ASPECTOS CULTURAIS DOS DESDOBRAMENTOS HISTÓRICOS DAS VERSÕES DO RĀMĀYAṆA, por Matheus Landau de Carvalho

 As tradições culturais hindus se destacam no cenário mundial por constituírem um dos mais antigos e prolíficos conjuntos de dinâmicas ainda existentes da humanidade de articulação de sentidos conjugados com a vicissitude dos fatos históricos. Rāma, um dos avatāras de Viṣṇu, é uma das figuras mais centrais para se compreender tanto as dimensões religiosas quanto os desdobramentos políticos indianos que, há milênios, caracterizam as tradições hindus.

 

Várias versões literárias da narrativa sobre Rāma, com algumas diferenças entre si, já foram compostas, seja no subcontinente indiano, seja nas extensas regiões que lhe são circunvizinhas no continente asiático, como a Indochina, o sudeste asiático e o Extremo Oriente. Destacam-se no subcontinente indiano o Adhyātma Rāmāyaṇa; o Ranghanat Rāmāyaṇa escrito no idioma telugu, do sul da Índia; Irāmāvatāram de Maharṣi Kamban em tâmil; a versão de Elutachhan em malyalam; a de Nagchandra em kannada; o Krittiwasu Rāmāyaṇa de Kṛttibās Oza em bengali; o de Eknath, composto na região de Mahārāṣṭra; e o Rāmacaritamānas de Tulsīdās, composto em hindi antigo no século XVI E.C.

 

Para além dessas versões indianas, é possível encontrar outras do Rāmāyaa no Japão, onde foi composto o Ramaenna [ou Ramaensho], no Tibete, onde existe a estória tibetana do Rāmāyaa encontrada em vários manuscritos de Dūnhuáng [敦煌], e na província de Yunnan, no sul da China, onde há o Langka Sip Hor, na língua dǎilèyǔ [傣仂语]. Na Indonésia – onde a estória de Rāma costuma a ser assimilada pela tradição islâmica [cf. Bose, 2004, p. 7] –, há quatro versões do Rāmāyaa, espalhadas em três locais diferentes, i.e. o Ramakavaca da província de Bali, o Kakawin Rāmāyaa e o Yogeśvara Rāmāyaa da ilha de Java, e o Rāmāyaa Svarnadvipa da ilha de Sumatra. Enquanto que na Malásia há duas versões, ou seja, o Hikayat Seri Rama e o Hikayat Maharaja Wana, em Myanmar há o Yama Zatdaw [Yamayana]. Na ilha de Mindanao, nas Filipinas, encontramos o Maharadia Lawana, e na Tailândia o Rammakian, o épico nacional do país, além do Phommachak.

 

Segundo estudiosos, a versão considerada mais antiga e paradigmática, o Rāmāyaṇa de Vālmīki, foi composta em sânscrito, aproximadamente entre o sexto século A.E.C e meados do século XII E.C. Vālmīki é o erudito védico [brāhmaṇa] e eremita [tapasvī] hindu a quem o próprio texto atribui a autoria de si mesmo, ao contrário do que dizem revisões estruturais contemporâneas sobre a composição do próprio texto. O Rāmāyaṇa de Vālmīki seria uma das versões textuais ampliadas da narrativa básica, nuclear, original da estória de Rāma, a Rāma-kathā – do sânscrito kathā, um conto, uma estória, um relato [Apte, 1970, p. 131a; Monier-Williams, 1899, p. 247; Wilson, 1819, p. 151a] –, ou seja, o enredo que conta o casamento de Rāma com Sītā, o exílio subsequentemente enfrentado pelos dois na mata indiana, o rapto de Sītā pelo líder das criaturas demoníacas [rākasas], Rāvaṇa, e a batalha contra este mesmo Rāvaṇa, com a consequente vitória de Rāma, que reconquista sua amada de volta e retorna para sua terra natal, a cidade de Ayodhyā, para governar o reino de Kosala. Quando esta Rāma-kathā é desenvolvida e ampliada a ponto de se constituir numa versão da estória de Rāma, a respectiva versão, em geral, recebe o nome do autor ao qual se atribui a sua autoria – como no caso de Vālmīki, daí o épico sânscrito, cuja autoria as expectativas confessionais da cultura hindu lhe atribuem, ser identificado como o “Rāmāyaṇa de Vālmīki” –, de modo que todas as versões desenvolvidas em diferentes idiomas, estilos, e meios de expressão estética a partir da Rāma-kathā constituem o que recorrentemente é denominada de “tradição textual do Rāmāyaṇa”. Com efeito, Rāmāyaṇa não é apenas uma estória, mas uma verdadeira tradição plural de contar e recontar, de maneiras diversas, as vicissitudes pelas quais passou Rāma em sua trajetória neste mundo.

