GEN, O TRIGO VERDE DE HIROSHIMA: MEMÓRIAS DO PÓS-GUERRA ENTRE REPRESENTAÇÕES E NARRATIVAS (1973 – 1985), por Lucas Ciamariconi Munhóz

 

A Segunda Guerra Mundial foi encerrada com o lançamento de armas nucleares nas cidades de Hiroshima e Nagasaki, com a rendição japonesa oficializada pela Declaração de Postdam em julho de 1945 e pela ocupação americana em território nipônico. O pós-guerra japonês foi ambientado por um discurso pacifista e progressista, entretanto, estruturado por uma historiografia negacionista que silenciava os corpos pulverizados pelas duas bombas atômicas, assim como ocultava o passado obscuro e recente do imperialismo japonês. Essa narrativa foi trazida a cabo em comunhão pelos governos americano e japonês, estruturada não apenas por dispositivos acadêmicos e políticos, mas também por veículos culturais, de comunicação de massa, pela imposição da censura e pela construção de uma memória alinhada ao novo modelo de nação propagado durante o período.

 

Como consequência desses desdobramentos, observa-se não apenas uma ruptura com o passado, mas também uma ruptura com a identidade cultural japonesa predominante naquele momento. A veloz e ríspida transição alavancada pelo fim da guerra e pelas novas narrativas levou a nação japonesa a um processo voluntário de esquecimento e ocultação de suas memórias e perdas, apesar de, como pontua o historiador Yoshikuni Igarashi, elas serem elementos fundamentais na construção da nova identidade cultural apresentada pelo pós-guerra. O autor aprofunda:

 

“O Japão do pós-guerra naturalizou a ausência e o silêncio do passado ao erradicar sua própria luta para lidar com suas memórias. Pode parecer que a sociedade do pós-guerra facilmente deixou suas experiências para trás na busca por sucesso econômico. Entretanto, o progresso atual de esquecimento da perda não foi fácil: isto envolveu uma luta constante para transformar as memórias de guerra em uma forma nostálgica e benigna.” [IGARASHI, 2011, p. 40]

 

A censura e o controle dos meios de comunicação e informação no pós-guerra imediato buscavam suprimir qualquer discurso que fosse crítico e subversivo ao novo modelo de nação, e assim, muitas das produções culturais e acadêmicas que se orientassem nesse sentido, eram rapidamente rejeitadas e reprimidas. Dessa maneira, a narrativa gerada em cooperação entre Estados Unidos e Japão, buscava tornar aceitáveis os acontecimentos das bombas atômicas e a rápida transição de relacionamento entre as duas nações, outrora inimigas, agora aliadas, num vínculo que inverteu os ideais do imperialismo japonês, onde o colonizador passa a ter o status de colonizado. A empreitada imperialista japonesa e as vítimas das bombas atômicas foram propositalmente esquecidas, deixando espaço apenas para as memórias e corpos japoneses que confirmassem a narrativa oficial construída.

 

É nesse cenário de disputa pelo passado que o Japão se reestrutura durante o pós-guerra, gerando consequências refletidas no presente. Os discursos negacionistas ainda possuem espaço no meio acadêmico, assim como são operados pela política conservadora predominante no país. No entanto, produções críticas frente a esse discurso são muito mais presentes e aceitas, bem como se internacionalizaram e se complexificaram ao longo do tempo.

 

No ano de 1973, vinte e oito anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, é iniciada a publicação de はだしのゲン  Hadashi no Gen, mangá criado pelo quadrinista Keiji Nakazawa, sobrevivente e testemunha direta da explosão da bomba atômica na cidade de Hiroshima. A narrativa sequencial gira em torno do personagem Gen, um menino de cinco anos que sobrevive a explosão da bomba, e perde toda sua família, exceto pela sua mãe e dois de seus irmãos mais velhos. Nakazawa representa com detalhes os meses finais da guerra e os anos seguintes que denominam o pós-guerra.

