AOS OLHOS DO CORREIO PAULISTANO: AS EXPERIÊNCIAS DA IMIGRAÇÃO CHINESA COMO ARGUMENTO PARA A REALIDADE BRASILEIRA, por Alisson Eric de Souza Simão Pereira

 

Introdução

O segundo reinado foi um momento marcado por acontecimentos como a extinção do tráfico negreiro, a abolição da escravidão, importação de imigrantes para o país e a manifestação de uma visão que colocava a escravidão como responsável pelo atraso do Brasil. É preciso deixar claro que o fim do sistema escravocrata proporcionou modificações econômicas no Brasil, uma vez que o preço do escravizado aumentou nessa conjuntura, a nação era extremamente dependente do trabalho escravocrata e a produção agrícola de café da região Sudeste possuía poucos trabalhadores para suprir as suas necessidades. Assim, a solução encontrada para suprir as necessidades da produção cafeeira foi o tráfico interprovincial estabelecido com a região Nordeste [Oliveira, 2018].

 

Foi nessa conjuntura que as teorias raciais chegaram ao Brasil e passaram por uma seleção e adaptação para pensar a realidade brasileira segundo os interesses da elite intelectual [Schwarcz, 1993]. Os negros neste período eram descartados como força de trabalho devido a sua “pouca capacidade intelectual” e a “falta de preparo profissional” [Azevedo, 1987]. Assim as elites brasileiras começaram a refletir sobre o uso de imigrantes, já que a escravidão estava chegando ao fim; à adoção de novas formas de trabalho se fazia necessária e o trabalhador estrangeiro teria o papel de civilizar o país, o que consequentemente eliminava os negros e os asiáticos do perfil de imigrantes desejáveis [Lima, 2005]. Com isso, os europeus eram definidos como os imigrantes ideais devido a sua capacidade de purificação racial e de civilizar o país [Azevedo, 1987].

 

Contudo, o imigrante chinês começa a surgir como uma possibilidade de trabalho em substituição ao trabalhador europeu [Czepula, 2020]. Essa possibilidade de uso dos chineses pode ser explicada pela dificuldade na obtenção de trabalhadores europeus aliada com a falta de escravizados [Lima, 2005]. Os chineses geralmente eram descritos agentes pacientes, industriosos, excelentes operários, de baixo custo, sóbrios, bons agricultores etc [Peres, 2013]. Por outro lado, existia também uma visão que colocava os trabalhadores da China como seres de atraso, de uma raça inferior e que não servia para a composição racial brasileira [Dezem, 2005]. Assim, os opositores a importação dos filhos da China costumavam descrever esses indivíduos como indolentes, corruptos, fracos, depravados, narcotizados, imorais, subservientes e perigosos para a família [Peres, 2013].

 

A partir disso, é interessante destacar que as experiências com a adoção dos filhos do império celeste em países como Cuba, Peru e Estados Unidos foram usadas como argumentos pouco aprofundados para defender a imigração chinesa. Assim, no caso de Cuba, essa nação foi tomada como um exemplo a ser seguido devido as suas semelhanças com o Brasil [Czepula, 2020]. Pelo que se sabe da experiência cubana, o uso dos chineses serviu como uma substituição aos escravizados e proporcionou o desenvolvimento dos produtos cubanos [Peres, 2013]. Contudo, essas mesmas experiências também era usadas para atacar a importação asiática, um exemplo disso é que para o médico Nicolau Moreira o sucesso de Cuba com os chineses foi devido a exploração que os trabalhadores sofreram, e não do trabalho livre [Czepula, 2020].

 

Dito isso, nota-se que o Brasil do século XIX era um momento marcado pela necessidade por trabalhadores, por debates raciais e pelo uso de imigrantes asiáticos em diversos países. Assim, o presente trabalho tem como objetivo analisar como o jornal Correio Paulistano apresentava as experiências de outros países com os imigrantes chineses na década de 70 do século XIX. A pesquisa foi teoricamente embasada no conceito de raça (Almeida, 2018), uma vez que essa categoria permite uma boa compreensão acerca de que como os chineses eram interpretados no contexto das teorias racias. Por fim, é preciso salientar que todas as citações diretas das fontes foram alteradas para o português atual com o intuito de evitar tornar a leitura mais fluída. 

