CONSUMO DE CARNES E SEUS RITOS NO ANTIGO EGITO, por Felipe Daniel Ruzene

 
Considerações Iniciais

A dietética suscita nas sociedades humanas uma série de hábitos à mesa que, enquanto relevantes fragmentos das práticas culturais, expressam os variados desejos humanos, seus rituais, etiquetas, filosofias e religiosidades. Para além do mero comer ou beber, as práticas alimentares evidenciam um complexo sistema simbólico de significados sociais, sexuais, políticos, religiosos, éticos, estéticos e econômicos. Dentre os muitos alimentos que consumimos hoje, as carnes circulam entre os mais protuberantes em nosso imaginário social – são insumos custosos e parcos que suscitam status sociais, suntuosidade, realidades de classe e consciências filosófico-religiosas. Todavia, o avanço nas investigações relativas à História da Alimentação tem demonstrado que, desde a Antiguidade, as carnes já possuíam lugar destacado na dieta e eram comumente associadas a mitos, ritos e liturgias sacrificiais, além de veicularem entre as iguarias mais desejadas no mundo antigo [cf. RUZENE, 2022]. Os estudos recentes relativos às práticas alimentares, há um crescente interesse nas investigações em torno da evolução das práticas alimentares ao longo do período faraónico [TALLET, 2015, p. 319].

 

De modo semelhante, no Egito faraônico as proteínas de origem animal (carnes, ovos, leites e seus derivados) eram amplamente valorizadas, desde as refeições cotidianas até festins e cerimoniais excepcionais, servidas com pompa às mesas dos egípcios, sobretudo nobres e aristocratas [WILKSON, 1847, p. 19-21]. Segundo Edda Bresciani, egiptóloga italiana [2020, p. 70]: “em todas as épocas, os habitantes do vale do Nilo tiveram uma alimentação variada e suficientemente equilibrada em proteínas e vegetais”, pelo menos dentre as elites locais. Olhar para as dietéticas carnívoras da Antiguidade nos permite observar diversos modelos de contato entre animais humanos e não-humanos, de modo que podemos reavaliar e refletir eticamente os contatos e tratamentos que mantemos com as demais “espécies companheiras” (emprestando a terminologia de Donna Haraway). Em tempos de indústria da carne e de novas práticas, por vezes questionáveis, da moderna pecuária industrializada, buscamos edificar novas formas de relacionamento com o consumo de produtos de origem animal. Tampouco intento contribuir com interpretações que refletem o vegetarianismo ou veganismo no mundo antigo, afinal: “o conceito de vegetariano parece ser ausente da sociedade egípcia, o que faz com que falar do vegetarianismo nessa sociedade antiga seja algo anacrônico” [GAMA-ROLLAND, 2019, p. 78]. Assim, apresento neste texto uma breve análise a respeito do consumo animal na sociedade faraônica, visando compreender melhor a relação dos egípcios com a carne e seus papéis na sociedade, cultura e religiosidade faraônicas.

 