 

A trama se encerra após doze anos de publicação, no ano de 1985, com o décimo volume, momento em que o personagem Gen se muda para Tóquio, em busca de se tornar um quadrinista. Apesar da arte sequencial do autor não ser uma fonte essencialmente acadêmica, é uma contribuição importante para o debate acerca da construção da memória do pós-guerra, levando em consideração que representa um evento historicamente relevante, também fundamentado nas memórias pessoais selecionadas pelo autor. Acima de tudo, Gen Pés Descalços é o relato de uma testemunha sobrevivente do evento nuclear em Hiroshima. Para muitos, o mangá é considerado um relato autobiográfico e um signo da luta contra o negacionismo no Japão. Para a historiadora Hillary L. Chute, a narrativa sequencial de Nakazawa teria inaugurado o gênero de mangá-documentário.

 

Hadashi no Gen fez muito sucesso no Japão, assim como em vários outros países, incluso o Brasil. Sabe-se que chegou as prateleiras das escolas japonesas e por lá permanece até o presente. Entretanto, a presença da obra no meio escolar e cultural, não agrada grupos políticos conservadores atuantes no país há vários anos. Dos fatos que foram possíveis levantar, vale citar dois acontecimentos separados geograficamente e temporalmente, mas que confluem para uma mesma situação: a presença do negacionismo nos meios políticos e acadêmicos japoneses.

 

A primeira polêmica envolvendo Gen acontece em Matsue, a sudoeste do arquipélago, no ano de 2013. O Conselho Escolar Municipal decidiu retirá-lo das bibliotecas escolares, após uma avalanche de cartas direcionando críticas ao antimilitarismo promovido pelo autor, e pela sua abordagem perante as ações imperialistas na Ásia, principalmente na China e Coréia. Contudo, a medida não durou muito, e em cerca de dois meses a maioria dos diretores escolares da cidade se manifestaram contrários a decisão. A obra permaneceu onde estavam apesar de ficar a cargo de cada diretor decidir se ia restringir ou não o seu acesso. Segundo a pesquisadora Janaína de Paula do Espírito Santo esse evento:

 

“[...] representa um eco da resistência nacionalista que, por vezes, acompanha a obra em questão e outros mangás e livros que optam por uma abordagem questionadora frente ao exército japonês ou a participação nipônica na Segunda Guerra Mundial, bem como no período anterior a ela. De fato, no período de publicação, a opção de Nakazawa de apontar o papel central do militarismo e do nacionalismo japonês ia na contramão de um certo conservadorismo político, que marcou a explicação mais cara aos historiadores japoneses, entre as décadas de 1960 e 1980, centrada em uma afirmação do papel do Japão como uma grande vítima do conflito mundial.” [SANTO, 2016, p. 55]

 

Em segundo, é imperativo expor o recente ataque a obra, desta vez ocorrido na cidade de Hiroshima, no final de março de 2023. A Secretaria de Educação da Prefeitura anunciou que irá retirar Gen Pés Descalços dos materiais do Programa de Educação pela Paz, conteúdo voltado para o Ensino Fundamental. Entre os argumentos, citam a falta de tempo para abordar em sala e a desconexão entre o evento nuclear e a realidade das crianças. O mangá também foi acusado de possuir um viés ideológico que privilegia apenas um lado, e que esses materiais deveriam prezar pela neutralidade política. O caso revoltou um grupo de japoneses e ganhou atenção da mídia após uma petição para vetar a ação ter sido assinada por mais de 55 mil pessoas. Ambos exemplos levantam a suspeita não apenas de um eco nacionalista, mas a da manutenção do discurso negacionista presente desde o pós-guerra imediato, que é reinventado e reapresentado de acordo com as especificidades da temporalidade em que está inserido.

 

Gen Pés Descalços chegou a ser publicado por diversas revistas, mas principalmente pela revista 週刊少年ジャンプ Shūkan Shōnen Janpu. Chegou aos leitores pela primeira vez em formato semanal, e após obter certo alcance, foi reeditado e publicado em dez volumes comemorativos, os chamados Tankobon. A fama do mangá de Keiji Nakazawa o levou a ser adaptado em outros gêneros culturais. Entre 1976 e 1980 foram produzidas três Live Actions pelo diretor Tengo Yamada. Também foram feitos dois longas-metragens em formato de animês pelo estúdio 株式会社マッドハウス Kabushiki-gaisha Maddohausu entre 1983 e 1986. Nakazawa também produziu conteúdo extra em algumas Light Novels, e o mangá chegou a ser transformado em ópera e musical.

