A TAPEÇARIA DE SAMPUL: UMA ANÁLISE ICONOLÓGICA DE UM ARTEFATO DAS ROTAS DA SEDA, por Cristian de Silveira

 

A Tapeçaria de Sampul é um dos inúmeros artefatos têxteis encontrados ao longo do território de Xinjiang, no noroeste da China, que mantém um estado de conservação incrível, apesar de sua produção remontar cerca de dois milênios. Xinjiang é um território conhecido por seu clima árido, que permite a conservação prolongada de materiais orgânicos como têxteis, e que nesse sentido nos conferem com um vislumbre de como esse tipo de produção se dava até mesmo em períodos muito longínquos, como a Antiguidade. A Tapeçaria de Sampul é um desses exemplos, sendo um têxtil datado por volta de dois milênios atrás, durante o período do desenvolvimento das Antigas Rotas da Seda, que ligavam as civilizações orientais e ocidentais desse tempo.

A Tapeçaria de Sampul se apresenta como um exemplo dos contatos culturais constantes entre diferentes grupos e culturas, tais como os gregos, romanos, indianos, e os diversos grupos nomádicos iranianos presentes na Ásia Central. O presente trabalho busca, a partir da análise iconográfica e interpretação iconológica do presente artefato, discutir questões de sincretismos culturais, de transformações e ressignificações de símbolos em produções imagéticas, e, num aspecto mais geral, dos contatos entre as diferentes culturas que possuem características evidenciadas nesse artefato.

 

Este estudo, portanto, visa lançar luz sobre a Tapeçaria de Sampul como um artefato cultural único, capaz de revelar aspectos significativos sobre as interações culturais na Ásia Central e Meridional durante o período abordado, expandindo o entendimento das trocas e ressignificações culturais ocorridas nesse contexto. Essa investigação contribui para uma perspectiva abrangente e valoriza o protagonismo das populações locais, ressaltando a importância de considerar as produções artísticas dentro do contexto cultural diversificado da região histórica da Ásia Central.

 

Datação, análise iconográfica e interpretação iconológica

A tapeçaria de Sampul é datada de 206 A.E.C. até 220 E.C.. Ela foi encontrada em uma escavação em 1984, na denominada Tumba 1, em Sampul, Lop. Essa tapeçaria pertence ao Museu da Região Autônoma Uigur de Xinjiang (NATIONAL MUSEUM OF CHINESE HISTORY, 2002, p. 130).

 



Figuras 1 e 2: Tapeçaria de Sampul completa. Fonte: YATSENKO, Sergey. Yuezhi on Bactrian Embroidery from Textiles Found at Noyon Uul, Mongolia. The Silk Road 10. 2012. p. 46.

 Tapeçaria de Sampul. Fonte: National Museum of Chinese History - Ancient Relics Administration Bureau of Xinjiang Uygur Autonomous Region - Mountain Tianshan. Ancient Roads: The Meeting of East and West - The Extraordinary Cultural Relics from the Silk Road in Xinjiang. 2002. p. 130.

 

Um centauro tocando um trompete, cercado por doze flores que se alinham em um formato losangular ao seu redor. Abaixo, é representada a figura de um guerreiro, afirmação evidenciada pela lança em sua posse. As suas vestimentas, bem como seu estilo de cabelo, são semelhantes às dos Grande Yuezhi em seu período de controle da Báctria, que antecedeu a formação do Império Kushan. A sua condição imberbe pode ser uma forma de transparecer o guerreiro como um jovem, porém vale ressaltar que em figuras similares o uso de barbas é quase inexistente, com a maioria das figuras portando bigodes em seu lugar. A composição artística do guerreiro lembra vagamente exemplares romanos em mosaicos dos últimos séculos A.E.C., considerando, por exemplo, o uso do sombreamento do rosto para trazer uma noção de profundidade para a sua figura, bem como a expressão que o guerreiro carrega, como apontado por autores como Robert A. Jones (figs. 14-15; JONES, 2009, p. 27; HURWIT, 2007, p. 48; YATSENKO, 2012, p. 41 e 45-46; WATT, James C.Y.; JIAYAO, An; HOWARD, Angela F.; et al, 2004, p. 194-195)

Na perspectiva de Jäger, a representação do centauro na Tapeçaria de Sampul, devido ao seu uso de um trompete, o liga com uma tradição mais vinculada ao culto dionisíaco, onde representações de centauros tomam uma forma que se desloca mais de suas imagens que reforçam um aspecto bélico ou agressivo, porém mesmo assim mantendo claro o seu “apreço por vinho, embriaguez e mulheres [...]” (JÄGER, 2017, p. 109), que são características inatas dessas figuras (JÄGER, 2017, p. 108-109).

 

Representações semelhantes a do centauro na Tapeçaria de Sampul nas regiões de tradição helenística ao longo dos territórios da Ásia Central e Meridional também teriam fornecido as bases para o uso dessas representações nas artes budistas de Gandhara, que adaptaram o uso dessas produções imagéticas dos centauros ao contexto cultural ao qual o budismo fazia parte, o da cultura indiana (JÄGER, 2017, p. 111-112).