Embora o recorte se dê nas carnes convêm ressaltar que a maior parte dos alimentos consumidos pelo povo egípcio na antiguidade era constituída por verduras, legumes, frutas e, sobretudo, grãos, uma vez que a maior parte da população não possuía acesso diário às proteínas animais. De fato, papiros de sábios do período faraônico instruem ao povo que: “não se pode encontrar melhor alimento que os legumes com sal” [BRESCIANE, 2020, p. 68]. A dieta básica era formada por uma grande variedade de pães, comumente feitos de cevada ou trigo, além de cerveja – alimentos tão significativos que podem ter servido como moeda de troca ou forma de pagamento entre os egípcios [GAMA-ROLLAND, 2019, p. 79]. As abordagens de diversos pesquisadores – historiadores, arqueólogos e egiptólogos – não visam uma reconstrução detalhada do cardápio dos egípcios, mas permitem refletir a relevância das culturas alimentares e expõem uma razoável ideia do que poderia ter aparecido em suas mesas, levando em consideração a extrema disparidade social presente. Apesar das diferenças à mesa de ricos e pobres, assegurar uma quantidade digna de alimentos para todos os cidadãos representava uma “garantia de ordem social” para o Estado egípcio [BRESCIANE, 2020, p. 69]. Justamente por isso um dos objetivos mais importantes para a administração faraônica era o armazenamento a longo prazo dos mais variados produtos alimentícios [TALLET, 2015, p. 323]. A importância das diversas formas de alimentação no Antigo Egito ainda pode ser observada na existência de diversas profissões relativas à culinária, tais como: cozinheiros, açougueiros, cervejeiros, pasteleiros, padeiros, confeiteiros, degustadores de vinho [cf. RUZENE, 2021] e, inclusive, um curioso cargo de diretor na “casa da gordura de boi” [GAMA-ROLLAND, 2019, p. 77-78].

 

As carnes aparecem nas dietéticas egípcias desde a mais tenra idade, estando presente, inclusive, na mesa das crianças, por vezes dividindo espaço com a amamentação. Nas XVIII e XIX dinastias (entre 1550 e 1189 AEC) o leite materno era armazenado em vasos com formas femininas que ninavam bebês em seus colos, o intuito era preservar o alimento por um determinado período, evitando desperdícios que poderiam ocorrer a partir da introdução alimentar dos pequenos [COELHO, 2012, p. 44]. Possivelmente, pelo que apontam fontes escritas e iconográficas, outros alimentos eram gradualmente acrescentados à dieta das crianças, somados ao leite materno a partir dos seis meses aproximadamente [COELHO, 2012, p. 44]. Primeiramente, frutas, vegetais e cereais, em formas pastosas, como purês e carnes brancas. As carnes vermelhas aparecem à mesa das crianças um pouco maiores, além de pães de diversos formatos, bolos e diferentes legumes. É provável que as carnes não estivessem sempre no cardápio dos mais pequeninos (talvez com exceção dos pescados) tanto por ser um dos insumos mais escassos na mesa da maioria, quanto por sua digestão mais lenta e complexa. Observa-se, ainda, que alguns egípcios possuíam um modelo específico de recipiente para alimentação das crianças, geralmente confeccionado com argila do Nilo, adornado com figuras protetoras, tinha as laterais com um estreitamento e um bico, por onde o líquido poderia ser ingerido [COELHO, 2012, p. 44-45].

 

Evidências osteológicas apresentam que os egípcios antigos parecem ter tido uma grande variedade de espécies de animais disponíveis à sua alimentação, tanto aqueles provenientes da domesticação, quanto obtidos por meio da caça [WILKINSON, 1847, p. 188]. Ainda assim, as carnes eram iguarias luxuosas no Antigo Egito, o que pode ser exemplificado nas inúmeras cenas de abate, cocção e consumo de animais representadas nas paredes dos túmulos de altos funcionários, clérigos e nobres [TALLET, 2015, p. 321]. Carnes diversas, bem como frutas, leite, pão e cerveja, além de flores e perfumes, eram devotados aos deuses em festivais e festins, principalmente aqueles realizados às custas do faraó [MEHDAWV; HUSSEIN, 2010, p. 13]. As oferendas dadas regularmente aos deuses ou aos falecidos eram uma parte importante da vida dos antigos egípcios e os pães, carnes e frutas colocadas em frente à estátua do deus e nas mesas de oferendas eram o principal meio de sustento dos sacerdotes e trabalhadores dos templos [MEHDAWV; HUSSEIN, 2010, p. 19]. Para além das carnes, os leites também eram vastamente apreciados, sobretudo de vacas, cabras e asnas que serviam à alimentação de adultos e crianças, a bebida ainda era elemento ritualístico em diversas oferendas. Queijos, manteiga, ovos e gorduras também aparentam ter sido amplamente consumidos [GAMA-ROLLAND, 2019, p. 83]. Compreendendo a necessidade de que qualquer tentativa de discutir a dieta egípcia deve ser baseada em um conjunto heterogêneo de fontes – artísticas, textuais, arqueológicas e epigráficas – apresento a seguir uma breve análise das investigações acerca do consumo de carnes vermelhas, brancas e suínas na cozinha egípcia e na ritualística antiga.