 

O mangá de Keiji Nakazawa é o testemunho de um sobrevivente da devastação nuclear em Hiroshima. O autor não somente sobreviveu a guerra, mas carregou o peso e o trauma de ser um Hibakusha (sobrevivente da bomba). Após a morte de sua mãe em 1966, causada por leucemia e pela longa exposição a radiação no período pós-guerra, Nakazawa decide então expor e relatar suas memórias. Gen é uma obra densa, composta por dez volumes, totalizando mais de 2 mil páginas. Em seu âmago, encontramos uma produção cultural, de ficção, mas que se assemelha fortemente com a vida e as agruras vividas de seu autor, narrando memórias, pensamentos, situações. Mas que de forma alguma se limita a uma narração rasa de memórias e fatos históricos. Hadashi no Gen é claramente uma produção que se encontra no extremo oposto do negacionismo e das narrativas oficiais propagadas durante o pós-guerra japonês, e que ainda são presentes na historiografia, seja na temática em análise, seja em outras temporalidades e situações.

 

O posicionamento de Nakazawa é transparente e direto, de essência antimilitarista, declaradamente pacifista e contrário as ações perversas tanto dos Estados Unidos, quanto as do imperialismo japonês. Apesar de sua narrativa ser focada nos meses finais da guerra, e na sobrevivência do personagem durante o pós-guerra, descortina um passado e as memórias ocultadas ativamente durante o período. Apesar de ter sido produzido quase trinta anos após a guerra, expor os efeitos das bombas de forma explícita, e tocar em assuntos não cicatrizados como os crimes e as atrocidades cometidas pelo império japonês em suas empreitadas coloniais era algo inédito e delicado, afinal, essas mesmas memórias, esses mesmos fatos, já haviam sido retirados a força da identidade nacional e de seu passado recosturado após a guerra.

 

Em síntese, a arte sequencial de Keiji Nakazawa é composta por suas memórias individuais e coletivas, seus traumas, seus sonhos, sua esperança, esperança de que o futuro da nação japonesa fosse algo parecido com o plantio do trigo, que é pisoteado, esmagado, e que, apesar de seu sofrimento, cresce forte e imponente. Por um lado, o mangá nos desperta sentimentos e ideais mais subjetivos, como por exemplo o ideal de paz do autor, e a esperança na nação japonesa e nas futuras gerações, um verdadeiro grito daqueles que por muito tempo foram silenciados. Por outro, nos faz refletir acerca dos processos de construção de memória e de representação de eventos e recortes temporais e históricos relevantes, que como corpos vivos, entram constantemente em embates e disputas, e que nunca se cristalizam no tempo. A memória se reinventa, se recicla, é sobreposta, costurada, em constante transformação, para o bem ou para o mal. Acerca dessa questão, o historiador Michael Pollak nos esclarece:

 

“A memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que se quer salvaguardar, se integra, como vimos, em tentativas mais ou menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos diferentes: partidos [...] clãs, famílias, nações etc. A referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua complementariedade, mas também as oposições irredutíveis.” [POLLAK, 1989, p. 7]

 

Nesse sentido, Gen Pés Descalços, ao meu ver, é uma obra essencialmente relevante no campo historiográfico, legitimando a necessidade de sua análise ser feita a partir do método e da lógica da ciência histórica, que em nosso caso, se liga ao meio da memória e das imagens. A narrativa apresentada pelo autor, como bem já avisamos, é contrária ao discurso oficial propagado e ao viés negacionista, que oculta e apaga crimes de guerra de ambos os lados, mas que também contribuiu para a auto vitimização do povo japonês, apagando por exemplo, as ações do imperador Hiroito, concentrado a culpa do fiasco colonial e de guerra apenas aos militares japoneses.

