanno é especializado em estudos de migração, sociologia do trabalho de trabalhadores estrangeiros e estudos étnicos. Formou-se em 1991 no departamento de Economia da Universidade de Kanagawa e em 2003 obteve seu PHD em sociologia na Universidade de Hitotsubashi.

 

ANDERSON, Benedict. Imagined communities: reflections on the origin and spread of nationalism. Revised edition. London ; New York: Verso, 2016.

 

BREEN, John. “The Imperial Oath of April 1868: Ritual, Politics, and Power in the Restoration” in Monumenta Nipponica, Vol. 51, n.4, Inverno, 1996, p. 407–429. Disponível em: https://doi.org/10.2307/2385417

 

HARDACRE, Helen. Shintō and the State, 1868 – 1988. New Jersey: Princeton University Press, 1989.

 

HARDACRE, Helen. Shintō: A History. New York: Oxford University Press, 2017.

 

ITŌ, Hirobumi. Commentaries on the constitution of the empire of Japan. Tokyo: Igirisu-hōritsu gakko, 1889.

 

MAXEY, T. The Greatest Problem: Religion and State formation in Meiji Japan. Massachusetts: Harvard University Press, 2014.

 

SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. (tradução de Rosaura Eichenberg)

9 comentários:

  1. Boa tarde Cássio,

    Sobre a elaboração da constituição Meiji de 1889 e a relação do posicionamento Kokugaku-sha. Estive pensando sobre como se deu a formação da figura do imperador segundo a leitura xintoísta atrelado a constituição e a sua conexão com o conceito de nação?

    Esta pergunta me veio em mente, pois estive realizando leituras da obra de Yukio Mishima (A tetralogia do Mar da Fertilidade) e foi manifestado a figura de Atsutane Hirata (1774-1843) que teve uma participação da linha de Kokugagu. Claro que Mishima tem a sua própria leitura a respeito da imagem do imperador. Então gostaria de saber como foi a articulação da figura do imperador (como figura central - chefe de estado e referência sobrenatural) no papel da constituição de 1889?
    Obrigado.

    Levi Yoriyaz

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    1. A formação da figura do Imperador na Constituição de 1889 foi um processo de tentativa e erro. Logo após a Restauração Meiji, o governo passou a focar na figura divina do Imperador. Essa figura divina do Imperador é fortemente influenciada pelas ideias de Hirata Atsutane que escreveu muitos textos religiosos, sendo um de seus principais trabalhos o livro "Tama no Mihashira", ou Verdadeiro Pilar das Almas. Aqui Atsutane tenta construir as fundações para que o povo alcançasse o verdadeiro Yamato-damashi, sem nenhuma influência Budista, Confucionista ou Cristã (apesar do próprio Tama no Mihashira ter influência cristã) e também reformula a Cosmogonia do Xintoísmo. Nessa reestruturação da Cosmogonia, os kamis da criação (musubi no kami) deram a Ōkuninushi no kami o governo do mundo pós morte e a Amaterasu no kami (e seus descendetes) o governo do mundo dos vivos. Atsutane teve milhares de discipulos, que influenciaram na restauração Meiji e todos tinham em comum a ideia de que o Imperador deveria ter um papel central no governo, e acima de tudo, na realização de rituais para os kamis em pról da nação, levando a criação da ideia do saisei ichi (união de rituais e do governo) e do kokutai (corpo nacional). Essa é a base para a referência sobrenatural do Imperador.

      Porém devido a pressão internacional por liberdade religiosa e de culto, e a religião não ser um fator forte suficiente para a unificação da vontade do povo, o governo viu que era insustentável manter essa imagem do imperador. Por este motivo, o governo afasta-se das vias sobrenaturais e passa a construir uma nova imagem do Imperador e do próprio Japão. Essa imagem é a Nação Familiar, onde a Casa Imperial é a cabeça da nação e o povo são familias ramificadas da Casa Imperial, portanto o Imperador é o ancestral comum de todo povo japonês. Essa imagem é construída no capítulo 1 da Constituição, mas é vulgarizada para a população através do Édito da Educação de 1890.

      Espero ter respondido sua pergunta e fico aberto a novas questões

      Cássio Gabriel de Campos Silva

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  2. Boa tarde. Tenho duas peguntas:
    1) A posição do imperador como figura suprema me lembrou um pouco da Teoria do Direito Divino, da Idade Média na Europa. Existiu alguma influência europeia nesse sentido?
    2) Quando se fala de Xintoísmo em Meiji, pode se afirmar que já existe um sincretismo religioso com o Budismo?

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  3. Boa tarde. Tenho duas peguntas:
    1) A posição do imperador como figura suprema me lembrou um pouco da Teoria do Direito Divino, da Idade Média na Europa. Existiu alguma influência europeia nesse sentido?
    2) Quando se fala de Xintoísmo em Meiji, pode se afirmar que já existe um sincretismo religioso com o Budismo?

    Nome: Tomoya Bizzotti Miyahara

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    1. Boa tarde,

      1) Respondendo de forma direta, não teve influência européia nesse sentido, pois na Teoria do Direito Divino, o poder dos Reis vem da vontade de Deus. Já o imperador, é um descendente direto da Amaterasu-no-kami, estando inclusive registrado nas antigas historiografias do Japão [Kojiki (712) e o Nihon shoki(720)], sendo assim o Imperador em sí é uma divindade. Porém, a influência européia pode ser vista em outros aspectos durante o Período Meiji, como por exemplo, a posição de comandante supremo das tropas imperiais. As obrigações do Imperador antes da Restauração Meiji eram praticamente todas ritualísticas, sendo esse papél "civil" do imperador uma influência européia. Tiveram centenas de outras influências, porém acredito que a Teoria do Direito Divino não foi uma dessas.