 

Carnes Vermelhas e Caça

Os egípcios parecem ter nutrido bastante apetite pelas carnes vermelhas que são, de longe, as mais retratadas pela epigrafia, especialmente a carne de bovinos [TALLET, 2015, p. 321-322]. Tais proteínas poderiam advir de animais domésticos ou por meio da caça, sendo que eram utilizados bumerangues para caça desportiva [GAMA-ROLLAND, 2019, p. 81-82], enquanto redes e armadilhas (normalmente feitas de madeira, junco ou palmeira) para caça com finalidade alimentar [MEHDAWV; HUSSEIN, 2010, p. 64]. Dentre as espécies domesticadas, além do gado bovino, criavam cabras, ovelhas, porcos e uma ampla variedade de aves [TALLET, 2015, p. 322]. A criação doméstica de animais para consumo foi bastante apontada na obra de Sir John Gardner Wilkinson [1847, p. 188], contudo, os vestígios materiais nos permitem supor que criadouros, estábulos e chiqueiros, bem como vinhedos, pomares, cozinhas complexas e hortas eram mais comuns entre as elites egípcias. Os mais abastados ocupavam bastante de seu tempo livre na caça, domesticação, preparo e consumo de carnes, como observado nas motivações artístico-funerárias do período faraônico [WILKINSON, 1847, p. 187-189]. Por sua vez, os animais de caça frequentemente retratados nas paredes dos templos eram touros, veados, vacas, gazelas, carneiros, cabras e coelhos selvagens [MEHDAWV; HUSSEIN, 2010, p. 51]. Além desses, estudos arqueológicos apresentam o consumo de oryx, adax, cabras-selvagens, gazelas, antílopes, hienas, ouriços, lebres e ratos [GAMA-ROLLAND, 2019, p. 81]. Ainda, há vestígios do consumo de vísceras desde a II dinastia (c. 3700 AEC), especialmente baços e fígados, bem como o uso de sangue bovino para produção de enchidos similares ao chouriço ou morcilha que conhecemos hoje [BRESCIANI, 2020, p. 70 e 74].

 

Segundo John Wilkinson [1847, p. 380], em referência aos textos de Heródoto (c. século V AEC, portanto tardios e que refletem um Egito sob influência greco-romana), as carnes preferidas dos egípcios eram de vaca e ganso. O egiptólogo britânico ainda se mostra surpreso com a ausência do carneiro nas fontes helênicas, afirmando que inexistiam na alimentação egípcia. Todavia, desviando o olhar para a osteologia zooarqueológica, vemos que uma série de suínos, caprinos e ovinos eram consumidos (inclusive em maiores quantidades) do que bovinos e aves [BRESCIANE, 2020, p. 74-75]. Logo, as teses suscitadas pelas fontes de Sir Wilkinson mostram um recorte bastante específico do período clássico e não se ratificam ante aos amplos vestígios das dinastias faraônicas. É possível, ainda, que as carnes de bovinos e gansos estivessem entre os itens mais desejados, mas a maioria não possuía condições de pagar uma refeição tão generosa, então, alimentavam-se de animais menores e mais acessíveis, como caprinos, suínos, aves e pescados – visto que os animais maiores eram utilizados na lavoura [MEHDAWV; HUSSEIN, 2010, p. 14 e 51]. Os membros das classes que poderíamos denominar médias ou trabalhadoras, como profissionais da construção civil, construtores navais e operários, possuíam maior diversidade à mesa, seus ofícios lhes davam direito a rações diárias, porções mais recorrentes de carnes e peixes, maior variedade de verduras, legumes e frutas, além de pães e cervejas [MEHDAWV; HUSSEIN, 2010, p. 10]. A carne bovina era profundamente evocada nas representações nas paredes de mastabas, mas a arqueologia nos leva a crer que figuraram com raridade nos cardápios, especialmente das populações mais pobres ou mesmo camponeses, que compunham juntos 90% da população egípcia no período faraônico [GAMA-ROLLAND, 2019, p. 78].