 

Curiosamente, William Buck [1976, p. xvi] demonstra uma noção de que os épicos eram originalmente cantados, reconhecendo a existência de interpolações no texto do Rāmāyaṇa e, na consciência de suas várias versões asiáticas, afirma em uma carta, a despeito dos críticos das mudanças e combinações de sua adaptação para a prosa em língua inglesa, que o Rāmāyaṇa “é uma das estórias mais populares do mundo, e faz parte de sua própria tradição ser recontado em diferentes épocas e lugares, tal como eu fiz.”

 

É possível classificar as narrativas desenvolvidas a partir da Rāma-kathā em cinco categorias:

 

[i] narrativas no idioma sânscrito;

[ii] textos devocionais em línguas regionais;

[iii] contos populares;

[iv] narrativas modernas, compostas em prosa ou verso nos últimos cem anos, em idiomas regionais indianos;

[v] e formas mais breves de expressão cultural, como canções populares, crenças, provérbios ou expressões estereotípicas, mantras sagrados, analogias e charadas [enigmas].

 

Nos últimos trinta anos, houve um enorme interesse na diversidade representacional, textual e narrativa da Rāma-kathā, não apenas como reflexo de sua hegemonia textual, mas também da propensão em transformá-la numa plataforma de resistência à hegemonia do Rāmāyaṇa de Vālmīki. Até a presente data, uma das manifestações anti-Rāmāyaṇas mais impactantes é o Meghanādavadha kāvya [1861], de Michael Madhusudan Datta, uma obra autoconscientemente letrada no estilo épico virgiliano de meados do século XIX E.C., em sonoros versos brancos no idioma bengali, uma obra que lamenta a derrota de Rāvaṇa e a morte de seu filho Meghanāda nas mãos do traiçoeiro “Rāma e sua turba” [Bose, 2004, p. 5].

 

Desde que os brāhmaṇas começaram a recitar, memorizar e preservar textos em sânscrito, em maior ou menor grau ao longo do tempo, narrativas sânscritas da Rāma-kathā já circularam por várias áreas diferentes do subcontinente indiano. Existem mais de vinte e cinco versões em sânscrito da Rāma-kathā, pertencentes a diversos gêneros narrativos, i.e. kāvyas [composições poéticas], purāṇas [“estórias antigas”], sem mencionar peças de teatro, performances de dança, entre outros, seja do ponto de vista clássico, seja do ponto de vista popular. Além dessas manifestações culturais, ainda é possível encontrar esculturas, baixos-relevos, teatro de máscaras, de fantoches ou de sombras, em várias localidades do sul e do sudeste asiático. A. K. Ramanujan [1991, p. 24] afirma que, ao relatar a um pesquisador canarês que Camille Bulcke, uma estudante do Rāmāyaṇa, havia contado trezentas narrativas da Rāma-kathā no total, ele mesmo contara mais de mil apenas no idioma canarês, sendo que outro erudito, da língua telugo, mencionou mil em seu idioma, ambos os cálculos incluindo diversos gêneros de estórias sobre Rāma. Segundo Sharma [1971, p. 1, itálico do autor], “Não há forma de poesia sânscrita na qual a Rāma-Kathā não tenha sido recontada, e não há língua indiana – viva oumorta – que não possua seu próprio Rāmāyaṇa.”