 

O correio paulistano

Antes de começar a análise das notícias do jornal Correio Paulistano é preciso fazer uma breve apresentação deste periódico. Fundado na província de São Paulo no ano de 1831, o Correio Paulistano nasceu como um estabelecimento voltado para a divulgação das ideias do governo, contudo, é entre os anos de 1855-1858 que o estabelecimento passa por uma fase de declínio ocasionada por problemas financeiros que só são solucionados no ano de 1858 através da subvenção do governo [Schwarcz, 1987].

 

Sobre a atuação do jornal na década de 70, sabe-se que o estabelecimento passou por diversas oscilações nos seus posicionamentos políticos, pois entre o curto período de  1872-1874 o jornal foi republicano, neutro e conservador. Assim, o Correio Paulistano só consegue alcançar a sua estabilidade a partir do ano de 1882, quando é comprado por Antônio da Silva Prado que era prefeito de São Paulo e líder da União Conservadora.  [Schwarcz, 1987].

 

No que diz respeito as suas publicações, elas geralmente representavam os interesses da elite rural do país, pois sempre que necessário o jornal aliava-se a classe dominante. Um exemplo disso é que o correio discretamente apoiava a escravidão, possuía uma percepção pessimista acerca da questão racial brasileira e geralmente atacava determinados grupos, que no caso eram judeus e ciganos. Desse modo, entende-se que o caráter conservador do Correio Paulistano não era apenas uma questão de estilo, mas sim algo atrelado a sua essência [Schwarcz, 1987].

 

O uso de experiências

A primeira fonte que será analisada é datada do dia 16 de janeiro de 1870. De acordo com a fonte a força de trabalho chinesa surge como uma possibilidade para alimentar a agricultura e a construção de uma estrada de ferro na região, pois enriquecimento de países como Austrália revela a qualidade desses trabalhadores. Contudo, a fonte aponta que a importação de chineses é um investimento que não vale apena, pois essa empreitada seria de custo elevado, levaria muitos meses e talvez o sucesso apresentado nesses outros países não se repetisse no Brasil [Correio Paulistano, 1870]. Nota-se que os casos dessas outras localidades são primeiramente apresentados como experiências de sucesso, mas que provavelmente não iria se repetir na realidade brasileira.

 

Explorando melhor esse argumento acerca do sucesso de outras nações é dito o seguinte: “A razão é simples. Aquelas e outras tantas maravilhas citadas, particularmente em relação aos chins da Califórnia e Austrália, são devidas não ao misero pária da Ásia, mas as instituições livres, aos hábitos e enérgica vitalidade daqueles países” [Correio Paulistano, 1870, p.01]. Essas palavras revelam uma visão de inferioridade em relação aos chins, pois o sucesso obtido na Austrália e Califórnia foi atribuído as condições dos próprios países e não aos esforços dos imigrantes. Essa afirmação é complementada com as seguintes palavras: “A civilização Americana, que já em boa parte influi sobre a Austrália, é um grande cadinho social aonde todos os metais derretem-se e confundem-se para construir o preciosíssimo bronze de que se forma o cidadão livre, altivo e empreendedor da grande confederação” [Correio Paulistano, 1870, p.01]. Essas afirmações vão de encontro com as teorias raciais presentes no período, uma vez que essas ideias foram selecionadas e adaptadas de acordo com os interesses da elite intelectual brasileira. Nesse sentido, restrições à entrada de grupos considerados racialmente inferiores eram estabelecidas, dentre eles temos o caso dos chineses [Schwarcz, 1993].

 

No restante da matéria é concluído que as condições do país são mais importantes que o imigrante, pois: “Muito pouco importa a países tais que seu material de população venha da Irlanda, da Alemanha, da Itália, da Rússia ou das Costas do Hindustão. A refinação da matéria prima é imediata e enérgica; Chin ou alemão, o imigrante que pisa o solo da grande república sente-se arrebatado pela mesma corrente, transformado pela mesma força e de tal arte identificado em curto prazo a grande colmeia à que associam-se  [Correio Paulistano, 1870, p.01]”. Assim, de acordo com a fonte a importação de chineses dentro das condições do Brasil de nada iria valer, pois: “O que temos como condições orgânicas de nosso viver social, combinado com o que é peculiar à natureza das raças asiáticas, trará resultado oposto ao que visamos. O chin entre nós continuará a ser chin e mais nada. Meio escravo, meio máquina, que utilidade colheremos de tais operários?” [Correio Paulistano, 1870, p.01]. Desse modo, “Um só resultado, parece-nos: o retemperamento dos nossos hábitos de indolência e passividade pelos vícios ainda maiores da misérrima depressão intelectual e moral daquela raça” [Correio Paulistano, 1870, p.01].