 

Segundo as representações artísticas e tumulares, supõem-se que as carnes vermelhas eram comumente preparadas grelhadas sobre as brasas ou assadas em fornos, embora haja, em menores quantidades, cenas de cozimento em caldeirões ou panelas [GAMA-ROLLAND, 2019, p. 82]. De acordo com Bresciani [2020, p. 74], é possível que as partes consideradas mais nobres ou apreciadas, como o lombo, por exemplo, fossem as partes assadas em fornos ou grelhadas, enquanto partes menos valorizadas eram cozidas ou fervidas, em ambos os casos as gorduras (especialmente de boi e ganso) serviam como tempero, para tanto eram armazenadas em contêineres, às vezes rotulados com precisão. Dada a necessidade de conservar a carne abatida os egípcios desenvolveram algumas formas bastante eficazes de conservação. A mais comum para os bovinos era a salga com natrão, também utilizada nos peixes, secagem ao sol para quaisquer carnes vermelhas, conservação em jarros de mel ou em gordura animal, normalmente de ganso, boi ou pato, como uma espécie de confit à egípcia [GAMA-ROLLAND, 2019, p. 82]. As muitas cenas de alimentação compelida de animais que aparecem nas mastabas do Império Antigo poderiam ter a intenção de facilitar esse tipo de preparo, auxiliando a formação de gordura e permitindo, ao contrário da secagem ou salga, o armazenamento da carne com um valor nutricional mais alto [TALLET, 2015, p. 323]. Na religião faraônica havia jejuns específicos de interrupção ao consumo de carne, determinadas classes de pães e vinhos durante o período de exéquias pela morte do faraó – abstinência que poderia durar até setenta e dois dias, conforme apontado por Wilkinson [1847, p. 68-69] em referência à obra de Diodoro Sículo (século I AEC). No interior do contexto hierático, as carnes vermelhas também eram elementos fundamentais na oblação aos mortos. Por exemplo, uma refeição completa encontrada em um túmulo mastaba de Saqqara (datado da II Dinastia) continha pães, mingau de cevada, peixe cozido, caldo de pombo, codorna cozida, rins, coxas e costelas de boi, frutas cozidas, possivelmente figos, frutas frescas, tortas com mel, queijo e uma vasilha de vinho, cuidadosamente depositados ao lado da mulher ali enterrada [MEHDAWV; HUSSEIN, 2010, p. 23].

 