 

O Rāmāyaṇa de Vālmīki, especificamente, é o desdobramento da narrativa da Rāma-kathā mais influente na língua sânscrita. Tanto textos em sânscrito quanto textos devocionais em línguas regionais compartilham, senão de todas, pelo menos da maioria das características que possuem em comum, pois são geralmente atribuídos a poetas particulares, compostos em gêneros literários estilisticamente elaborados, inicialmente recitados em contextos reduzidos, tais como ambientes palacianos ou religiosos. A principal diferença entre as narrativas em idiomas regionais e as narrativas em sânscrito da Rāma-kathā é que as versões regionais circularam, num primeiro momento, especificamente dentro de uma área geográfica, além destas mesmas versões terem incorporado práticas locais em suas estórias: “As tradições narrativas transmitidas por bardos errantes são caracteristicamente maleáveis ​​e, muitas vezes, se adaptam à situação de cada narrativa” [Rodrigues, 2006, p. 137].

 

Coincidentemente, é sobre esta dinâmica cultural específica que Aristóteles [1979, p. 264] discorre quando afirma que, do ponto de vista técnico da composição literária, “na epopéia, porque narrativa, muitas ações contemporâneas podem ser apresentadas, ações que, sendo conexas com a principal, virão acrescentar a majestade da poesia. Tal é a vantagem do poema épico, que o engrandece e permite variar o interesse do ouvinte, enriquecendo a matéria com episódios diversos.” [Poética, XXIV.153].

 

A diversidade supracitada de narrativas sugere que a tradição textual do Rāmāyaṇa comporte significados diferentes para públicos diferentes, de modo que, se alguém quiser investigar quais são esses significados variados e como eles surgem, será necessário realizar uma abordagem não apenas do texto literário, mas também de formas não literárias, como performances de dança, narrativas orais, peças de teatro, canções, filmes, artes visuais e artes plásticas. Neste sentido, muitas narrativas em línguas regionais da Rāma-kathā, compostas antes do século XX E.C., são textos devocionais ligados à religiosidade bhakti, reverenciando Rāma como uma divindade na terra, ao invés de um rei excelente e um guerreiro valente apenas.

 

Os contos populares da Rāma-kathā, por sua vez, são mais fluidos do que as narrativas no idioma sânscrito e os textos devocionais em línguas regionais. Em geral são anônimos ou atribuídos a autores sobre os quais quase nada se sabe, compostos em gêneros folclóricos e freqüentemente em dialetos locais, e recorrentemente produzidos para ocasiões religiosas por pessoas não profissionalizadas no ofício [aqueles que ganham a vida principalmente através de outras ocupações]. Romila Thapar [2000, p. 1059, itálicos da autora] chama a atenção para aspectos dos ritmos cotidianos dos hindus do subcontinente indiano conjugados com certas expectativas religiosas por eles alimentadas para explicar a ampla difusão que o Rāmāyaṇa de Vālmīki adquiriu:

 A popularidade da história foi atribuída a vários fatores, como o fato de ser um compêndio de mitos da natureza, com Sītā sendo uma deusa da fertilidade, e Rāma como a divindade solar, dada sua descendência da linhagem solar. Talvez tenha sido por causa dessa popularidade crescente que o Rāmāyaṇa de Vālmīki foi agora convertido em um texto religioso por meio de uma nova edição que foi reformulada por autores brāhmaṇas.

 

Os contos populares oferecem mais possibilidades de improvisação do que os textos fixos, permitindo que, assim como nos textos devocionais em línguas regionais, a narrativa seja customizada de acordo com as predileções dos contadores de histórias e as preferências dos ouvintes. Duas características destes contos populares são especialmente relevantes para as narrativas modernas da Rāma-kathā, quais sejam, que, às vezes, apresentam episódios de perspectivas não autorizadas, e que inserem personagens ausentes em versões mais conhecidas:

 

Mesmo que um conto popular inclua um texto fixo, elementos fluidos podem moldar a recepção da Rāma-kathā, como mostra uma peça bilíngue [da cidade indiana] de Palghat, [na região de] Kerala. Neste drama de fantoches de sombras, os artistas recitam versos tâmeis selecionados do Irāmāvatāram de Kamban, mas os complementam com histórias improvisadas e comentários em malaiala coloquial.” [Richman, 2008, p. 11, itálicos da autora].