 

A partir disso, percebe-se que o caso da Austrália e de outras nações foram usados como uma forma de desmotivar a vinda de chineses para o Brasil, tendo em vista a falta de condições necessárias para o sucesso da imigração, ou seja, foi uma forma de reforçar ainda a ideia de inferioridade racial do povo da China. Esse debate vai de encontro com o conceito de raça, já que essa categoria consiste em um conceito historicamente construído, instável, que cumpre objetivos políticos/econômicos e que serve para classificar os diferentes tipos humanos dentro de uma hierarquia racial. A essa percepção de raça nasceu primeiramente com o contato com a América proporcionado pela expansão do mercantilismo, refletiu sobre o ser humano a partir do iluminismo e tomou um caráter científico a partir do século XIX [Almeida, 2019]. Assim, entende-se que segundo as teorias raciais o chinês não serve para o projeto racial embranquecer e civilizar o país.

 

Analisando a segunda matéria, o texto é datado do dia 30 de janeiro de 1870. Em linhas gerais o artigo apresenta uma resposta ao texto apresentado mais acima e reflete acerca do uso de trabalhadores chineses na construção de uma estrada de ferro e na produção agrícola do país. De acordo com a fonte “Mas a verdade é, que não é só na América que o chin faz maravilhas. Eles têm trabalhado na Austrália, Cuba, em Maurício, em Reunião; e todos estes países não só de instituições diferentes das americanas – como mesmo de raças diversas, tem tirado grande proveito da indústria e serviços desses homens” [Correio Paulistano, 1870, p.03]. Assim como na fonte anterior, o texto que está sendo analisado também faz uso das experiências de sucesso de outros países para fundamentar sua argumentação. Na perspectiva do autor, locais como Austrália, Cuba e Maurício não possuem instituições semelhantes, mas mesmo assim a imigração chinesa foi um sucesso.

 

A partir disso, eles conseguiram triplicar a produção de açúcar em Maurício, compensaram a abolição de escravatura em Reunião, competiram com os escravizados em Cuba e na América do Norte “[...] praticam eles o ato mias extraordinário de que fazem menção os anais de trabalho: Chegaram a colocar em um só dia 17 km de trilhos de ferro, vencendo por este feito os próprios Yankes - os reis do trabalho ” [Correio Paulistano, 1870, p.03].  Com isso, é afirmado que o sucesso da imigração chinesa não ocorre apenas na América e que os chineses não modificam os costumes de outros povos. Essa defesa em relação aos chineses aparentemente está voltada para interesses financeiros, pois nesse período até o Ministro Sinimbu apoiava a imigração chinesa devido às dificuldades na aquisição de europeus e os bons resultados obtidos [Czepula, 2016].

 

Essa perspectiva é reforçada com as seguintes declarações: Não se trata, nem pessoa alguma deseja mistura entre a nossa raça e a asiática. Nem nós a queremos, nem eles a quereriam. Nós o queremos exclusivamente como locadores de serviços; feito o serviço e pago o salário, retiram-se eles. Eis tudo. Que nos importe, pois, que seja um raça degenerada, se são bons trabalhadores e se merecem seu salário?” [Correio Paulistano, 1870, p.03]. Os chineses neste contexto eram entendidos como uma força de transição ou seja, serviriam de substitutos até que o Brasil estivesse preparado para receber os europeus [Czepula, 2016]. Desse modo, vemos mais uma vez o conceito de raça surgir, já que o imigrante chinês era pensado como algo temporário, servindo apenas para alimentar as necessidades de braços dentro daquela conjuntura. Isso provavelmente está relacionado a hierarquização dos chineses como uma raça inferior devido ao seu potencial degenerador, seus vícios e descrença no catolicismo [Czepula, 2016].