 

No que diz respeito a construção de memórias, representações e narrativas, Gen Pés Descalços se torna relevante não só pelo seu conteúdo em si, mas por ser um signo, um símbolo do passado que a política conservadora japonesa insiste tanto em ocultar até o presente. A disputa discursiva pelo passado, tal qual fala Pollak, se faz presente no arquipélago nipônico, e, apesar dos dias de censura terem cessado, a obra parece longe de alcançar o ideal de seu autor, e de ser legitimada politica e historicamente como uma parte do passado imperialista e de guerra do Japão.

 

Os ataques recentes ao mangá exemplificam o eco nacionalista que Janaína de Paula nos avisa em seu texto, e que ainda perseguem obras e produções que buscam dar voz aos corpos e as memórias silenciadas durante o pós-guerra. A disputa pelo passado é feita de diferentes maneiras, e os ataques a Gen nos mostra como o mangá é um meio de comunicação solidificado e extremamente relevante e importante, tanto no Japão, quanto no mundo. Lutemos com as armas que temos, o negacionismo político e histórico não deve ser aceito e nem legitimado, para que talvez, num futuro não tão próximo, os sonhos de paz mais utópicos de Nakazawa, se tornem realidade.

 

Referências

Lucas Ciamariconi Munhóz é graduado em História e mestrando em História Social pela Universidade Estadual de Londrina. É membro do Laboratório de Pesquisa de Culturas Orientais (LAPÉCO), e atua como revisor de provas no periódico semestral Prajna: Revista de Culturas Orientais.

 

IGARASHI, Yoshikuni. Corpos da memória: narrativas do pós-guerra na cultura japonesa (1945 – 1970). São Paulo: Annablume, 2011.

 

NAKAZAWA, Keiji. Hadashi no Gen. vol. 1 – 10. Tóquio: Chuokoron Shinsha Chuko Bunko, 2001.

 

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Rio de Janeiro: Estudos Históricos, v.2, n. 3, p. 3 – 15, 1989.

 

SANTO, Janaína. Gen Pés Descalços e o nacionalismo japonês: interseções. In: PATSCHIKI, Lucas; SMANIOTTO, Marcos; BARBOSA, Jefferson (Orgs.). Tempos Conservadores: estudos críticos sobre as direitas. Goiânia: Edições Gárgula, p. 53 – 76, 2016.

14 comentários:

  1. Lucas, primeiramente parabéns pelo excelente texto! Eu tenho muito interesse em assistir Gen Pés Descalços, mas por seu tema bastante sensivel, tenho postergado a experiência, porém a minha dúvida é a seguinte: É fato que o Japão é um país conservador e tem um passado remoto extremamente sujo. Obvio que em todos os lugares tem grupos de resistência que divergem do pensamento conservador e retrógrado. No texto dá a entender que esses grupos estão ganhando mais forças no Japão, isso procede? Se puder explicar um pouco sobre, agradeço!

    Vivianne Almeida Barbosa

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Boa tarde, Vivianne! Agradeço pelas palavras e considerações, como pesquisa recente, é muito importante para mim. Quanto ao seu questionamento, é algo que ainda está em processo de verificação de minha parte. É fato que o Japão possuí uma agenda política conservadora há algum tempo, e que ataques tais quais aconteceram com Gen Pés Descalços, ainda existem. Discutir temas sensíveis como por exemplo as ações do imperialismo japonês encontra certa resistência no meio político, parece que a ao invés de debater, preferem ocultar. Porém, essas minhas primeiras impressões são um tanto quanto superficiais. O texto acima se originou do meu projeto de pesquisa de mestrado, onde eu vou buscar medir com mais precisão se esses ataques e se esse negacionismo são predominantes nos meios político e social japonês. O que não podemos negar é que eles ainda acontecem e estão lá, porém se são prevalecentes ou casos isolados, é algo que ainda busco responder. Agradeço novamente, e fico aberto para um debate maior, caso tenha interesse.