 

As narrativas modernas, compostas em idiomas indianos regionais, por sua vez, foram precedidas por três grandes transformações, i.e. o crescimento das instituições educacionais, a disponibilidade de tecnologia de impressão relativamente acessível para os scripts regionais da Índia, e o aumento do número de leitores regulares de seriados impressos e monografias em idiomas regionais. Estudos sobre a escolha de estruturas narrativas e estratégias de representação revelaram uma relação dinâmica de adesão e resistência às fórmulas éticas e políticas autorizadas pelas versões estabelecidas como padrão. Essas mudanças históricas permitiram que escritores de literatura em línguas regionais contassem a estória de Rāma em sua própria maneira, para seu próprio tempo. No entanto, as modernas narrativas impressas não têm sido virtualmente estudadas como uma categoria de Rāma-kathā porque são percebidas por devotos ou estudiosos eruditos como carentes de alguma característica essencial, seja de autenticidade, de certa rusticidade, de devocionalismo, de determinado respeito ou até modernidade.

 

Por fim, a última categoria de narrativas desenvolvidas a partir da Rāma-kathā engloba uma série de formas mais breves de expressão cultural, como canções populares, crenças, provérbios ou expressões estereotípicas, mantras sagrados, analogias e charadas [enigmas], resultado da interação entre a tradição escrita, textual da Rāma-kathā, e das aspirações e saberes da chamada cultura popular, seja ela qual for ou onde estiver. Brockington [1985, p. 232] salienta que estas expressões culturais podem ser divididas em três grupos, i.e. [a] aquelas encontradas tanto na tradição do Mahābhārata quanto na tradição do Rāmāyaṇa, [b] aquelas encontradas apenas na primeira, e [c] aquelas encontradas apenas na segunda. Brockington [1985, p. 231] refere-se a um verdadeiro “estoque tradicional de narrativas” da cultura hindu incorporadas independentemente e, com frequência, secundariamente, tanto à tradição textual do Mahābhārata quanto à tradição textual do Rāmāyaṇa. Dessa maneira, as estórias de Nala e Damayantī estão presentes tanto no Ārayakaparvan, do Mahābhārata [III,50-78] como no Sundarakāa [V,548* 7], do Rāmāyaṇa, acontecendo o mesmo com os episódios de Ilvala e Vātāpi [Mahābhārata III,94-97; Rāmāyaṇa III,10,54-57], de Sagar e Asamañjas [Mahābhārata III,104-105; Rāmāyaṇa II,32,15-20], de śyaśṅga [Mahābhārata III,110-113; Rāmāyaṇa I,8-9], de Cyavana e Sukanyā [Mahābhārata III,122-124; Rāmāyaṇa II,102.16; V,548* 7; VII,1.1 etc], de Māndhātṛ [Mahābhārata III,126; Rāmāyaṇa I,69,22-23 etc], de Aṣṭāvakra [Mahābhārata III,132-134; Rāmāyaṇa VI,107,6], de Sāvitrī [Mahābhārata III,277-283; Rāmāyaṇa II,27,6;V,548* 5] e do rei Nga [Mahābhārata XIII,6,38c.69.72,2; XIV,93,74; Rāmāyaṇa VII, App. I,8,13-82, cf. Brockington, 1985, pp. 231-232, n. 9].

 

Como destaca Bijoya Baruah Rajkhowa [2001, p. 133], “É que inúmeras canções orais, baladas, mitos, lendas, crenças, contos, mantras, provérbios e enigmas encontrados, baseados na Rāma-kathā, foram compostos oralmente pelo gênio popular para atender seu desejo criativo em vários aspectos da vida.” Rajkhowa [2001, pp. 142-143] oferece alguns exemplos de provérbios da região indiana de Assam acerca da estória de Rāma: “Antes de Rāma nascer, o Rāmāyaṇa surge” [“ram nau upojotei rāmāyana”], “Se Rāma não existe mais, Ayodhyā não existe mais” [“sei ramo nāi sei ayodhyāo nāi”], “Quem quer que vá para Laṅkā, torna-se um Rāvaṇa” [“jeye lakālai yay/ seye rāban hay//”].

