BRÂMANE OU PANDAR: JOÃO DE BRITO E A QUERELA DOS RITOS MALABARES (ÍNDIA, SÉC XVII), por Alexandre Cabús

 
A atividade missionária de João de Brito está circunscrita aos anos de 1673, quando parte para Goa pela primeira vez, até 1693, quando é morto na região de Oryur, na província jesuítica do Malabar. Embora sua atuação esteja dentro deste contexto de vinte anos já tardios do século XVII, acreditamos que seja importante recuarmos nosso olhar para o segundo quartel do mesmo século. Isso se faz necessário pois a Querela dos Ritos Malabares foi um amplo e complexo debate que, dependendo do estado de seus agentes, se configurava de maneira distinta. Tendo em vista que na realidade de Brito o método de accomodatio (difundido pelo italiano Roberto de Nobili) era amplamente reconhecido e aceito em Portugal, até mesmo pela corte, buscaremos evidenciar como o andamento dos diversos processos levou Brito a poder regressar à Lisboa em 1687 e se colocar na presença de D. Pedro II ainda como um “brâmane”.

 

Sendo assim, podemos partir do ano de 1615, onde é nítida uma mudança no âmbito das missões jesuíticas na Ásia. Isso ocorre devido a morte do Geral da Companhia, Claudio Aquaviva, estando afrente da instituição desde 1581. O jesuíta Muzio Vitelleschi, antigo mestre de Roberto de Nobili, sucede Aquaviva no posto de Geral da Companhia de Jesus, significando um quase imediato melhoramento da condição de Nobili e seu método, o que pode ser evidenciado com a aprovação de sua obra em 1616, evidenciada pelo breve papal de Paulo V, Cum sicut Fraternitatis. Tal aprovação abre espaço para a volta missionária de Nobili devido a retirada das acusações contra o missionário em 1617. (AGNOLIN, 2021, p. 229-232)

 

Embora bastante favorável, tais movimentações não significavam uma resolução por completa do conflito. Podemos observar isso através da figura do Primaz de Goa, cuja nomeação data de 1615, Cristóvão de Sá e Lisboa. Cristóvão era um dos maiores algozes de Nobili e protagonizou ações que repercutiam na Companhia como um todo, recebendo apoio dos franciscanos e dominicanos. Nesse sentido, ao acionar o Inquisidor de Lisboa, Fernão Martins de Mascarenhas, contra Nobili, Cristóvão reaviva a polêmica. Embora o inquisidor tenha tido papel mediador ao informar Cristóvão de Sá sobre a necessidade de respeitar as deliberações vindas de Roma, ele recomenda que sejam feitas averiguações mais detalhadas sobre as ações do método de Nobili. Nesse viés, como afirma Adone Agnolin, a Querela toma contornos em torno de uma disputa por interpretações, tangendo especificamente ao nível do discurso, sem valor objetivo. (AGNOLIN, 2021, p. 229-232)

 

O novo concílio de Goa, marcado em 1619 por seu Primaz, teve como objetivo principal questionar a validade do método de accomodatio. Desta maneira, Roberto de Nobili é convocado a se fazer presente na conferência e o resultado é a confecção de sua primeira Narratio, tendo como ponto principal os fundamentos da metodologia de accomodatio. Entretanto, a delegação do documento teve seu direcionamento ao arcebispo de Cranganor, Monsenhor Ros. Nesse sentido, o concílio fecha em empasse entre os dois inquisidores presentes, sendo necessária a remição dos documentos à Inquisição de Lisboa, para que posteriormente fossem encaminhados à Roma. (AGNOLIN, 2021, p. 189)

 

Recebidos os documentos pela Propaganda Fide, Francesco Ingoli, seu secretário, tinha como posicionamento o encerramento do caso do Madurai, decretando a conclusão favorável à Nobili. Contudo, permaneceria em aberto o debate sobre a validade dos usos de sinais por partes dos convertidos, sendo ainda objetos de contestações. Nesse sentido, as especificidades da polêmica circunscritas ao Madurai se confundiram com aquelas dos ritos malabáricos, tendo como foco não somente a aceitação das castas altas, mas também a adaptação das liturgias, ainda que em partes. É nesse sentido que há uma transformação da polêmica do Madurai na polêmica do Malabar, constituindo numa unanimidade do termo “polêmica dos ritos”. A questão dos ritos indianos acabou por se inserir no interior de uma mais ampla confrontação entre a Igreja indiana e a europeia/romana, que acabava por antecipar parte da polêmica do Malabar, equacionando assim a do Madurai. (AGNOLIN, 2021, p. 195)