Peixes e Aves

O rio Nilo era uma fonte de vida para os antigos habitantes do Egito. Dele advinha água, animais, rotas comerciais, trabalhos e, toda primavera com as cheias, permitia um solo rico e fértil para o cultivo de inúmeros gêneros alimentícios. A diferença nos alimentos consumidos, além de demarcar condições sociais de ricos e pobres, também se devia às cheias ou secas do Nilo que podiam representar períodos de abundância ou penúria para a população [GAMA-ROLLAND, 2019, p. 78]. Não obstante, havia grande variedade de peixes prosperando em suas águas, dentre os quais conhecemos barbus, bagres, enguias, siluros, carpas, percas, tilápias e tainhas, cujas ovas eram usadas no preparo de butarga (espécie de maturação de ovas de peixe secas e salgadas) [TALLET, 2015, p. 324]. Durante o período romano foram identificados mais de vinte e cinco tipos de pescados na dieta egípcia. Algumas dessas espécies – como peixes-elefante (medjed), lepidotes e pargos-vermelhos (fagri) – eram associados ao mito osiríaco e, por isso, respeitados, assim havia peixes considerados sagrados e que não podiam ser pescados ou consumidos [MEHDAWV; HUSSEIN, 2010, p. 73]. Possivelmente a crença era de que uma dessas espécies teria engolido o pênis de Osíris quando o deus foi esquartejado pelo irmão, Seth. Ainda, há variados exemplos de pescados mumificados em diversos templos egípcios. No papiro Harris constam, dentre as entregas aos templos efetuadas para as festas de Ramsés III, um total de 441 mil peixes dados aos sacerdotes [GAMA-ROLLAND, 2019, p. 84]. Isso evidencia que mesmo o tabu relativo aos peixes tinha seus limites e era heterogêneo no Antigo Egito. Supostamente os peixes constituíam a base proteica da população egípcia antiga, fossem frescos, secos ou salgados, alimentavam pobres e ricos, estando tanto na mesa real, quanto na ração dos soldados [BRESCIANI, 2020, p. 75].

 

Muitas representações tumulares retratam cenas de pesca, bem como diferentes métodos de preparação dos pescados, incluindo salga e secagem. Outras mostram o consumo de variados tipos de peixe, indicando sua popularidade nos tempos faraônicos [MEHDAWV; HUSSEIN, 2010, p. 73]. Todavia, a oferta de peixes era rara nas mesas dos mortos, possivelmente por tabus olfativos (e não religiosos), como aponta Bresciani [2020, p. 75]. Assim como no caso da caça, a pesca também era tanto uma profissão, quanto um hobby no Antigo Egito [GAMA-ROLLAND, 2019, p. 84]. Visando a prática desportiva os egípcios utilizavam lanças, anzóis e arpões para apanhar os peixes, enquanto na pesca em grande escala eram utilizadas armadilhas e gaiolas, em águas rasas, e redes em maiores profundidades [MEHDAWV; HUSSEIN, 2010, p. 76].

 

As aves, por sua vez, eram, junto aos peixes, uma das principais fontes de alimentação dos antigos egípcios, variando desde aves domesticadas até selvagens [TALLET, 2015, p. 323]. São mencionados e retratados gansos, grous, pombos, codornas, avestruzes, patos, frangos e galinhas só ingressaram no cardápio egípcio a partir do período ptolomaico (c. 305 AEC) [MEHDAWV; HUSSEIN, 2010, p. 61]. Muitas eram as maneiras de cozinhar os peixes e aves, sendo a mais comum grelhar em espetos colocados sobre o lume. Ainda, era possível salgar, defumar, fritar em gordura ou cozer em água com sal e temperos [TALLET, 2015, p. 323]. A salga era uma maneira particularmente conveniente de cozinhar o peixe para evitar sua rápida deterioração, especialmente nos períodos mais quentes, uma vez que mantinha o peixe comestível por um tempo maior [MEHDAWV; HUSSEIN, 2010, p. 76]. As representações nas paredes das tumbas mostram os métodos de preparação dos gansos desde o abate, degola, depenagem, corte das asas e pés até que estejam prontos para a grelha. Em outras ocasiões os gansos eram salgados e depois armazenados em grandes potes de cerâmica. As aves também poderiam ser fervidas em caldos ou confitadas, e os pombos eram amplamente mencionados como parte do banquete funerário, cozidos em um caldo ou em gordura de ganso [MEHDAWV; HUSSEIN, 2010, p. 64-65].