 

De um modo geral, as maneiras pelas quais o Rāmāyaṇa é apropriado também não deixaram a prática social e a política inalteradas. A legitimação das monarquias tailandesas pela adoção dinástica do nome Rāma e pela centralização do poder dinástico em uma capital chamada Ayutthya é apenas uma das muitas indicações da aplicação social do épico. Em muitas partes da Índia rural, pergaminhos pintados que retratam destaques da estória são apresentados em feiras de vilas por artistas viajantes que cantam a narrativa enquanto exibem a pintura quadro a quadro. Além disso, em outras partes do sudeste asiático, as fronteiras religiosas foram cruzadas para recorrer às lendas do Rāmāyaṇa para a formação de identidade ou instrução moral [Bose, 2004, pp. 6-7].

 

Segundo Santosh Desai, a estória de Rāma parece ter percorrido três rotas, disseminando-se não apenas por todo o subcontinente indiano, mas também pela Ásia:

 

“Por terra, a rota do norte levou a estória do Punjab e da Caxemira à China, ao Tibete e ao Turquestão Oriental; por mar, a rota do sul levou a estória do Gujarat e sul da Índia para Java, Sumatra e Malásia; e novamente por terra, a rota oriental transmitiu a estória de Bengala à Birmânia, Tailândia e Laos. Vietnã e Camboja obtiveram suas histórias em parte de Java e em parte da Índia pela rota oriental” [Richman, 1991, p. 33]

 

Acerca dessa enorme expansão geográfica da Rāma-kathā por volta do início do segundo milênio E.C., Romila Thapar [2000, p. 1064, itálicos da autora] salienta que a versão de Vālmīki permaneceu como literatura sagrada, religiosa, consideravelmente entre os praticantes do culto devocional [bhakti] específico a Viṣṇu, i.e. os vaiṣavas, mas que em outras variantes textuais ela era muito mais apropriada, substancialmente, como metáfora cultural:

 Isso tinha menos a ver com a Rāma-bhakti como tal e mais com o fato de que em suas formas variantes, as tradições locais se expressavam em uma linguagem cultural comum que era amplamente dispersa e compreendida. Uma distinção, portanto, deve ser feita entre a estória como uma metáfora cultural e como literatura sagrada.


A historiadora indiana aponta para alguns fatores responsáveis pelo sucesso dessa dispersão da Rāma-kathā como núcleo narrativo e estético dinâmico, inspiradora de outras versões subsequentes. Do ponto de vista linguístico, a propagação do sânscrito simples e acessível da versão atribuída a Vālmīki capitalizou muito a divulgação do idioma – e do conteúdo cultural do épico – em áreas onde se tornou modelo do gênero literário para outras versões mais condizentes com as demandas das respectivas culturas populares e tradições locais. O notável crescimento de inúmeros reinos menores e perecíveis a partir do século VIII E.C. no leste e sudeste asiáticos gerou a necessidade reincidente de legitimação do poder régio através de alguma estória que conferisse determinada autoridade político-cultural a seus governantes perante seus súditos. A presença de cortes monárquicas pedia a presença de eruditos védicos [brāhmaṇas] para sancionar sua soberania régia por meio de genealogias encomendadas e a realização de rituais de consagração do monarca em questão. O consequente estabelecimento desses brāhmaṇas em terras desconhecidas proprocionou trocas culturais que pressupuseram a inserção de padrões sanscríticos inéditos em lugares onde ingredientes da cultura local eram incorporados a novas versões da Rāma-kathā. Ao salientar as várias “encarnações” pelas quais a Rāma-kathā já passou, modificando suas funções sociais através do tempo, Romila Thapar [2000, pp. 1072-1073, itálicos da autora] destaca que

“O que é interessante ao olhar para a perspectiva histórica da Rāma-kathā é o papel que a estória desempenhou na articulação de uma série de diálogos no contexto da civilização indiana. Não se sugere que aqueles que desejam tratar qualquer uma dessas muitas versões da Rāma-kathā como um livro sagrado não devam fazê-lo: mas insiste-se que aqueles que desejam ver a tradição da Rāma-kathā em sua totalidade fora de um contexto religioso, também têm o direito de vê-la dessa forma. A diferenciação entre uma linguagem cultural e um livro religioso, sectário, sagrado, não deve ser ignorada. O fato dessa distinção não ter sido ignorada no passado também se torna fundamental para nossa compreensão do papel da Rāma-kathā hoje.”