 

O ano de 1621 é um ponto importante no interior da Querela. Ele é marcado pelo falecimento de três de seus protagonistas: O Primaz de Goa, o rival de Nobili, Gonçalo Fernandes Trancoso e o Papa Paulo V. O pontífice que o sucede, Gregório XV, ao criar a Comissão Romana, buscou de maneira incisiva encerrar a Querela. Tendo uma composição bastante heterogênea, marcada por um carmelitano, um beneditino e pelo Primaz da Irlanda, a Comissão Romana teve o objetivo de julgar de maneira definitiva a controvérsia. Ainda em 1621, o Inquisidor de Lisboa encaminhou um parecer favorável a Nobili, resultando em um pronunciamento por parte da Comissão a favor do italiano. Nesse sentido, a constituição da bula Romanae Sedis Antistes, datada de 1623, coloca um ponto final na primeira grande fase do confronto. (AGNOLIN, 2021, p. 231)

 

Nesse sentido, fica evidente que Nobili sai como vencedor, pois com o apoio recebido por parte de Roma, o italiano pode se consolidar dentro do contexto missionário indiano, exercendo sua autoridade com base em seu método. Nesse viés, Roberto de Nobili exerceu sua missão se dirigindo aos territórios do Mysore e Ceylon, desta forma, rompendo as fronteiras do Malabar. De certa maneira, consolida de forma evidente a metodologia de accomodatio ao tornar-se superior da missão do Madurai entre os intervalos de 1624-1632 e 1638-1643, encerrando suas atividades com sua morte em 1656 no território de Myliapor. (AGNOLIN, 2021, p. 231)

 

A mudança de postura do clero foi grande a respeito do uso da metodologia de accomodatio. Dentro do contexto de Brito, as fontes nos apresentam indícios de que a figura de Roberto de Nobili era amplamente utilizada como inspiração para o futuro das missões portuguesas. Podemos observar, a partir de um tópico presente na biografia de João de Brito, retirado de um documento datado de 1691, onde o missionário aborda sobre a grande aceitação do uso do accomodatio. Intitulado como: De como os Padres da Companhia de Jesus seguiram o exemplo do P. Roberto Nobili, e o modo que observam na conversão d’aquella gentilidade”. O Tópico inicia com: “Como a experiencia que o estylo que seguira o P. Roberto Nobili, era o mais conveniente, e eficaz para insistir na conversão da gentilidade de Madurei, resolveram-se muitos dos padres da Companhia de Jesus da província do Malabar a seguir o mesmo estylo”. (BRITTO, 1852, fls. 40)

 

Pela citação podemos observar claramente que o método de Nobili não somente era utilizado amplamente, como era tido como exemplo de metodologia conversiva altamente eficaz. Além desta referência, podemos encontrar menção ao método de accomodatio na carta ânua de 1683, quando é abordado sobre os tratos dos gentios que se recusavam a estar na presença de um europeu (parangui): “Tendo noticia clara de todos estes abusos o grande servo de Deos, é exemplo de Missionario o Pe. Roberto Nobili de Santa memoria; ” O documento prossegue afirmando que conforme “os costumes políticos da terra”, Nobili evitava quaisquer contatos com europeus, mas que isso valia a pena tendo em vista o grande número de conversões que este “disfarce” o possibilitou. Ainda segundo a ânua, o italiano teria aberto um espaço para a conversão no reino do Malabar que estaria fechado a muitos séculos.

 

Nobili falece em 1656 em Melyapor e ainda assim, é surpreendente encontrarmos documentos que remontem a sua importância na região da província jesuítica do Malabar trinta e cinco anos após a sua morte. Mais surpreendente ainda é pensarmos que em um relatório sobre a Missão do Reino do Maduré, datado também de 1691, são listados seis missionários que atuavam sobre esta jurisdição e com base nos métodos de Nobili, mas apenas um deles, P. Xavier Burgesi, era italiano.