 

“Essa conexão nos ajuda a entender o interesse que os Indianos mostraram no centauro Grego, já que eles podiam o conectar ao seu próprio conceito de seres divinos chamados gandharvas. Esses gandharvas têm o papel de músicos celestiais no Hinduísmo e no Budismo e, da mesma forma que os centauros, também compartilham um certo interesse em vinho, mulheres e em festividades. Mesmo que na maioria das vezes os gandharvas Indianos sejam vistos como sendo metade pássaro e metade humanos, alguns também são vistos como metade humanos e metade cavalos [...] De fato, nenhuma das imagens de Gandhara de centauros as quais nós pudemos localizar são bélicas e bestiais, sugerindo que sob os Kushans e a influência do Budismo, eles uniformemente adquiriram um novo papel. A transição dessa percepção começou sob os Gregos, quando os centauros começaram a ser associados com o culto de Dionísio. A partir daí foi somente um pequeno passo para encontrá-los pacificados pelo Buda em Gandhara, onde se tornaram seguidores piedosos do Abençoado.” (JÄGER, 2017, p. 112-113, tradução nossa)

 

Dessa forma, a arte do centauro na Tapeçaria de Sampul, possivelmente ligada às representações de centauros no contexto do culto dionisíaco, pode ser vista como uma peça que evidencia essa construção da imagem dos centauros ao longo das regiões da Ásia Central e Meridional, que eventualmente resultou em sua incorporação e transformação dentro da arte budista de Gandhara, que se desenvolveu durante o primeiro século E.C..

 

Jones argumenta a favor da identificação da Tapeçaria de Sampul como um exemplo de uma produção oriental, e consequentemente mais desconexa às produções helenísticas e romanas do mundo mediterrânico, pelo uso do trompete pela figura do centauro, o que em sua visão seria muito raro em representações vindas da região do Mediterrâneo, onde seria reforçada uma caracterização mais “bárbara” dos centauros. Como já observado, porém, as representações de centauros, mesmo nas produções ocidentais, se diversificam muito além da simples visão dos centauros agressivos e violentos, com eles também possivelmente estando vinculados a produções artísticas referentes ao culto dionisíaco, ou também em representações que refletem uma percepção mais pacífica e sábia vinda dessas figuras mitológicas, como é o caso de Quíron, centauro que “se tornou o mentor de heróis como Héracles, Aquiles, Esculápio e Jasão” (JÄGER, 2017, p. 109, tradução nossa). A argumentação formada por Jones, dessa forma, não necessariamente confere um grau de certeza definitivo sobre a origem geográfica da produção dessa tapeçaria. Jones, porém, salienta a similaridade entre a forma como o centauro na Tapeçaria de Sampul se posiciona com as representações de centauros feitas na região da Grécia durante o período helenístico (JONES, 2009, p. 25; JÄGER, 2017, p. 108-110).

 

Como já ressaltado durante a análise iconográfica, a representação do guerreiro, principalmente por suas vestimentas e estilo de cabelo, provavelmente procura retratar um guerreiro dos Grande Yuezhi, entre o período de dominação sobre o território da Báctria pelos Grande Yuezhi, até a formação do Império Kushan, que compreenderia o período de aproximadamente 130 A.E.C. até 50 E.C.. A representação do guerreiro também se assemelha às representações feitas em mosaicos romanos (fig.3) próximos temporalmente a esse período dos Grande Yuezhi, em questão do posicionamento e expressão tomadas pelas figuras. Outras produções que valem ser ressaltadas são os retratos nas chamadas de Múmias de Fayum (fig.4), que possuem um estilo que se assemelha tanto com os mosaicos romanos quanto com o próprio guerreiro presente na tapeçaria, quando tratamos especificamente do uso do sombreamento na representação da figura, e novamente também do posicionamento em que todas são postas, com o guerreiro na Tapeçaria de Sampul sendo diferenciado das outras duas produções pelo seu olhar voltado para a posição direita, enquanto as outras duas olham diretamente para a frente, como se olhassem diretamente a quem observa suas figuras. A razão do guerreiro na Tapeçaria de Sampul deslocar seu olhar para o lado direito pode ser pela configuração da tapeçaria por inteiro, devido as figuras do centauro e do guerreiro formarem somente um recorte do que seria a produção completa da tapeçaria, que poderia possivelmente se estender e compor um nível mais diverso de figuras, o qual a figura do guerreiro poderia interagir de alguma forma, sendo esse recorte que conservou essas duas figuras o lado esquerdo da tapeçaria. Watt até mesmo propõe que a parte direita desta tapeçaria, da qual não existem resquícios descobertos, poderia formar a porção principal do que seria a Tapeçaria de Sampul (JONES, 2009, p. 27; WEITZMANN, 1979, p. 288; WATT, James C.Y.; JIAYAO, An; HOWARD, Angela F.; et al, 2004, p. 194-195).