 

Referências biográficas

Matheus Landau de Carvalho é bacharel e licenciado em História com habilitação em Patrimônio Histórico pela Universidade Federal de Juiz de Fora em 2009. Especialista [2010], Mestre [2013] e doutorando [2019-] pelo Programa de Pós-graduação em Ciência da Religião [PPCIR], pela mesma Universidade. É membro do NERFI [Núcleo de Estudos de Religiões e Filosofias da Índia] e da ABHR [Associação Brasileira de História e Pesquisa das Religiões].

 

Referências bibliográficas

APTE, Vaman Shrivam. The Student’s Sanskrit-English Dictionary. 2. ed. Delhi: Motilal Barnasidass Publishers, 1970.

 

ARISTÓTELES. Poética. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. [Coleção Os Pensadores,

vol. Aristóteles II].

 

BOSE, Mandakranta [ed.]. The Rāmāyaṇa Revisited. New York: Oxford University Press,

2004.

 

BROCKINGTON, John. Righteous Rāma: The Evolution of an Epic. Delhi: Oxford University Press, 1985.

 

BUCK, William [trad.]. Ramayana: King Rama's Way. Berkeley: The Regents of the University of

California, 1976.

 

MONIER-WILLIAMS, Monier. A Sanskrit-English Dictionary. 2. ed. Oxford: Oxford University Press, 1899.

 

RAJKHOWA, Bijoya Baruah. Oral Tradition of the Rāmāyaṇa in North East India. In: DODIYA, J. K. [ed.]. Critical Perspectives on the Rāmāyaṇa. New Delhi: Sarup & Sons, 2001, pp. 131-147.

 

RAMANUJAN, A. K. Three Hundred Ramayanas: Five Examples and Three Thoughts on Translation. In: RICHMAN, Paula [ed.]. Many Ramayanas: The Diversity of a Narrative Tradition in South Asia. Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1991, pp. 22-49.

 

RICHMAN, Paula [ed.]. Many Ramayanas: The Diversity of a Narrative Tradition in South

Asia.Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1991.

 

______. Ramayana Stories in Modern South India: An Anthology. Bloomington: Indiana

University Press, 2008.

 

RODRIGUES, Hillary. Introducing Hinduism. New York: Routledge, 2006.

 

SHARMA, Ramashraya. A Socio-Political Study of the Vālmīki Rāmāyaṇa. Delhi: Motilal

Banarsidass, 1971.

 

THAPAR, Romila. A Historical Perspective on the Story of Rāma. In: Cultural Pasts. New Delhi: Oxford University Press, 2000, pp. 1055-1078.

 

WILSON, Horace Hayman. A Dictionary, Sanskrit and English. Calcutta, Hindoostanee Press, 1819.

3 comentários:

  1. Olá caro Matheus, primeiramente, parabéns pelo empreendimento. A obra Ramayana, para nosso contexto e público é bastante cativo, especialmente, nas versões animadas (animês, HQs...), conforme você discorre acima, há em vários países próximas a India versões. Nesse sentido, pensando no público leitor brasileiro, há obras traduzidas para nossa língua deste "épico" (como costumamos, colonizadoramente, denominar e classificar obras não europeias), nesse sentido, o que pode nos esclarecer quanto a tradução e, em especial, se as versões brasileiras tomam alguma versão em especial? Desde já agradeço e parabenizo-o.

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    1. Prezado Sr. Jander F Martins,

      desde já agradeço pelas palavras. Até onde eu saiba, a tradução portuguesa da versão em prosa inglesa de William Buck – publicada pelo Círculo do Livro na década de 1980 – baseia-se na recensão norte, de Vārāṇasī, que, por sua vez, constitui-se em duas, a do nordeste e a do noroeste… eu a considero boa – se não levarmos em conta a ausência dos diacríticos, no que ela fica devendo, até por motivos de alcançar um público maior – e bem justificada pela Introdução de B. A. van Nooten… para um primeiro contato, recomendo muito… é a única em língua portuguesa que posso dizer que conheço… peço desculpas por não conhecer as versões animadas que Va. Sra. citou...