 

Esta afirmativa muda o jogo analítico sobre a primeira fase em que o conflito, para diversas análises, se debruçava em um campo nacional. Se antes poderíamos resumir toda a complexa disputa entre uma identidade portuguesa circunscrita no modo de missionação identificado com o termo parangui e uma leitura complexificada que permitia um grande mergulho cultural que proporcionava a estratégia adaptativa, desta vez enxergamos a disputa em um campo mais amplo. Campo este que não limita a identidade portuguesa somente no âmbito do método de conversão, mas a liga, de maneira direta, com a expansão do catolicismo. Nesse sentido, em um contexto pós Nobili e Fernandes, a Querela dos Ritos deve ser abordada sobre uma dimensão dentro do caráter ritualístico da própria atuação do missionário enquanto “brâmane europeu/romano”.

 

Sustentamos tais afirmativas ao observamos o caso de Brito. Além de ter missionado à moda de Nobili, João de Brito, diferentemente do italiano, a partir do momento que atravessou o limiar de missionário parangui para “missionário brâmane”, nunca mais retornou. Ao contrário do agente pioneiro, o missionário português não deixava de se comportar, se alimentar e se vestir como um brâmane em momentos de encontro com autoridades régias ou com castas mais baixas. Isto fica evidente quando, após o grande episódio de tortura que posteriormente ficou conhecido como “primeiro martírio, Brito regressou a Lisboa em 1688 e foi de encontro com o rei de Portugal e a corte. O fato de o jesuíta não deixar de se comportar como um brâmane, ao invés de causar repulsa, como era natural de se esperar na época de Nobili, causou admiração

 

A metodologia de accomodatio variava de acordo com o contexto político internacional, relações Lisboa-Roma-autoridades locais e, principalmente, de acordo com as especificidades regionais. Isto pode ser evidenciado ao olharmos para os diferentes exemplos da utilização da metodologia em contextos orientais, como os casos de Alessandro Valignano no Japão, Matteo Ricci na China e Roberto de Nobili na Índia. Embora estes exemplos se baseassem na mesma perspectiva geral, adaptar costumes locais considerados como políticos para inserir com maior facilidade os dogmas católicos, principalmente junto às elites locais, os respectivos agentes se adaptavam cada um à sua maneira, de acordo com a necessidade. Nesse sentido, partindo do ponto de vista que o contexto internacional se encontrava bastante atribulado, ao que tange às relações Lisboa-Roma, não seria coerente de nossa parte analisar a metodologia de Brito como idêntica à de Nobili.

 

As fontes nos apresentaram um profundo desconforto em um debate a respeito de qual subcasta Brito teria escolhido como ponto de partida para a metodologia de accomodatio. A princípio, não havia dúvidas que Brito teria seguido pelo caminho dos sanyasi, aquele escolhido por Nobili, uma vez que as fontes ora apontavam que o inaciano teria seguido os passos de Nobili, ora mencionavam diretamente a figura dos sanyasi. Contudo, ao decorrer da leitura de sua biografia, aquela escrita por seu irmão e editada no século XIX, ficou evidente que Brito teria se relacionado diretamente com castas mais baixas e até mesmo com portugueses que não estariam aos moldes do accomodatio. Tendo em vista que Brito se adaptou como penitente e sábio, mas pode ter o acesso a outras castas e aos portugueses sem perder seu status, como o jesuíta teria conseguido exercer o accomodatio de Nobili?

 

O indício inicial para resposta desta pergunta pode ser encontrado em O Illustre Certame, obra de autoria do padre Jean Baptiste Maldonado, anexa a biografia de Brito, em que é citado que o jesuíta teria montado sua persona de brâmane europeu a partir da figura dos pandares, uma subcasta brâmane de ascetas que se diferenciava dos sanyasi, sendo um asceta penitente de nível inferior:

 

“Chegando alli o P. João de Britto, foi pelo P. Braz de Azevedo provincial do Malabar destinado á missão de Maduré; e depois de breve descanço, logo se preparou para a jornada. Vestiu-se de pandar, que entre os indios, pela austeridade de vida, são muitos estimados e chamados penitentes. Ensinados por larga experiencia os missionarios, tiveram este traje por muito commodo para tratar com todas as seitas da India, e mais ainda que o saniás  por professarem estes uma vida separada do trato comum. Assim em quanto alguns para converterem os brahmenes, seguindo o exemplo do P. Roberto, trajam de saniás, outros para mais facilmente tratarem com todos, imitam os pandares, e com feliz sucesso. ” (BRITTO, 1852, fls. 294)