 

Controvérsia Suína

Fontes tardias apontam para um tabu relacionado ao consumo de porco – os próprios hebreus, que tiveram contato próximo com o Egito, podem ter criado diálogos culturais referentes à abstenção de produtos suínos [WILKINSON, 1847, p. 369-373]. Autores gregos como Heródoto (c. séc. V AEC) e Plutarco (c. séc. II EC), assinalaram a rejeição ao porco. As artes funerárias auxiliam nessa interpretação dada a ausência de porcos nas representações das tumbas e sepulturas, os animais eram raramente representados na iconografia egípcia – menos de uma dezena de cenas os mostram em contexto agrícola em mais de dois milênios de história [TALLET, 2015, p. 322]. Todavia, como bem assinalaram Gama-Rolland [2019, p. 85] e Tallet [2015, p. 321-322], escavações arqueológicas e osteológicas mostram que eram regularmente consumidos por grupos sociais menos privilegiados, levando a crer que eram vastamente presentes nos cardápios egípcios. Exemplo disso é um sítio arqueológico em Amarna, antiga Aquetáton, datado da XVIII Dinastia (1543-1292 AEC), onde grandes quantidades de ossos de porcos foram encontradas. Há, portanto, um contraste entre a zooarqueologia que aponta para os porcos, cabras e carneiros e as representações tumulares, onde predominam os bovinos. Também há indícios de consumo de carne suína nas festividades que comemoravam a vitória de Hórus contra Seth ao longo de todo o período faraônico [GAMA-ROLLAND, 2019, p. 85-86]. É possível que a associação de Seth, deus do caos, com porcos e javalis tenha sido um dos responsáveis pela aversão aos suínos em determinadas regiões do Egito, levando ao contexto assinalado pelos gregos que se contrapõem aos vestígios faraônicos. Não obstante, porém, como já vimos, são textos tardios e abordam um Egito já sobre influência greco-romana. Isso explica a afirmação de que os porcos possuíam lugar de destaque na alimentação egípcia, com a possibilidade de serem vetados em algumas libações religiosas [BRESCIANI, 2020, p. 74].

 

Referências

Felipe Daniel Ruzene é mestrando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná (PPGHIS/UFPR), Pós-Graduando em Gastronomia e Bacharel em Filosofia. E-mail: felipe.ruzene@ufpr.br.

 

BRESCIANE, E. “Alimentos e bebidas no antigo Egito” in FLANDRIN, J-L.; MONTANARI, M. História da alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 2020.

 

COELHO, L. C. “Do nascimento aos primeiros anos de vida: um olhar sobre a infância no Egito do Reino Médio (c. 2040-1640 a. C.)” in Plêthos: Revista discente de estudos sobre a Antiguidade e o Medievo, Rio de Janeiro, n. 2, v. 2, p. 30-50, 2012.

 

GAMA-ROLLAND, C. A. “Alimentação e tabus alimentares no Egito Antigo: pode-se tratar de vegetarianismo?” in Mare Nostrum: estudos sobre o Mediterrâneo Antigo, São Paulo, v. 10, n. 1, p. 77-91, 2019.

 

MEHDAWY, M.; HUSSEIN, A. The pharaoh's kitchen: recipes from Ancient Egypts enduring food traditions. Cairo: The American University in Cairo Press, 2010.

 

RUZENE, F. D. “Vinho e vinicultura no Antigo Egito” in BUENO, A. (Org.). Mundos em Movimento: Próximo Oriente. Rio de Janeiro: Projeto Orientalismo/UERJ, 2021. p. 24-30.

 

RUZENE, F. D. “O mito de Prometeu, os ritos sacrificiais e o consumo de carne na Antiguidade grega” in Temporalidades: Revista de História, Belo Horizonte, n. 1, v. 14, p. 324-348, 2022.

 

TALLET, P. “Food in Ancient Egypt” in WILKINS, J.; NADEAU, R. (Org.). A companion to food in Ancient World. Oxford: Wiley-Blackwell, 2015. p. 319-325.

 

WILKINSON, J. G. The manners and customs of the Ancient Egypt. Londres: John Murray, 1847.