      Lucas Ciamariconi Munhóz

      Excluir
  2. Quando se trata de observar o tratamento no Japão sobre as bombas atômica no Pós Guerra, acredita que seja possível desconsiderar as vantagens que o Japão também considerava com esse silenciamento? Afinal, seria moralizar as ações na guerra. Ao moralizar as bombas atômicas o Japão não teria que necessariamente moralizar o Massacre de Nanquim? Tem um texto muito bom que considera essa temática (NETO, Mario Marcello. Entre a bomba atômica e os crimes de guerra: o negacionismo e a historiografia japonesa em perspectiva. Revista Brasileira de História, v. 41, p. 37-60, 2021).
    Como você verifica historicamente a posição do Japão de silenciamento sobre as bombas e a questão do Massacre de Nanquim?

    Wendell Presley Machado Cordovil

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Boa tarde, Wendell! Agradeço pelas considerações e pela pergunta. Eu já tive contato com a referência citada, e de fato, suas colocações sobre essa problemática são instigantes e necessárias. Como pesquisador novato, talvez ainda tenha uma visão superficial sobre o tema, mas vamos lá. No meu entendimento, o silenciamento sobre as bomba, e ações imperialistas como o Massacre de Nanquim, foram necessários para a construção da narrativa oficial do pós-guerra. Era necessário criar uma imagem de auto vitimização do povo japonês, principalmente do imperador, ao mesmo tempo em que era necessário ocultar os efeitos das bombas para que a recente relação entre Estados Unidos e Japão fosse legitimada. O que busco compreender com maior precisão, é se o negacionismo e as narrativas do pós-guerra imediato ainda são predominantes na historiografia e na política japonesa. Obviamente esses discursos negacionistas passaram por reformulações ao longo do tempo, e as representações de guerra se amplificaram e complexificaram esse debate. Não sei se me fiz muito claro, mas seu questionamento e suas colocações vão em direto encontro com os objetivos propostos no projeto de pesquisa do meu mestrado, que iniciei há pouco tempo, e o texto de Mario Marcello Neto é um dos muitos que serviu de ponto de partida para a minha pesquisa. Agradeço novamente e fico aberto ao debate, ainda há muito no que ser trabalhado e aprofundado, e contribuições como as suas são essenciais.

      Lucas Ciamariconi Munhóz.

      Excluir
  3. Maria Paula de Andrade Praia8 de agosto de 2023 às 15:59

    Primeiramente, parabéns pelo texto, Lucas! Tive a oportunidade de assistir a adaptação de animação de “Gen: Pés Descalços”, dirigida por Mori Masaki em 1983. No entanto, ainda não tive a oportunidade de ler o mangá original de Keiji Nakazawa, que de acordo com o seu texto, parece apresentar uma postura bem mais crítica e visceral sobre o imperialismo japonês e as ações dos EUA.

    Ao ler o seu texto, lembrei-me da perspectiva apresentada por Shuichi Kato no livro “Tempo e Espaço na Cultura Japonesa”, onde o autor discute a habilidade da sociedade japonesa de enterrar um “passado indesejado” e focar nas ações do presente, independente da gravidade das ações passadas. O bombardeamento de Hiroshima e o apagamento das memórias das vítimas e dos crimes de guerra do Japão podem ser exemplos dessa dinâmica.

    No mangá “Gen: Pés Descalços”, ao contrário dessa tendência, o autor e também sobrevivente Keiji Nakazawa traz uma abordagem crítica e visceral, oferecendo um espaço para as memórias das vítimas serem reavivadas e compartilhadas, desafiando o esforço de silenciar e esquecer o sofrimento causado pela guerra e pelas políticas imperialistas. A forma que a sociedade japonesa lida com a complexidade de seu passado e molda “memórias” é um campo muito interessante a ser estudado e é com obras como as de Keiji que podemos observar como a arte pode ser uma forma de resgate de memória.