 

Como podemos observar, os pandares poderiam circular livremente entre as castas, o que significa que o trato com os paranguis, ou seja, com os portugueses, também seria possível. Acerca das representações tanto de Nobili quanto de Brito, o primeiro era descrito como entregue a uma vida de austeridades e privações, marcada por sua dieta altamente restritiva. Além disso, utilizava no topo da cabeça o tufo de cabelo conhecido como kudumi e a cobria com um turbante cilíndrico de seda alaranjada. Sua testa era revestida com uma camada de sândalo amarela e vestia uma túnica da mesma cor de seu turbante. Portava também a linha bramânica a tiracolo.

 

Embora as estratégias missionárias de Brito e Nobili não fossem as mesmas, ao que tange às vestimentas, são basicamente similares. Podemos realizar tal afirmação tendo em vista a pouca diferença dada pelos missionários às estratégias sanyasi e pandar. Nesse sentido, o editor da biografia demonstra uma possível divergência entre o Certame do Padre Maldonado e a biografia de autoria de Fernão Pereira de Brito, já que este último referencia durante toda a obra que João de Brito teria se vestido como sanyasi. O editor aponta para uma maior segurança na fala do autor da biografia, pois este “[...] devia sabelo com certesa, e tel-o ouvido da boca do seu próprio Bemaventurado irmão” (BRITTO, 1852, fls. 294). Entretanto, na mesma nota o editor nos aponta que era de conhecimento comum que os inacianos escolhiam ir para os caminhos de pandar ou sanyasi, de acordo com as especificidades de cada contexto. Além disso, não parecia ser um ponto de grande distinção entre os jesuítas, pois nos hábitos não haviam diferenças, somente nos modos de vida. Nesse viés, é válido acreditar que a opção entre caracterizar os missionários como sanyasi ou pandar não fosse uma grande questão, podendo ser negligenciada pelos autores, uma vez que a diferença entre os métodos era vista como pequena.

 

É bastante relevante pensarmos as consequências do uso da metodologia de accomodatio em relação à escolha por se tornar um pandar. Para nós, fica evidente que Brito não tomou o caminho dos sanyasi, pois se assim tivesse, teria se desvencilhado de seu personagem em alguns momentos específicos. Nobili, por exemplo, ao se apresentar à Inquisição de Goa ou até mesmo quando se encontrava com seu companheiro de missão, Gonçalo Fernandes Trancoso, deixava de ser um “brâmane europeu” para regressar a sua identidade de missionário italiano. Já João de Brito, quando retorna a Portugal em 1686:

 

“Aqui (em Lisboa) continuou a viver com toda a simplicidade e muitas vezes vestia o hábito cor de açafrão, próprio dos saniássis indianos. [...] No seu modo de viver, enquanto estava em Portugal, mantinha muitas das práticas que seguia na Índia. [..] A sua alimentação normal era constituída por vegetais, mesmo à mesa do Núncio Papal, ou do Secretário de Estado.”  (NEVETT, 1986, p 226).

 

Nos é apresentada ainda outra passagem, presente na biografia intitulada como São João de Brito de 1948, onde o autor menciona que o padre:

“Vestiu-se no seu traje de Iogue, conta o Padre Franco e fez as mais cerimónias diante do Bispo na varanda do Colégio do Porto; que ele viu com grandes mostras de consolação, de ver que se sujeitara a tal vida e traje por amor de Deus. E lhe deu muito boas esmolas para a sua missão. Também em outros dias por dar gosto ao Cabido e aos Senhores da Câmara e aos Desembargadores da Relação, que todos lho mereciam, fez as mesmas cerimónias diante deles que fizera diante do Senhor Bispo.”  (DOERING, 1948, p. 155).

 

Tendo em vista o contexto anterior da Querela, aquele protagonizado por Nobili e Trancoso, pensar em um “brâmane europeu” junto à mesa do Núncio Papal ou do Secretário de Estado português é surpreendente. Podemos afirmar que este é o ponto de virada da metodologia de accomodatio entre Nobili e Brito. Brito fora capaz de reinterpretar os caminhos metodológicos traçados pelo italiano para ampliar seu alcance missionário e evitar disputas internas junto aos portugueses. Todavia, vale ressaltar que esse caminho só fora possível de ser traçado pois fora aberto anteriormente por Nobili. Com base nesta substancial diferença entre Nobili e Brito, nos é importante buscar traçar a maneira pela qual Brito constrói e mantém seu personagem de brâmane pandar. Tal busca se justifica no sentido de abrirmos a discussão sobre a Querela dos Ritos para além das disputas entre o que seria considerado civil e o que poderia ser considerado religioso.