7 comentários:

  1. Prezado senhor, Felipe Daniel Ruzene, queremos parabenizá-lo pelo texto que é relevante para a temática em estudo e também por debater assuntos pertinentes, principalmente aos interessados na temática. Queria que o senhor comentasse como foi que surgiu a ideia que escrever sobre a temática, e qual sua opinião a cerca do consumo da carne de porco, já que é um dos alimentos cercado por diferentes pensamentos em relação ao consumo?
    Rosete Lopes França Maciel
    Wagner Pereira de Souza

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    1. Olá, Rosete e Wagner. Como estão?

      Primeiramente, agradeço pela leitura e pergunta.

      No que diz respeito à temática do texto, a História da Alimentação há muito me chama atenção. Entendo que, como aponta Foucault no segundo volume de História da Sexualidade, a alimentação foi um dos mais privilegiados meios de autoconstituição na Antiguidade (FOUCAULT, 1998, p.). Nesse contexto destacado da dietética, a carne parece ser um insumo particularmente complexo – enquanto vigoram (quase sempre) entre as mais caras e apreciadas comidas, também são amplamente discutidas como evocadoras da gula, do descomedimento, iguarias luxuosas ou mesmo cruéis, como apontam os ativismos veganos/vegetarianos. Assim, parece-me fundamental estudarmos as relações interespécies e o consumo de carnes, no intuito de desnaturalizar tais práticas, situando-o genealogicamente. Donna Haraway (2021) foi, no meu entendimento, particularmente bem sucedida no intuito de observar as muitas relações entre animais humanos e não-humanos.

      Retornando ao consumo de carne entre os egípcios antigos, sobre a controvérsia suína, tendo a me aproximar das evidências arqueológicas e osteológicas, que demonstram muito bem como os sujeitos faraônicos consumiam e apreciavam (de modo geral) a carne de porco. Embora, em algum momento histórico ou em determinadas regiões, pode ter existido maior ou menor resistência a essa proteína. Assim, os relatos de Heródoto e Plutarco não são necessariamente errôneos, mas estão pautados em um recorte temporal tardio e numa realidade geograficamente delimitada.

      Referências:
      FOUCAULT, M. História da Sexualidade 2: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1998.
      HARAWAY, D. Manifesto das espécies companheiras: cachorros, pessoas e alteridade significativa. São Paulo: Bazar do Tempo, 2021.

      Espero ter respondido suas dúvidas. Obrigado!

      Felipe Daniel Ruzene

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  2. Boa noite Felipe, muito interessante seu artigo. Eu gostaria de tirar dúvida a respeito do consumo de ratos. O consumo de carne de rato era comum entre as pessoas, fazia parte do paladar ou era consumida somente pelas pessoas mais pobres? e a carne de porco, que era consumida em menor escala, era devido a questões religiosas?

    Inês Valéria Antoczecen

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    1. Olá, Inês. Tudo bem?

      Primeiramente, agradeço pela leitura e pergunta.

      Sabemos que os egípcios comiam carnes de roedores graças a restos de ossos de ratos encontrados no estômago de algumas múmias, como aponta o artigo supracitado de Cintia Alfieri Gama-Rolland (2019). Se os ratos foram consumidos por pessoas com capacidade financeira para arcar com o processo de mumificação, então não creio que se limitaram aos grupos mais pobres. É possível que, com maior ou menor aceitação, os roedores fizessem parte dos cardápios – não com tanta recorrência quanto peixes, aves, cervídeos e bovinos, muito mais apreciados, pelo que nos leva crer a arqueologia e literatura.