      Permita-me, respeitosamente Sr. Jander F Martins, discordar do trecho em que Va. Sra. registra que “este ‘épico’ (como costumamos, colonizadoramente, denominar e classificar obras não europeias)”, pois enquanto manifestação estética literária, o Rāmāyaṇa de Vālmīki pode perfeitamente ser encaixado sim no gênero literário assim classificado, tal como obras europeias, i.e. Beowulf, Os Lusíadas, El Cid, Ilíada, Odisseia, Gerusalemme liberata, Paradise Lost, El ingenioso hidalgo don Quijote de la Mancha, La chanson de Roland, Aeneis, Das Nibelungenlied, entre outros.

      O Rāmāyaṇa de Vālmīki pode ser classificado como um épico pelo fato de um herói – no caso o avatāra de Viṣṇu, Rāma – tomar o protagonismo das divindades como personagem idealizado. Além disso, trata-se de uma longa narrativa, centrada numa figura heroica ou semidivina, de cujas ações depende o destino de uma tribo, uma nação ou a espécie humana como um todo, envolvendo, frequentemente, feitos sobre-humanos e fatos sobrenaturais, sendo permeado por episódios arrebatadores, como batalhas, peregrinações, duelos e provações. Comporta um propósito moral, de modo que, recorrentemente, o herói represente uma causa virtuosa, assim como a vitória das forças benfazejas contra as forças malignas. A narração habitualmente segue um estilo ornamentado, elevado, cerimonioso e grandioso que o distinga do uso cotidiano, coloquial de seu próprio idioma, exatamente como o Rāmāyaṇa de Vālmīki se apresenta em sua redação sânscrita. Figuras de linguagem, alusões e referências clássicas, além de repetições, também são bastante utilizadas.

      (continua...)

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    2. (continua)

      Além disso tudo, o Rāmāyaṇa de Vālmīki pode ser classificado como um épico pelo fato de seguir um ciclo, com três elementos, i.e. separação, conflito e retorno. De maneira bem simples, (i) o herói ou a figura salvadora abre mão de sua condição confortável e ingressa num exílio ou num esforço determinado para redimir seu povo (tal como a partida de Rāma para a floresta Daṇḍaka); (ii) a maior parte do enredo geralmente se preocupa com a derrota das forças malignas em uma série de conflitos extraordinários que culminam em uma batalha decisiva e vitoriosa (a exemplo dos vários confrontos de Rāma contra as criaturas demoníacas, os rākṣasas, até sua vitória apoteótica e decisiva sobre Rāvaṇa); (iii) o retorno ao ponto de partida, mas com uma nova dimensão, desta vez o estabelecimento de um reino justo (no caso o rāmarājya). Aqui, a forma já desenvolvida da narrativa transpõe a separação e retorna à esfera celestial (quando Rāma
      volta a ser Viṣṇu após o restabelecimento do dharma hindu).

      Em geral, os épicos sustentam duas funções, isto é, de paradigma e de anamnese, uma vez que colocam certos eventos em contextos bastante significativos. No caso do Rāmāyaṇa, a estória salvífica é um paradigma, uma expressão de um arquétipo clássico, e ele próprio o arquétipo para futuros pensamentos e ações, na medida em que Rāma é, pelo menos para certas pessoas, o hindu paradigmático, completamente em sintonia com o dharma hindu, vivendo uma vida idealmente superlativa. O épico também tem a função de anamnese porque não se trata apenas de rememorar a mensagem, mas sim do devoto fazer com que o evento salvífico aconteça de novo e de novo, de modo que ele transcende quaisquer barreiras temporais que possam existir e participa diretamente das ações da divindade em sua vida.

      Portanto, o Rāmāyaṇa é um épico, no contexto cultural hindu, exatamente pela propedêutica textual que lhe é característica na instrução do dharma hindu, sob todas as suas acepções ortodoxas e ortopráxicas. A realização do dharma hindu é sua verdadeira raison d’être, tendo em vista o cumprimento deste mesmo dharma hindu que ele possui em seu principal horizonte.

      Por esses motivos, eu acredito que o Rāmāyaṇa de Vālmīki seja, sim, um exemplo de literatura épica.

      Espero ter correspondido às expectativas.

      Desde já agradeço pela atenção.

      Atenciosamente,

      Matheus Landau de Carvalho.

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