 

Referências

Alexandre Cabús Moreth Silva é estudante no curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (PPHR-UFRRJ).

 

Archivo Romanum Societatis Iesu (ARSI), Goa 54, fl. 433-456v. Carta Annua da Missão de Madurey do anno de 1683.

 

AGNOLIN. Adone. O amplexo político dos costumes de um jesuíta brâmane na Índia: A acomodação de Roberto de’ Nobili em Madurai e a polêmica do Malabar (séc.XVII). Niterói: Eduff. São Paulo, 2020.

 

BRITTO. Fernando Pereira de: Historia Do Nascimento, Vida E Martyrio De Beato Joâo De Britto: Da Companhia De Jesus, Martyr Da Asia, E Protomartyr Da Missâo do Maduré. Lisboa. Nabu Press, 2010 (1ªa edição de 1722).

DOERING. Henrique S. J. S. João de Brito – De pajem a mártir -. V2. Livraria apostolada da Impresa. Porto. 1948. P. 155.

 

MALDONADO, Jean Baptiste, S.J. Illustre certamen R. P. Ioannis de Britto e Societatis Iesu Lusitani. Antuerpiae : Petrum Iouret, , 1697, https://purl.pt/13819

 

NEVETT. Albert S.J. João de Brito e o seu tempo. Braga, Editorial A. O., 1986. 226

6 comentários:

  1. Alexandre, muito interessante seu texto! Os portugueses compreendiam a casta de um ponto de vista social ou religioso? Isto é, os portugueses não viam problema em lidar com a questão de casta? E como eles portugueses se viam na Índia como casta?
    Aldo Marcial Brandão

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    1. Olá, Aldo Marcial Brandão.

      Tudo bem?

      Obrigado pelo comentário e ótima pergunta!

      De maneira geral, as diversas formas de divisões sociais presentes na Índia, delimitadas de maneira bastante fluída a partir dos conceitos de varna e jati, foram vistas pelos portugueses como similar a divisão estamental europeia própria do Antigo Regime.

      Em relação a como os portugueses se viam a partir do sistema de castas, os nativos indianos usavam o termo parangui ou frangui para designar aqueles de origem europeia, sobretudo portugueses. Esta terminologia não tem tradução certa, mas indica algo profundamente odioso e colocava os portugueses no mesmo patamar dos pareas e outros grupos intocáveis. Contudo, muitos portugueses aceitaram a terminologia como fator de identificação, fazendo com que se autodenominassem como paranguis.

      Ao que tange a como os lusos lidavam com a questão da casta, em termos missionários isto foi alvo de debate, extrapolando a questão para além dos agentes portugueses. Existiam aqueles que acreditavam que para a conversão se dar por completa era preciso realizar uma assimilação cultural, ("transformar" o nativo em europeu), o que significava que este perderia sua casta, se tornando um parangui e, deste modo, rompendo com o "sistema". Por outro lado, outros como João de Brito adotaram metodologias de conversão a partir de um papel de mediador cultural, ou seja, mesmo após a conversão, boa parte dos costumes locais se mantinham, não rompendo com as castas.

      Espero que tenha respondido.

      Atenciosamente,

      Alexandre Cabús.

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  2. Prezado Alexandre Cabús,

    desde já gostaria de deixar aqui meus cumprimentos pela comunicação.

    Três perguntas bem gerais, e duas mais específicas, sobre as trajetórias missionárias de De Nobili e Brito:

    1. O texto não entra muito nos detalhes metodológicos da accomodatio empregados por De Nobili e Brito na Índia. As estratégias da accomodatio contemplavam tantas habilidades e manifestações literárias e artísticas, como os textos e o teatro de Anchieta no Brasil, tendo em vista a matriz jesuítica em questão? De que modo elas eram articuladas entre a matriz dogmática católica romana e as realidades culturais indianas, eminentemente hindus como apontam a comunicação?