 

Logo, nota-se que em ambas as notícias os exemplos de adoção dos imigrantes chineses em outros países serviram tanto como um argumento de defesa como de ataque. Os casos geralmente apresentavam a realidade de localidades como Cuba, Estados Unidos e Austrália como uma maneira de tornar a importação chinesa mais atrativa ou com menos credibilidade. Entretanto, ambas concordam que o povo da China não serve como um trabalhador fixo, mas apenas como uma transição.

 

Considerações finais

O Brasil do século XIX é um momento marcado pelo declínio da escravidão, pelos debates imigratórios e pela chegada das teorias raciais no país. Diante desse cenário, notamos que os dois artigos do jornal Correio Paulistano, fazem uso das experiências de outras nações como argumento para atacar ou defender a imigração chinesa. Contudo, mesmo ambas as matérias possuindo posições distintas acerca do mesmo assunto elas convergem para o perfil conservador do Correio Paulistano, uma vez que a importação dos filhos da China era interpretada como uma segunda opção.

 

Referências

Alisson Eric de Souza Simão Pereira é graduado em História e mestrando em ciências sociais e humanas [PPGCISH] pela universidade do Estado do Rio Grande do Norte [UERN].

 

ALMEIDA, Silvio. Racismos estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.

 

AZEVEDO, Célia Maria Marinho. Onda negra, medo branco: O negro no imaginário das elites século XIX. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1987.

 

 CZEPULA, Kamila Rosa. A questão dos trabalhadores “chins”: salvação ou degeneração do Brasil? (1860-1877). Anuario Colombiano de Historia Social y de la Cultura, v. 47, n. 1, p. 303–325, 2020.

 

CZEPULA, Kamila. “OS INDESEJÁVEIS CHINS”: A IMIGRAÇÃO CHINESA NAS PÁGINAS DO JORNAL GAZETA DE NOTÍCIAS (1879). In: ANPUH-SP XXIII encontro de História, história por quê e para quem? São Paulo: [s.n.], 2016, p. 01–13.

 

DEZEM, Rogério. Matizes do amarelo: a gênese dos discursos sobre os orientais no Brasil (1878-1908). São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2005.

 

LIMA, Silvio Cezar de Souza. Determinismo biológico e imigração chinesa em Nicolau Moreira (1870-1890). Dissertação, Fundação Oswaldo Cruz., Rio de Janeiro, 2005.

 

OLIVEIRA, Maysa Silva. Paralelo Brasil-Cuba: um estudo sobre a imigração chinesa 1840-1890. Dissertação, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, 2018.

 

PERES, Victor Hugo Luna. Os “Chins” nas sociedades tropicais de plantação: estudo das propostas de importação de trabalhadores chineses sob contrato e suas experiências de trabalho e vida no Brasil (1814-1878). Dissertação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2013.

 

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

 

SCHWARCZ, Lilia. Retrato branco e negro: Jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX. São Paulo: Companhia das letras, 1987.


Fontes

Correio Paulistano, 16/01/1870, p.01.

Correio Paulistano, 30/01/1870, p.03.

4 comentários:

  1. Oi Alisson, boa noite! Você poderia falar um pouco mais sobre a que se dedicaram os chineses que efetivamente vieram para o Brasil no decorrer do séclo XIX, apesar de todo esse ataque da prensa da época? Muito obrigada!
    Camila Cunha de Lacerda

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    1. Boa tarde, Camila! A imigração chinesa nunca chegou a ser uma imigração forte como foi a italiana, mas a primeira experiência que o Brasil teve com os chineses foi voltada para a produção de chá, então podemos dizer que o uso deles estava voltado para o setor agrícola.

      Alisson Eric de Souza Simão Pereira

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  2. No texto você menciona a imigração chinesa para outros países da América Latina, incluindo o Peru, assunto que eu tenho estudado um pouco mais. Você teria alguma recomendação bibliográfica sobre o tema? Muito obrigada!
    Camila Cunha de Lacerda

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    1. Olá, Camila. Eu acredito que a dissertação "Paralelo Brasil-Cuba: Um estudo sobre a imigração chinesa 1840-1890" de Maysa Silva Oliveira possa ser útil. No caso de artigos eu tenho duas sugestões, a primeira é o artigo "O uso da mão-de-obra chinesa e sua progressiva substituição no Peru das décadas de 1880 e 1890" e a segunda é" A experiência Coolie na América Latina (Cuba, Peru e México) e as possibilidades de uma história transnacional'.

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