    Diante disso, tenho uma pergunta: Conforme mencionado no seu texto, a obra é tão relevante que vem sofrendo ataques até nos dias de hoje na cidade de Hiroshima. Considerando a recente decisão da Secretaria de Educação da prefeitura de retirar “Gen Pés Descalços” dos materiais pedagógicos, eu gostaria de saber como você enxerga esse movimento de censura e alegações de viés ideológico? Seria um desejo de neutralidade política ou persistência de um discurso negacionista em relação ao passado do Japão, conforme mencionado no seu texto?

    Maria Paula de Andrade Praia

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Boa noite, Maria Paula! Agradeço as excelentes considerações. Não conhecia a perspectiva de Shuichi Kato, mas ela parece conversar bastante com a visão do historiador Yoshikuni Igarashi, que uso em meu texto. Vou buscar ter acesso a obra, uma ótima referência.
      Quanto ao seu questionamento, acredito que atualmente temos um maior espaço para o debate e visões contrárias as ações imperialistas do Japão, algo que era impossível no pós-guerra imediato, por conta da censura e da perseguição ativa dos governos americano e japonês. Porém, da mesma forma que há espaço para esses novos discursos, a narrativa de ocultação e apagamento ainda é presente. Se ataques como os de Gen são predominantes ou casos isolados, é o que busco entender com maior profundidade. O argumento de neutralidade política não parece se sustentar, visto que os ataques partem normalmente de grupos de extrema direita, que buscam reavivar as narrativas de ocultação, tornar esses temas intocáveis, legá-los ao esquecimento. Espero ter respondido, pelo menos um pouco! Fico aberto ao debate.
      Muito obrigado!

      Lucas Ciamariconi Munhóz

      Excluir
  4. Em primeiro lugar, parabéns pela sua pesquisa Lucas, foi um texto excelente de se ler. Me atentei para várias questões que não tinha conhecimento ainda, por exemplo essa censura tão atual. E fomentou mais ainda meu interesse em consumir Gen Pés Descalços, tanto no original do mangá quando nos animes produzidos.
    Eu pesquiso sobre o mesmo tema, representações culturais no Japão do pós-guerra. Mas no meu caso o objeto são as animações do Studio Ghibli, dirigidas por Hayao Miyazaki e por Isao Takahata, visto que estes eram crianças durante a Segunda Guerra Mundial e cresceram vivendo as consequências diretas do conflito.
    Sobre isso, no caso de Miyazaki os posicionamentos pacifistas e antiguerra são muito mais sutis e indiretos dentro das tramas fantasiosas de suas obras, como Nausicaä do Vale do Vento, Princesa Mononoke, só se dá de forma mais direta em Vidas ao Vento que trata bem diretamente sobre a Segunda Guerra Mundial. Enquanto que Takahata trata do tema de forma extremamente direta em Túmulo dos Vagalumes, mostrando a violência e o sofrimento de civis perante o conflito.
    Considerando as particularidades de cada uma dessas mídias, anime/cinema e o mangá, acredita que uma dessas formas de denúncia à guerra e/ou posicionamento pacifista seja mais impactante culturalmente falando na sociedade japonesa do tempo presente e por consequência mais capaz de sofrer censura do que a outra?

    Gabriel Lacerda de Souza

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Boa noite, Gabriel! Agradeço as considerações e fico feliz em conhecer pesquisadores de mesma área, ainda mais sobre as produções do Studio Ghibli. Quanto a sua questão, é de fato muito interessante e instigante pensar nesse sentido. Tanto o anime quanto o mangá são muito presentes e influentes na sociedade e cultura japonesa, não é atoa que até documentos oficiais do governo são elaborados em formato de mangá. Entretanto, apesar de seus pontos de contato, são mídias distintas que comunicam de formas diferentes, não acredito quem uma se sobreponha a outra, ou que então uma impacte mais que a outra. No caso da censura, não temos algo como no pós-guerra imediato, e o espaço para diferentes narrativas é bem maior. Apesar disso, ataques como os que aconteceram com Gen ainda estão acontecem. Não diria que uma produção seja censurada por ser um anime ou um mangá, mas acredito que dependendo da temática que ela aborde, acaba se tornando um alvo mais fácil de censura, mesmo que indireta. Agradeço novamente, espero ter respondido!