    2. Até que ponto é possível verificar, historicamente, o sucesso missionário de ambos os jesuítas, do ponto de vista da conversão a partir de objetivos papais num contexto geopolítico-cultural Pós-Reforma de 1517 e pós-Concílio de Trento, sobre a realidade indiana DA ÉPOCA???? Existem estudos apontando pra isso?

    3. Há registros, em termos dos primeiros cristianismos no subcontinente indiano, da relação dos jesuítas – até João de Brito – com os cristãos de São Tomé? Não se trata de uma pergunta vazia, sem propósito, mas de uma dúvida sobre o empreendimento jesuítico de conversão e um modelo de cristianismo que já habitava o subcontinente indiano (os ditos cristãos de São Tomé), convivendo à sua maneira com as realidades locais há mais tempo, o que, num possível contato historicamente constatado, despertaria o questionamento de trocas de saberes entre as duas matrizes cristãs em vistas do cálculo doutrinário jesuítico na região...

    4. É possível identificar como a subcasta (jāti) na qual Brito era classificada nas duas hierarquias sincrônicas das realidades hindus – varṇas e jātis –, a partir dos mecanismos de absorção por desqualificação ritual, típica das tradições hindus, como os kāmbojas, yavanas, śakas, pāradas, pahlavas, cīnas?

    5. Parece haver uma confusão entre categorias originalmente sânscritas e inconfundíveis entre si, como estratificações sócio-ocupacionais (varṇas), comunidades rituais (jātis) e modos de vida (āśramas) na abordagem dos casos de De Nobili e, sobretudo, Brito, pois já na época de ambos os missionários os saṃnyāsīs representavam claramente um āśrama aberto aos três varṇas superiores – i.e. brāhmaṇas, kṣatriyas e vaiśyas –, diferenciando-se deles por categoria sócio-religiosa, ao passo que os ditos pandares, são tratados, pelo menos no texto da comunicação, como “uma subcasta [jāti?] brâmane de ascetas que se diferenciava dos sanyasi, sendo um asceta [logo, simultaneamente representante de um āśrama?] penitente de nível inferior”. Pergunta: é, claramente, uma confusão dos textos da época, das impressões coloniais portuguesas da época?

    Desde já agradeço pela atenção.

    Atenciosamente,

    Matheus Landau de Carvalho.

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    1. Prezado Matheus Landau de Carvalho,

      muito obrigado pelas perguntas, será um prazer responde-las! Tentarei seguir a ordem que estabeleceu, a níveis de organização acho que é uma boa escolha.

      1. Acredito que não. Até onde tenho conhecimento, os esforços adaptativos dos jesuítas em termos de produções literárias se concentraram em gramáticas e manuais sobre o ensino das línguas locais, sobretudo o tâmil. A metodologia de accomodatio realizava a articulação entre a matriz católica e as realidades culturais locais através da percepção de sinais considerados políticos/civis, aqueles que dizem respeito a manutenção do sistema de castas e que deveriam ser mantidos, como as vestimentas tradicionais, o tufo de cabelo no topo da cabeça (kudumi), as abluções diárias e sinais ligados a religiosidade dos brâmanes, que deveriam ser combatidos. Obviamente, tendo em vista a complexidade e pluralidade cultural da região que compunha a Província Jesuítica do Malabar, não é tão simples traçar uma separação das religiosidades locais junto à concepção de organização social com base na ideia de castas como os jesuítas adeptos ao método realizaram. Sendo, pois, o principal motivo que impulsionou o conflito conhecido como Querela dos Ritos Malabares. Ver: GOMIDE, Ana Paula Sena. Sob outro Olhar: a narrativa jesuítica sobre o hinduísmo e sua relação com a prática missionária no sul da Índia. 2014. 151 f. Dissertação (Mestrado) - Ao Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, São Gonçalo, 2014.
      2. Acredito que a ideia de “sucesso missionário”, a partir das discussões inerentes aos contextos de Nobili e Brito, se divide em dois grupos: concepção de qualidade de conversão e números de conversão. O debate sobre qualidade de conversão estava diretamente conectado ao uso ou não do método de accomodatio. Os opositores ao método defendiam que não se formavam verdadeiros cristãos, pois os locais ainda mantinham muitos dos costumes e, segundo Gonçalo Fernandes Trancoso (principal opositor a Nobili), por exemplo, nem mesmo tocavam no nome de Jesus. A respeito de número de conversão, os adeptos ao accomodatio tiveram bastante sucesso. Sobre ambas as ideias de “sucesso missionário”, ver: SALES. Maria de Lurdes Ponce Edra de Aboim. Do Malabar às Molucas: os Jesuítas e a Província do Malabar (1601-1693). Tese de doutoramento em História. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa. 2015. RUN: Do Malabar às Molucas: os Jesuítas e a Província do Malabar (1601-1693) (unl.pt); ŽUPANOV. G Ines. Disputed Mission: Jesuit Experiments and Brahmanical Knowledge in Seventeenth-Century India. New Delhi, Oxford University Press 1999.