 




Figuras 3 e 4: Mosaico de uma mulher. Pompéia. Final do primeiro século A.E.C.. Fonte: LING, Roger. Ancient Mosaics. Princeton: Princeton University Press. 1998. p. 124.

Retrato de uma mulher. Fayyum, Egito. Quarto século E.C.. Fonte: WEITZMANN, Kurt. Age of Spirituality: Late Antique and Early Christian Art, Third to Seventh Century. The Metropolitan Museum of Art. New York. 1979. p. 288

 

A falta de um bigode no guerreiro, porém, sendo esse um elemento quase sempre presente nas figuras que representam os Grande Yuezhi nas análises de Yatsenko, pode ser visto como um elemento de diferenciação do guerreiro com as demais figuras dentro da arte produzida por ou para os Grande Yuezhi. Essa caracterização pode significar a juventude do guerreiro, como visto nas artes gregas, ou possivelmente para diferenciar o guerreiro de um dos membros dos Grande Yuezhi. Hansen e Sheng elaboram sobre uma possível identificação Parta da figura, devido a caracterização de uma adaga em sua cintura, que infelizmente não é discernível entre as imagens encontradas da Tapeçaria de Sampul para o presente trabalho, e que se alinharia ao estilo de adagas produzido dentro da região da Partia. No mesmo sentido, também existem abordagens diferenciadas sobre as origens das decorações florais vistas ao longo da túnica usada pelo guerreiro. Hansen, Yatsenko e Watt detêm uma visão parecida, das decorações serem derivadas de produções da Ásia Central, ou também similares com artefatos arqueológicos encontrados pela região de Xinjiang, o que de qualquer forma marcaria uma distinção clara das decorações helenísticas e romanas. Jones possui a visão de que a decoração tem uma origem persa, mas que foi se proliferando tanto para regiões mais orientais, como a Ásia Central, quanto ocidentais, como a região Mediterrânica, através de contatos formados entre essas regiões no período helenístico (HANSEN, 2012, p. 202 e PL.13; JONES, 2009, p. 26-27; SHENG, 2010, p. 38; WATT, James C.Y.; JIAYAO, An; HOWARD, Angela F.; et al, 2004, p. 194-195; YATSENKO, 2012, p. 41-46).

 

Dessa forma, os aspectos mais variados dentro da Tapeçaria de Sampul ainda possuem perspectivas bem diferenciadas a respeito de onde e como elas foram produzidas. Alguns fatores, ainda assim, podem ser ressaltados sobre a tapeçaria. Mesmo considerando fatores como que exista uma sutil diferença entre o uso de pêlos faciais entre o guerreiro da tapeçaria com outro exemplos dos Grande Yuezhi na região, e que a representação do centauro tocando trompete não fosse tão deslocada estilisticamente das representações mediterrânicas, ainda sim podemos dizer que provavelmente a Tapeçaria de Sampul se trata de uma produção local da região da Báctria ou arredores, nessa temporalidade que antecedeu o período imperial dos Kushan. Isso principalmente se dá pelas considerações formadas sobre o vestuário do guerreiro feitas por Yatsenko. A similaridade entre os vestuários e estilos de cabelo evidenciados como pertencentes aos Grande Yuezhi no período pré-imperial, mesmo com as pequenas diferenciações abordadas, como a questão dos pêlos faciais quando comparamos o guerreiro da tapeçaria com outras representações desse grupo, forma um argumento muito forte que descredibiliza a perspectiva dessa tapeçaria como uma produção helenística ou romana vinda do mediterrâneo até a região de Xinjiang, e ao mesmo tempo reforça o argumento de que se trata de uma produção originada na Ásia Central, e que provavelmente representa um guerreiro dos Grande Yuezhi.

Outro fator a se ressaltar é a semelhança existente entre a Tapeçaria de Sampul com outros artefatos encontrados ao longo do território de Xinjiang, tais como a Tapeçaria do Hermes com Caduceu e o Afresco de Figuras Aladas, ambos encontrados pelo explorador Aurel Stein nas primeiras décadas do século XX. Para situar esses objetos, faremos uma breve análise de ambos, considerando a sua descoberta e contexto cultural de produção.

Figura 5: Hermes com caduceu. Fonte: National and Art Museum in New Delhi, India. (Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Male_face_with_a_caduceus_-_Google_Art_Project.jpg>. Acessado em: 20/04/2022)

 

A tapeçaria de Hermes é datada de por volta do terceiro século E.C.. A tapeçaria foi descoberta por Aurel Stein durante suas expedições ao longo da província de Xinjiang, nas primeiras décadas do século XX, em Lou-lan, em Xinjiang. Ela pertence ao Museu Nacional em New Delhi, na Índia (ROWLAND, 1974, p. 44).

 

Considerando a limitação do material analisado, que forma apenas um fragmento do artefato original, pode-se perceber o objeto ao lado da figura como um caduceu, um bastão vinculado ao deus Hermes, por sua “forma de vara terminando em um círculo e uma crescente” (HALL, 1995, p. 60). Dessa mesma forma, representações de Hermes o representam, pelo menos ocasionalmente, como imberbe. