ÉTICA ALIMENTAR E SIMBOLOGIAS DIETÉTICAS EM “A VIAGEM DE CHIHIRO” (2001), por Felipe Daniel Ruzene

  

Considerações iniciais

Em 2003, A Viagem de Chihiro (Sen to Chihiro no Kamikakushi, (千と千尋の神隠し) tornou-se a primeira animação japonesa a angariar dezenas de prêmios em festivais ocidentais (entre eles o ovacionado Oscar de melhor filme de animação) elevando os Studios Ghibli, sua produtora, ao status de cult em meio à cultura pop. Aclamado pela crítica e pelo público, o anime que narra as desventuras da jovem Chihiro Ogino logo superou a barreira do “exótico”, conquistou o imaginário social e se tornou um profícuo objeto para as mais diversas análises nas artes e humanidades.

 

Dentre as inúmeras temáticas abordadas nas películas do estúdio – como xintoísmo, meio ambiente, guerra, família, capitalismo, história do Japão e relações ocidente/oriente, por exemplo – observa-se a recorrente aparição das práticas alimentares e comensalidades em cena [BAPTISTA et al, 2022, p. 6-7]. O cuidado da direção na representação dos preparos, consumos e relações com a comida é notório e permite contemplar como a alimentação é refletida para além de sua funcionalidade biológica de manutenção da vida. Assim, de modo mais abrangente que simplesmente “comer” ou “beber”, ultrapassando a mera potência nutricional, os roteiristas e animadores do estúdio deixam: “muito nítido em suas obras as múltiplas dimensões da comida e da alimentação” [BAPTISTA et al, 2022, p. 7]. O objetivo deste ensaio, portanto, é apresentar a representação e importância dos alimentos e da alimentação, bem como suas projeções ético-filosóficas nas personagens da animação, entendendo a dietética como uma troca entre a matéria animada e inanimada [cf. SUNNERSTAM, 2013, p. 5]. A partir de uma leitura pós-modernista das relações alimentares, considero as trocas e saberes relacionados ao alimento com outras práticas de existência estética, distanciando-me da leitura na qual o corpo que come simplesmente absorve uma matéria extracorpórea que passa a integrar sua entidade autônoma. De fato, as exposições dos modelos dietéticos expressam os variados desejos humanos, seus rituais, etiquetas, histórias e filosofias, perpassando simbologias sociais, sexuais, políticas, religiosas, éticas, estéticas etc. [CARNEIRO, 2003, p. 1]. À vista disso, utilizo-me do termo “dietética”, conforme apresentado por Michel Foucault [1998, p. 87], entendendo-o como mais abrangente para designar não apenas as comidas e bebidas, mas também as variadas práticas alimentares suscitadas pela alimentação dos corpos.

 

As práticas alimentares são evocadas na filmografia dos Studios Ghibli através de belas cenas que mesclam os alimentos com as alegorias dos enredos e das personagens, representando-os a partir da estética peculiar dos animes japoneses e combinandos à musicalidade e fotografia. A alimentação se torna tão vívida que o público é tomado pelo anseio de saltar à tela para experimentar os pratos e participar das comensalidades expostas. De fato, a comensalidade e as práticas alimentares são constantes em diversos trabalhos e, como exemplo de algumas dessas simbologias evocadas pelos animes do estúdio, podemos citar: a alimentação enquanto nostalgia, familiaridade e memória em Da colina Kokuriko (2011); comida de conforto em Ponyo (2008); comensalidade e hospitalidade em O castelo animado (2004); o afeto através da cozinha e a autonomia em O serviço de entregas da Kiki (1998); o alimento enquanto cuidado, capaz de promover vínculos e recompor a saúde em Meu amigo Totoro (1988); ou, a excruciante experiência da fome durante a guerra em O túmulo dos vagalumes (1988). Apesar dessas muitas possibilidades, talvez seja justamente em A viagem de Chihiro (2001) que encontramos um maior corpus de referências dietéticas, utilizadas para pensar as éticas alimentares, bem como as alegorias do mundo fantástico que se desenham ao longo do roteiro e suas metáforas da realidade.

 

Sinopse

Escrito e dirigido por Hayao Miyazaki (1941-), o filme narra a história de Chihiro Ogino, uma pequena menina de dez anos que está de mudança com seus pais. Durante o caminho à nova cidade, seu pai decide recorrer a um atalho para economizarem tempo, todavia, eles acabam se perdendo e parando em um túnel que guarda um misterioso e aparentemente inóspito vilarejo. A família decide explorar o lugar e, apesar dos protestos de Chihiro, param para comer em um restaurante desguarnecido. Enquanto seus pais comem, a menina os abandona para continuar a perambular no local, mas logo se depara com Haku, um jovem que a alerta para saírem dali antes de anoitecer. Haku é um ser híbrido que transita entre a forma humana e a de dragão, assim, pode ser visto como um dos: “corpos pós-humanos no imaginário animado” [SUNNERSTAM, 2013, p. 8]. Conforme escurece, diversos espíritos começam a surgir e os pais de Chihiro são transformados em porcos. Presos naquela realidade, a menina tem de recorrer à casa de banho termais da bruxa Yubaba para poder sobreviver e encontrar uma cura para o feitiço que transformou seus pais. Assim, em meio a um mundo desconhecido, repleto de espíritos, criaturas e magias, a pequena Chihiro passa por uma série de aventuras em busca do caminho de volta a sua família e ao mundo dos vivos.

 

Ao longo de todo o enredo há uma série de trechos com referências alimentares que vão desde simples momentos de contemplação, acompanhados de alguns poucos aperitivos, até banquetes completos e ilimitados, servidos com vultosa pompa e abastança. A comida rouba a cena e se torna, simultaneamente, um motor para os acontecimentos da história e um elemento alegórico para o subtexto do roteiro. Nesta análise, argumentar-se-á que as simbologias dietéticas apresentadas em A viagem de Chihiro promovem reflexões sobre a ética alimentar que evocam as percepções, críticas e simbologias presentes no filme, apresentando os modos de vida de suas personagens e as alegorias à memória e cultura japonesas. Assim sendo, a comida e a bebida escapam aos domínios da cozinha e tornam-se objetos históricos complexos, capazes de manterem relações com as visões do diretor a respeito do capitalismo, ambientalismo, tradição, modernidade, relações com o ocidente etc.

 

Ética alimentar e simbologias dietéticas

O início de todas as desventuras de Chihiro advém, justamente, de uma violação dietética. Após ela e seus pais, Akio e Yüko Ogino, adentrarem ao mundo dos espíritos, são nitidamente tentados pelos aromas de alimentos e pelo sentimento de fome que lhes invade. Guiados pelos perfumes das iguarias, são levados até um restaurante desprotegido, porém abastecido com as mais diversas delícias – aparecem numerosas carnes (aves, peixes, salsichas e embutidos variados), massas, pastéis, legumes, cogumelos e uma série de outras comidas indecifráveis. Chihiro se preocupa, mas os adultos se servem e degustam, sem aflições, o banquete ali exposto. Akio, pai de Chihiro, tranquiliza a filha dizendo que possuíam cartões e dinheiro para pagar pela refeição. Chihiro se abstém do festim e opta por continuar a investigar o lugar. Ao anoitecer ela retorna para encontrar seus pais, mas, ao chegar no restaurante, descobre que se tornaram enormes porcos.

 

Percebo na transmutação dos pais de Chihiro em porcos certas relações com histórias bastante difundidas no ocidente – como o feitiço de Circe contra os nautas de Ulisses (transformando-os também em porcos, após um banquete) nos versos do décimo canto da Odisseia ou a condenação de Adão e Eva pelo pecado original (comer do fruto proibido) na doutrina agostiniana. Portanto, na literatura e nas artes a alimentação é, desde a Antiguidade, um bom caminho para a desvirtuação, bem como um instrumento para camuflar maldições, uma vez que evoca um dos mais instintivos desejos humanos – o desejo pela comida e bebida [FOUCAULT, 1998, p. 90]. Para além da difundida leitura de que os pais de Chihiro haviam sido punidos por sua gula [SEKINE, 2017, p. 2-3], proponho que Miyazaki aponta ainda para a desvirtuação da ética alimentar pela lógica de consumo, como convém a essa fase violenta do capital. A crítica estaria, portanto, não na mera quantidade de comida ou nos modos de consumi-la, mas também no fato das personagens se apropriarem de algo que não lhes pertencia, simplesmente por possuírem recursos financeiros [SUNNERSTAM, 2013, p. 17]. A própria responsável pelo feitiço, Yubaba, diz a Chihiro que seus pais foram muito corajosos comendo a comida dos convidados, como se fossem porcos e por isso foram amaldiçoados. Como expressou Miyazaki durante uma entrevista realizada em Paris, a transformação dos pais atua como uma crítica aguda ao consumo excessivo na sociedade japonesa contemporânea e ao solipsismo instituído pela lógica capitalista [SEKINE, 2017, p. 3]. Assim, impõem-se uma questão não de deslegitimar desejos, mas observar sob quais condições é conveniente praticá-los [FOUCAULT, 1998, p. 52].

 

Podemos observar isso na mãe de Chihiro, Yüko, que é retratada comendo com delicadeza e em módicas quantidades (aparentemente), mas é igualmente transmutada em suíno. O casal não controla os seus impulsos ante à comida, pois sabe que seu dinheiro e cartões lhes dariam direito sobre o alimento. Embora deva ser reconhecido que o filme evoca o alimento em muitos momentos celebrativos e, até certo ponto, aborde a glutonaria, a maioria de suas representações implicam um diálogo mais complexo com a ética, relações de consumo e alienação [SEKINE, 2017, p. 3]. As pesquisas de Hanna Sunnerstam [2013, p. 17] nos permite tal leitura, mostrando que: “o dinheiro é obviamente a resposta e a solução para pelo menos a maioria dos problemas, mas este não é o mundo humano e a moeda humana provavelmente não tem valor aqui”. Logo, quando os pais da protagonista consomem as iguarias destinadas aos espíritos, inadequadas ao consumo humano, eles sequer cogitam a possibilidade antiética de suas ações. Este é um dos primeiros embates entre a religiosidade e tradição japonesas com o capitalismo e hegemonia ocidentais no enredo dessa animação, que constantemente articula a internacionalização e o autóctone [REIDER, 2005, p. 5].

 

Em outra cena, há novamente a afirmação do alimento como espaço simbólico que distingue a realidade dos humanos do mundo dos espíritos. Após a transmutação de seus pais, Chihiro começa a desaparecer do reino dos espíritos. Nesse momento outro personagem, Haku, vem em socorro e dá à menina um pouco de comida daquele lugar, evitando que ela desapareça. O motivo de consumir comida de outro mundo para ali se manter nos remete ao mito de Perséfone no Hades. As sementes de romã ofertadas à deusa grega por Ascálafo – assim como o alimento dado a Chihiro por Haku – são simbolismos alimentares que representam o pertencimento a partir da dietética. Isso faz lembrar, também, a história mitológica japonesa de Izanami (イザナミ) – deusa-criadora do Japão que morreu dando à luz ao deus-fogo e tentou convencer seu esposo-irmão, Izanagi (イザナギ), que não poderia voltar ao mundo dos vivos por ter consumido alimentos do mundo subterrâneo [REIDER, 2005, p. 5-6]. O alimento enquanto espaço de pertencimento fica evidente quando Haku diz aos trabalhadores que, após três dias comendo da comida do reino espiritual, Chihiro perderia o cheiro de humana, podendo ser confundida com qualquer outro daquele mundo. Assim, quem de um lugar come, nele permanece. A comida nessa animação, portanto, é uma ferramenta capaz de evocar cultura, espaço, identidade, fantasia e virtude [SEKINE, 2017, p. 8].

 

As variações alimentares em A Viagem de Chihiro abarcam desde comidas tradicionalmente japonesa: Onigiri (bolos de arroz que datam do período Heian, 794-1185 EC), Kompeitō (confeitos coloridos de açúcar com origem portuguesa), Yaki-Imo (batata-doce assada), Ikameshi (lulas recheadas com arroz), Anpan (pão recheado com feijão doce), Castella (pão de ló japonês, também proveniente da culinária portuguesa) e Sushis (especialmente niguiri e makizushi), por exemplo; até um grande número de alimentos estrangeiros: pãezinhos chineses cozidos no vapor, pratos mais “ocidentais” à base de ovos e queijo, guloseimas taiwanesas, tais como salsichas, bolos de arroz (doces e salgados) com inhame ou feijão, bolinhos de carne translúcidos e sorvete de amendoim [SEKINE, 2017, p. 3]. Além desses pratos, surgem em cena uma série de alimentos ou insumos isolados, como carnes diversas, peixes, frutos do mar, legumes, frutas, verduras, grãos (sobretudo arroz), pães, bolos, doces, biscoitos, sopas e chás. A ampla gama de comidas e sabores apresentados na animação destaca a dualidade da alimentação japonesa, entre a singularidade e o multiculturalismo. De modo semelhante, este é o marcador entre o mundo espiritual da casa de banho e a realidade dos viventes fora da vila [cf. REIDER, 2005, p. 4-5].

 

É perceptível que o Japão pseudo-tradicional é simbolizado pelo mundo dos espíritos e pela casa de banho de Yubaba e, portanto, um contraponto ao capitalismo e pós-modernidade representados pelos externos, humanos. Sua arquitetura em estilo clássico japonês e os muitos cenários que evocam o tradicional teatro Nō reforçam esse contraponto. Interessante notar que figuras de sapos (ou seres similares a anfíbios) são muito presentes na casa de banho [SUNNERSTAM, 2013, p. 21], o que pode ser mais uma referência à ideia de retorno à tradição, ao local de origem – uma vez que, em japonês, a palavra “sapo” (kaeru, カエル) é homófona do verbo “retornar” (kaeru, 帰る). Tampouco isso deve ser lido como um saudosismo por parte de Miyazaki, afinal ele próprio critica as realidades e discursos apresentados pelos seres do reino espiritual [REIDER, 2005, p. 11]. Seus habitantes são tão gananciosos e dados ao capital quanto os pais de Chihiro, há apenas uma mudança conceitual – o ouro para os espíritos tradicionais, o cartão de crédito para os humanos pós-modernos. Assim sendo, oponho-me às várias análises que apontam para o objetivo do enredo residir no resgate à identidade cultural japonesa, em verdade creio que Miyazaki expõe a complexidade ética nas formas de vida de um Japão contemporâneo [SUNNERSTAM, 2013, p. 9].

 

O reino espiritual e a casa de banho, além de evocarem a tradicionalidade nipônica, representam um mundo outro, marcado pela agência não-humana e habitado por diversos corpos, onde a corporeidade humana é a não-normativa - ainda que em muitos casos haja elementos antropomórficos [SUNNERSTAM, 2013, p. 21]. Entre espíritos, animais, seres míticos, criaturas, humanos e outros tipos de matéria (como os próprios alimentos) observamos uma realidade marcada pela pluralidade, pelo pós-humano e pelos laços de coabitação entre "espécies companheiras" – emprestando o termo de Donna Haraway [2008] – marcados pela interdependência interespécies por meio da qual atuam enquanto “companheiros de confusão no jogo mortal” [HARAWAY, 2008, p. 19]. Contudo, renovo que não há utopia na construção dessa realidade dissímil, embora os corpos e formas sejam outros, a conjuntura e os conflitos são bastante familiares e as espécies companheiras que ali coexistem não o fazem sempre de forma pacífica e harmônica [SUNNERSTAM, 2013, p. 5]. Vemos em cena, portanto, um contato entre sujeitos que se dá a partir das mesmas relações de poder evocadas na filosofia de Foucault [1998, p. 9].

 

Quando Chihiro é levada por Lin até a bruxa Yubaba, dona da casa de banho sediada no reino espiritual e responsável pelos trabalhadores, ela é aceita para o cargo de atendente naquele local. Para tanto, porém, a bruxa lhe rouba magicamente o nome no intuito de impedir que ela possa deixar o local e tornando-a, assim, dependente como os demais trabalhadores [SUNNERSTAM, 2013, p. 4]. Considero que haja referências à apropriação cultural do capitalismo ocidental: roubar o nome, a identidade, estabelecer uma nova cultura baseada no trabalho e exploração. Isso é ratificado no início do filme, quando Haku diz a Chihiro que ela precisa de um emprego, pois, do contrário, seria transformada em um animal. De fato, todos os seres que ali vivem têm alguma função operária, mesmo as fuligens. Assim, a exploração capitalista dá-se mesmo dentro das casas termais de Yubaba, o que evidencia uma referência à história do Japão: resistir ao projeto colonial de assimilação cultural do ocidente e, simultaneamente, ser um estado imperialista no oriente. A importância dos nomes é, provavelmente, uma menção à obra da autora estadunidense Ursula K. Le Guin (1929-2018) [REIDER, 2005, p. 10], sobretudo ao seu O feiticeiro de Terramar (1968) no qual ela narra um mundo fantástico onde magos são capazes de controlar as coisas a partir de seus verdadeiros nomes – “quem sabe o nome de alguém tem a vida desse indivíduo sob sua guarda” [LE GUIN, 2022, p. 96]. A animação Contos de Terramar (2006) de Gorō Miyazaki, por exemplo, é uma adaptação direta desse livro, de modo que não soa insólito sugerir tal aproximação com Le Guin, uma inspiração constante aos produtores do estúdio.

 

Retornando à casa de banho, dentre os muitos seres que circulam neste mundo pós-humanista, destaca-se Kaonashi, um espírito sem face, sem voz e sem características identitárias próprias que através do consumo (alimentar) de outros seres vai aderindo aspectos de suas vítimas. A personagem é instigada pelo contexto cobiçoso da casa de banho e, ao oferecer ouro aos trabalhadores, conquista serviços, luxos e, sobretudo, comidas [REIDER, 2005, p. 20]. O consumismo torna Kaonashi cada vez mais monstruoso. De maneira análoga, Haku é amaldiçoado a partir de uma situação alimentar. O rapaz-dragão consome uma praga enviada por Zeniba, irmã-gêmea de Yubaba. Ante a tais vícios alimentares, o vômito é evocado como contraponto, uma forma de expurgar as corrupções provenientes do consumo alimentar. Esse é o caso de Haku e Kaonashi, ambos precisaram regurgitar os males dos quais se alimentaram para recobrar a homeostase de seus corpos que foram perturbados por uma desvirtuação da prática dietética. Como afirma Foucault [1998, p. 92]: “as evacuações – purgações e vômitos – vêm corrigir a prática alimentar e seus excessos”.

 

Em suma, o esforço de Miyazaki com as representações dietéticas de A Viagem de Chihiro parece residir nas possibilidades de relações éticas, intentando apresentar formas de existências capazes de dialogar com a tradicionalidade e contemporaneidade nos modos de vida e desejos do Japão pós-moderno. O sucesso de Chihiro em recuperar seu verdadeiro nome e salvar seus pais da maldição, sem sequer olhar para trás, pode ser visto como uma metáfora para a possibilidade de novas formas de vida, relações interespécie e éticas alimentares em um momento histórico de crise econômica, cultural, social e política.

 

Referências

Felipe Daniel Ruzene é mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná (PPGHIS/UFPR), Pós-Graduando em Gastronomia e Bacharel em Filosofia. E-mail: felipe.ruzene@ufpr.br.

 

A VIAGEM de Chihiro. Direção: Hayao Miyazaki. Produção: Studio Ghibli. Tóquio: Toho Co. Ltd., 2001. 1 DVD (125 min.).

BAPTISTA, A. et al. “Comensalidade no Studio Ghibli: um paralelo com os temas contemporâneos transversais de saúde e educação alimentar e nutricional” in Anais do IV Congresso Nacional de Pesquisa e Ensino de Ciências, p.1-12, 2022.

CARNEIRO, H. Comida e sociedade: uma história da alimentação. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003.

FOUCAULT, M. História da sexualidade 2: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1998.

HARAWAY, D. When species meet. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2008.

LE GUIN, U. K. O feiticeiro de Terramar. São Paulo: Morro Branco Editora, 2022.

REIDER, N. “Spirited Away: film of the fantastic and evolving japanese folk symbols” in Film Criticism, v. 29, n. 3, p. 4-27, 2005.

SEKINE, A. Food in Spirited Away: consuming with Intent. Dissertação (Mestrado em Artes) – Food Studies, Chatham University. Pittsburgh, p. 54. 2017.

SUNNERSTAM, H. Food, humans and other kinds of matter: a posthumanist materialist reading of the anime film Spirited Away. Dissertação (Mestrado em Estudos de Gênero) – Gender Studies Department of Thematic Studies, Linköping University. Linköping, p. 33. 2013.

6 comentários:

  1. Prezado Felipe Daniel Ruzene,

    Primeiramente gostaria de parabenizar seu trabalho. Confesso que já li a respeito de diversas interpretações sobre esta obra de Miyazaki, mas ainda não tinha encontrado uma partindo da perspectiva de uma ética alimentar e simbologias dietéticas. Compreender os alimentos e os rituais de comensalidade como elementos narrativos expandiram minha visão sobre a obra, enriquecendo seu enredo e profundidade.
    Partindo do pressuposto que uma das críticas fundamentais de Miyazaki se concentra sobre as diferentes formas de propagação de poder e suas consequências no sistema capitalista, gostaria de explorar nesta provocação um pouco mais da personagem Kaonashi. Em seu ensaio é muito bem mencionado que o “Sem Face” adere aos aspectos de suas vítimas a partir do consumo alimentar destas, bem como a motivação para isso reside no contexto cobiçoso que a casa de banho da feiticeira Yubaba a proporcionaria.
    Entretanto, não é mencionado que Kaonashi é marcada por uma intensa solidão que é confrontada por Chihiro quando esta a pergunta se ela possuía família. Além disso, a recusa de Chihiro sobre suas ofertas de ouro e alimentos marcam sua transformação para uma figura mais branda, consolidada em um ambiente mais distante do anseio do capital, a casa de Zeniba.
    Nesse sentido, de que maneira é possível conceber a figura de Kaonashi a partir de sua análise? Seria Kaonashi uma metáfora sobre a alienação do capital, um ser “selvagem”, completamente a parte da sociedade, que tem seus comportamentos mudados dependendo do ambiente onde habita?

    Att,

    Alexandre Cabús Moreth Silva.

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    1. Olá, Alexandre. Como vais?

      Primeiramente, agradeço pela leitura e pergunta.

      Realmente Kaonashi é uma das personagens mais complexas e enigmáticas de A Viagem de Chihiro e, infelizmente, pela limitação do espaço, não pude me aprofundar muito em estudá-lo neste texto. Seu questionamento é muito interessante e, pelo que compreendi, pode ter ficado a impressão de que observo Kaonashi como uma personagem inerte – como um representante da teoria da tábula rasa de Locke. Todavia, não é esse meu entendimento.
      Creio que ele se mostra como um espírito inicialmente neutro, ou visualizado pelos demais como neutro. Chihiro talvez seja a primeira a contemplar singularidade nesse ser, permitindo que entrasse no balneário para se abrigar da tempestade. A busca do Sem-face por “individuação” (em termos lacanianos) é que o faz participe da lógica pseudocapitalista da casa de banhos de Yubaba. Logo, Kaonashi é, de fato, fartamente influenciado pelo meio, mas não apenas. O ponto central, creio eu, está no fato de sua individualidade não ser se quer reconhecida pelos demais que compartilham da filosofia dominante no reino espiritual.
      As cenas do trem e do chá na casa de Zeniba são bons exemplos disso. Kaonashi, nesses casos, é uma personagem consciente de si mesmo e da realidade que o cerca. Creio que essa mudança seja, por si só, mais uma das críticas de Miyazaki ao capitalismo colonial do Ocidente moderno e de sua capacidade de transformar sujeitos em categorias genéricas – consumidores, não indivíduos.

      Espero ter respondido suas dúvidas. Obrigado!

      Felipe Daniel Ruzene

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  2. Caro Felipe Daniel Ruzene,

    Inicialmente, desejo expressar meus elogios pelo seu trabalho, gostei muito do seu texto e da leitura proporcionada por ele. Assim como o colega menciona acima, é a primeira vez que vejo "A Viagem de Chihiro" através de uma perspectiva alimentar. Gostaria de saber se além das transformações físicas (que ao meu ver está mais evidente), de que maneira o ato de comer e a comida estão relacionados a mudanças emocionais e psicológicas ao longo da jornada de Chihiro de acordo com o seu entendimento?

    Atte,

    Beatriz de Castro Barrosa

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    1. Olá, Beatriz. Tudo bem?

      Primeiramente, agradeço pela leitura e pergunta.

      Sem dúvidas o alimento suscita variadas metalinguagens em A Viagem de Chihiro, dentre elas há algumas representações emocionais e psicológicas.

      Como tratei acima na resposta ao Alexandre, creio que Kaonashi seja um bom exemplo de mudança envolvendo a alimentação. Em seu processo de diferenciação psicológica que tem como finalidade o desenvolvimento da sua personalidade individual (que trato pelo termo “individuação”, cunhado por Carl Jung) ele transforma suas emoções e suas relações com a comida. Por isso o monstruoso devorador do balneário, torna-se o doce espírito que (delicadamente) bebe chá e come bolo na casa de Zeniba.

      Especificamente no processo vivenciado por Chihiro, é perceptível que muitas das alterações emocionais da personagem no enredo ocorrem em momentos de comensalidade – isto é, cenas de compartilhamento, nas quais se come junto. Percebemos tal relação em importantes diálogos, como naquele em que Chihiro come e chora com Haku, ou mesmo em momentos de silêncio (o famoso vazio da filmografia Ghibli), como quando ela divide alimento com Lin após um longo dia trabalho, enquanto contemplam o trem passar. Logo, a dietética também dialoga e ilustra momentos de avanço das características emocionais da protagonista e participam, direta ou indiretamente, de seu processo de crescimento na história.

      Espero ter respondido suas dúvidas. Obrigado!

      Felipe Daniel Ruzene

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  3. Boa tarde!
    Caro Felipe Daniel Ruzene,

    Gostaria de dizer que achei interessantíssima a abordagem de "A Viagem de Chihiro" através das simbologias dietéticas do filme, parabéns pelo trabalho.
    Tendo em mente esse tema, me recordei da cena na qual Chihiro alimenta Haku com o "Niga-Dango", um bolinho que ela recebe do espírito do rio após ajudar ele a se limpar na casa de banho. Após ingerir este bolinho, Haku vomita o selo de Zeniba, que estava amaldiçoando-o. E como bem pontuado em seu trabalho, sendo o vômito uma forma de expurgar as corrupções provenientes do consumo alimentar, gostaria de perguntar a sua opinião sobre a relação entre essa "expurgação das corrupções provenientes do consumo alimentar" e o divino representado por esse espírito do rio que fornece o bolinho à Chihiro, visto que em japonês ele é referenciado como "河の神 (Kawa no Kami)", termo traduzido literalmente como "Deus do Rio".

    Att,

    Francisco Bahia da Silva

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    1. Olá, Francisco. Tudo bem?

      Primeiramente, agradeço pela leitura e pergunta.

      Seu questionamento é muitíssimo interessante, além disso ele me permitirá tratar um pouco sobre Kawa-no-Kami que, pela limitação do espaço, infelizmente não pude fazer ao longo do texto. A divindade aparece na casa de banho como um espírito fedorento, sujo e malcheiroso. Mas, Chihiro tenta limpá-lo e todos percebem que não era um espírito fedorento, mas um espírito do rio corrompido pela poluição. Muitos comentaristas argumentaram que a cena em particular representa temas sobre questões ambientais e essa interpretação me parece bastante coerente – afinal, a relação entre ser e natureza é uma temática recorrente nos enredos de Miyazaki.

      Entretanto, ressalto também que há congruência no fato da divindade presentear Chihiro com um indutor do vómito. Basicamente, o rio-deus foi alimentado e corrompido por uma série de dejetos frutos dos hábitos consumistas e poluentes do capitalismo pós-moderno e a menina foi capaz de fazê-lo regurgitar aquilo que o corrompia, limpando-o. O mesmo ocorreria com Haku e Kaonashi ao consumirem o Niga-Dango (bolinho amargo), expurgando as corrupções consumidas – como comentaste.

      Vale lembrar que Kawa-no-kami, além de personagem secundário no filme, é uma divindade real e ainda presente no panteão japonês. Talvez por isso seja representado pela máscara de Okina (翁) do teatro Noh, objeto que evoca uma divindade ancestral.

      Espero ter respondido suas dúvidas. Obrigado!

      Felipe Daniel Ruzene

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