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    2. 3. Sim, existem diversos registros. Inclusive, despertaram exatamente o que é mencionado em seu comentário, utilizado por ambas as partes do conflito (Querela dos Ritos) como argumento. Indico o brilhante trabalho: AGNOLIN. Adone. O amplexo político dos costumes de um jesuíta brâmane na Índia: A acomodação de Roberto de’ Nobili em Madurai e a polêmica do Malabar (séc.XVII). Niterói: Eduff. São Paulo, 2020.

      4. Este é um dos desafios de minha pesquisa. Existem um número considerável de fontes sobre a atuação de João de Brito produzidas por agentes europeus, sejam inacianos, membros do clero secular e da nobreza portuguesa. Entretanto, ainda não encontrei nenhum relato que diga respeito a percepção dos locais sobre seu método e os graus de sua aceitação nas comunidades locais.
      5. Na realidade, trabalhos como “Caste, Society and Politics in India from the Eighteenth Century to the Modern Age” de autoria da historiadora Susan Bayle, evidenciam que estas categorias só se aplicavam em sua totalidade nos núcleos bramânicos. Ao restante do corpo social indiano, os componentes do sistema de castas (varnas, jatis e asramas) eram bastante fluídas e móveis, ao contrário do que interpretações “bramonocentricas”, como a de Louis Dumont, vão afirmar. Os resultados escritos da metodologia de accomodatio, documentos, tratados e afins, tinham como enfoque os brâmanes, estabelecendo uma conexão através da ideia de que a verdade cristã foi apresentada aos indianos em certo momento do passado, mas se perdeu. Sendo, portanto, o motivo das produções se centrarem nos brâmanes, por serem considerados pelos jesuítas como elite religiosa, e suas concepções específicas de divisões sociais que posteriormente foram denominadas como um “sistema”. Desta forma, esta confusão dos textos da época é um reflexo natural de uma visão eurocêntrica e holística limitada a um grupo específico.
      Atenciosamente,

      Alexandre Cabús.

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    3. Prezado Alexandre Cabús, agradeço demais pela resposta.

      Ainda acredito que, no ponto 5 de nosso diálogo, as categorias de estratificações sócio-ocupacionais (varṇas), comunidades rituais (jātis) e modos de vida (āśramas) não se aplicavam em sua totalidade somente nos núcleos brāhmaṇicos, nem que os componentes do sistema de castas (varṇas, jātis e āśramas) eram bastante fluidos e móveis, ao contrário do que interpretações “bramonocentricas”, como a de Louis Dumont, vão afirmar... e olha que Louis Dumont nem é tão bramonocêntrico assim, pelo menos eu acho... ;)

      Estudos sociológicos e antropológicos recentes, como os de Srinivas, Veena Das, entre outros, apontam sim para dinâmicas históricas para além das prescrições ortodoxas brāhmaṇicas, mas não para uma fluidez a priori sobre as coordenadas semântico-sociais que estes termos sempre tiveram em suas funções e sentidos na sociedade e na cultura hindu como um todo... de fato ainda não li a obra de Susan Bayle e acredito, numa primeira impressão, que se trate de relações sócio-religiosas acontecidas na história entre categorias através deste ou daquele indivíduo - aí sim me parece plausível - mas confundir essas categorias como pertecendo a uma só e mesma categoria, ou se assemelhando por verossimilhança - se for este o caso alegado -, aí me parece esquisito, mesmo considerando-se grupos sociais hierarquicamente mais distantes dos brāhmaṇas, sobretudo pela 'dynamis' própria da cultura hindu em torno dessas categorias...

      Agradeço pelas sugestões de leitura... ;)

      Atenciosamente,

      Matheus Landau de Carvalho.

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