      Lucas Ciamariconi Munhóz

      Excluir
  5. Oi Lucas! Muito bacana seu texto e sua proposta de pesquisa. Lendo seu texto, lembrei de outro mangá, Hiroshima, em que a autora, após a pesquisa feita para obra, aponta como de maneira geral, as questões em torno da bomba atômica vem perdendo aderência nas gerações mais jovens. O negacionismo, portanto, teria outra porta de entrada, que seria o desconhecimento dos jovens. Você pretende abordar esse embricamento de memória, presentismo e discurso conservador em sua pesquisa?
    Abraços!
    Janaina de Paula do Espírito Santo.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Boa noite, Janaína! É uma enorme felicidade receber considerações de uma de minhas referências. Apesar de ser uma pesquisa recente, em muitos aspectos ainda possuo um entendimento um tanto quanto superficial, meus objetivos vão de encontro com o seu questionamento. Num primeiro momento, eu apenas analisei a obra dentro de sua temporalidade de publicação. A ideia agora, para o mestrado, é trazer essas problemáticas mais atuais para o debate, no que diz respeito a essa sobreposição de memórias, e em como o negacionismo se apresenta e é operado pelo discurso conservador. Agradeço novamente e espero ter respondido, ao menos um pouco!

      Lucas Ciamariconi Munhóz

      Excluir
  6. Bom dia, Lucas. Excelente texto. Pesquisas recentes feitas no Japão apontam que as gerações mais novas perderam interesse no tema da bomba atômica e que as nações do leste asiático buscam que o Japão assuma a culpa nas atrocidades cometidas em seus países(vide as mulheres de conforto na Coreia). Entretanto, assim como discutido no texto há esse eterno silenciamento das memórias atômicas e do passado imperialista japonês. Acredito que a visão de Igarashi, também dialogue bem com a de Shuichi Kato em "Tempo e espaço na cultura japonesa", porém esse esquecimento encontra duas etapas de resistencia: o leste asiático que busca reparação pelos feitos do Império japonês e o reconhecimento que as vítimas - ou aqueles que carregam suas memórias - buscam em relação aos bombardeios atômicos. Minha pesquisa, feita a partir de outras obras chegou a considerações de que essa repação e reconhecimento dos bombardeios atômicos só poderão ser reconhecidos caso o Japão assuma seus erros, também. No caso, minha pergunta é: a partir de sua pesquisa no tema, com Hadashi no Gen, você acredita que a análise da obra frente o tema caminhe nesta direção?

    No mais adoraria seu contato para que pudessemos trocar figurinhas
    Douglas Tacone Pastrello

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Boa noite, Douglas! Primeiramente gostaria de agradecer pelas considerações instigantes e ao mesmo tempo, parte delas, novas para mim. É sempre bom poder interagir com pesquisadores de mesma temática, podendo trocar informações e conhecimento. Quanto ao seu questionamento, é necessário elencar que minha pesquisa é fruto de um recente interesse, sendo assim, ainda possuo mais perguntas do que respostas. Entretanto, em meu entendimento, concordo com você quando afirma que a reparação, punição e reconhecimento dos bombardeios só acontecerão, quando de fato, o Japão assumir seus erros. Sabemos que muitos crimes de guerra nem chegaram a ser julgados, e muitos foram inocentados. Não posso afirmar que esses problemas se resolvam apenas com o Japão assumindo seus erros histórica e politicamente, mas com certeza é um passo elementar a ser executado. Mas com isso, também encontramos alguns problemas. Muitos dos sobreviventes já morreram, muitos possuem um trauma tão grande que preferem o silêncio. Ademais, também temos novas gerações, que como você bem coloca, perderam o interesse no assunto, e enxergam a guerra e o evento nuclear com outros olhos. Não é uma questão tão fácil de ser respondida, mas acredito que debater e se aprofundar nesse sentido, só possa agregar a esse debate.

      Deixarei meu e-mail institucional abaixo, para quando quiser entrar em contato. Agradeço novamente!
      lucas.ciamariconi@uel.br

      Lucas Ciamariconi Munhóz

      Excluir

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.