      2) Sim e não. O Xintoísmo em sí era uma religião primitiva de adoração à Terra, fenômenos naturais etc. possuíndo rituais locais e nada unificado. Ele passa a ter uma unificação ritualística e uma sistematização somente com Yoshida Kanetomo no período Sengoku (século XV). Nesse período, Yoshida Kanetomo já dizia que seu Xintoísmo era puro de influências estrangeiras, mas toda sua sistematização e ritualística foi influenciada pelo Confucionismo e pelo Taoísmo.
      Quando falamos sobre Xintoísmo em Meiji, muitos templos budistas que ficavam no mesmo terreno de Santuários foram queimados, buscando a purificação de influências estrangeiras, além disso muitos Xintoístas afirmavam que sua vertente era pura de qualquer influência (seja budista, taoísta, confucionista, cristã), a exemplo o Kokugaku-sha (estudiosos nacionalistas japoneses) Hirata Atsutane que na busca pelo verdadeiro Xintoísmo, influenciado pelo cristianismo, inseriu a ideia de vida após a morte no xintoísmo. Portanto, quando falamos em Xintoísmo no geral, é dificil achar algum momento que ele não teve nenhum tipo de sincretismo religioso.

      Espero ter respondido suas perguntas, e fico a disposição para novas perguntas.

      Cássio Gabriel de Campos Silva

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  4. Bom dia,

    Primeiro, gostaria de parabenizá-los pelo texto, foi uma ótima introdução ao conceito de "japaneseness" e o seu surgimento no contexto da Restauração Meiji.

    A minha pergunta é: existe uma continuidade desse orientalismo japonês na forma como os japoneses se enxergam hoje, na contemporaneidade? Se sim, como ele tem se manifestado nesse contexto globalizado, e há esforços dentro da intelectualidade japonesa para quebrar esse mito?

    Grata desde já,

    Samantha Alves de Oliveira

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    1. Bom dia Samantha,
      Primeiramente, obrigado pelo comentário. Agora sobre sua pergunta, o Japaneseness como forma de ideologia e políticas Orientalista, acaba com a ocupação Americana no pós Segunda Guerra Mundial e oficialmente com a nova Constituição de 1947. Sobre a forma como o japoneses se enxergam hoje, não diria que seria mais uma forma Orientalista pois não há mais o fator imperialista na equação. daqui pra frente não tenho base teórica e falo baseado em minhas experiências aqui no Japão, o japonês não se enxerga como um povo superior, mas como uma cultura homogênea (apesar de eu discordar, uma vez que dentro do próprio Japão existem uma diversidade cultural grande, como por exemplo os Ainus e a cultura de Okinawa) e enxergam os estrangeiros como diferentes, mas não necessariamente como inferiores. Existem no meio acadêmico japonês pesquisadores que tentam expandir o conhecimento sobre estrangeiros (a exemplo meu próprio orientador), mas, para mim, são ações que não influenciam a população geral e nem as políticas públicas. O estrangeiro aqui no Japão nunca será japonês, mesmo se ele nascer e for criado aqui.
      Espero ter respondido sua pergunta e me desculpe pela falta de base teórica na resposta

      Cássio Gabriel de Campos Silva

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  5. Olá, Cássio.
    Obrigado pelo texto e pela pesquisa! Não era familiar com o conceito e foi bastante informativo, obrigado!

    Tenho uma pergunta que tangencia seu trabalho, mas que talvez seja um pouco fora do tema.

    Sobre o xintoísmo enquanto religião, você comentou que o próprio conceito de religião não estava presente pré-restauração. Como o xintoísmo era entendido neste período pré-restauração? Acompanhando sua argumentação, fiquei com a impressão que as entidades “religiosas” existiam enquanto uma espécie de grupo social distinto que não necessariamente estariam relacionadas ao governo, apesar de estar profundamente incluído no corpo social, e que possuiriam sua própria lógica de poder. Você saberia me informar como mais ou menos era a lógica com que se percebia o xintoísmo neste período pré-restauração?

    Obrigado!
    Felipe Chaves Gonçalves Pinto

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    Respostas
    1. Bom dia Felipe, que bom que gostou do texto e que pôde aprender algo com ele.

      Respondendo sua pergunta,

      Primeiramente, precisamos entender o que entendemos por religião, só o fato de crer em algo é religião? Um conjunto de rituais é religião? Eu gosto como Trent Maxey no seu livro "The greatest problem: Religion and State formation in Meiji Japan" trabalha com o conceito de "gramática da religião", que ele considera como as regras conceituais e administrativas que governam e articulam as políticas de Estado referentes a religião (Maxey, 2014). Ou seja, religião e política andam de mãos dadas, é algo que é regularizado, tanto internamente, quanto externamente.

      Dito isso, Maxey cita Helen Hardacre onde ela diz que no período pré-Meiji não existia o conceito de religião como um fenômeno geral, mas existia a fé (shinkō) em determinado kami, Buda ou mesmo no Deus cristão, mas não existia um termo para determinar a esfera da vida religiosa de uma pessoa. Na real existiam no mínimo dezenas de termos pra se referenciar a religião, não lembro de cabeça de todos, mas cada termo, apesar de traduzido como religião, significa algo ainda mais complexo.

      Portanto, tentando finalmente responder suas perguntas, o xintoísmo (assim como outras religiões) apesar de terem uma gramática da religião, eram vistas como crenças "em algo" e não como uma esfera genérica da sociedade.

      Desculpa se não consegui explicar direito, mas esse é um tema realmente complicado de ser explicado em uma caixa de comentário. Se tiver mais interesse sobre o assunto, recomendo fortemente o livro do Maxey. Se não tiver tempo para ver o livro inteiro, a introdução já aborda bem o assunto.

      Cássio Gabriel de Campos Silva

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