      Quanto ao consumo de porcos, ele parece ter variado de acordo com o período histórico e região estudados. Todavia, de um modo geral, os egípcios parecem ter consumido e apreciado a carne suína. Segundo Heródoto e Plutarco (observando o Egito sob domínio persa e greco-romano, respectivamente), o motivo da abstenção de alguns se dava por questões de higiene, uma vez que muitos viam os porcos como animais impuros. Se houve rejeição aos suínos, ainda que tardia e regionalizada, pode ter sido motivada por consciências sanitárias. Não obstante, porém, há variados indícios da XVIII Dinastia que indicam o papel fundamental do porco nas dietas, sobretudo das camadas trabalhadoras egípcias

      Espero ter respondido suas dúvidas. Obrigado!

      Felipe Daniel Ruzene

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  3. Maria Teresa Lopes da Silva10 de agosto de 2023 às 05:47

    Caro Felipe Daniel Ruzene,
    Achei o seu texto muito interessante e, apesar de abordar sobretudo o consumo de carnes, como também faz referência a bolos, gostaria de lhe perguntar o seguinte: sabe se existem referências ao tipo de bolos confecionados, receitas, confeção e consumo por estratos sociais (povo, escribas, nobres, sacerdotes, etc), se eram usados para oferendas e, por fim, se existem imagens (relevos, pinturas)?

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    1. Olá, Maria. Tudo bem?

      Primeiramente, agradeço pela leitura e pergunta.

      Os pães e bolos – na verdade, os grãos de um modo geral – eram a principal fonte de alimentação entre os egípcios. Os bolos eram produtos preparados como pães, principalmente a partir de cevada ou trigo, e depois adoçados ou temperados de diversos modos – com xaropes, leites, meles, especiarias, gergelim, legumes ou frutas (frescas e secas). Podiam ser consumidos, presenteados ou oferecidos aos deuses e aos mortos em rituais sagrados e estavam presentes nas mesas de ricos e pobres (evidentemente com diferentes qualidades e variedades).

      Os bolos aparecem vastamente na iconografia e arte tumular egípcias. Posso citar, por exemplo, uma inscrição em parede da V Dinastia no túmulo de Ti em Saqqara que menciona o processo de preparação dos grãos para fabricação de bolos: “Moer, moer bem. Eu moo com todas as minhas forças. O criado está peneirando a farinha e eu mesma assei o bolo” (MEHDAWY; HUSSEIN, 2010, p. 30-31). Também, nas tumbas do Império Médio, foram encontrados variados pães e bolos de diversos formatos: redondos, compridos ou feitos em forma de bonecos e animais, possivelmente destinados às crianças. Há, ainda, evidências que datam do Império Novo de tipos cilíndricos de bolos, similares a bolos de rolo ou rocamboles. Já no Período Ptolomaico, os egípcios usavam mel na massa dos bolos para que fossem moldados em formato de bolas e embrulhados em folhas de papiro. Além destes exemplos há inúmeras representações do processo de cultivo de grãos, produção de farinhas, confecção de bolos e pães, além de cenas de cocção, oferenda e consumo deles (cf. MEHDAWY; HUSSEIN, 2010, p. 25-40).

      Vale lembrar, porém, que a diferença concreta entre pão e bolo (como pensamos hoje) só parece ter surgido durante a Renascença. Então, quando os historiadores da alimentação na Antiguidade falam em bolos, normalmente nos referimos a massas de farinhas de grãos que eram assadas e adoçadas, praticamente como pães doces mais elaborados.

      Referência:
      MEHDAWY, M.; HUSSEIN, A. The pharaoh's kitchen: recipes from Ancient Egypts enduring food traditions. Cairo: The American University in Cairo Press, 2010.

      Espero ter respondido suas dúvidas. Obrigado!

      Felipe Daniel Ruzene

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  4. Lohanna de Lima Tavares10 de agosto de 2023 às 16:38

    Primeiramente parabéns pelo texto. Minha dúvida em relação ao consumo de carne, seja bovina, suína ou carne de roedores, é que se eram acessíveis a todas as camadas sociais ou alguma se restringia apenas a pessoas pertencentes a classe mais alta?

    Att.,

    Lohanna de Lima Tavares

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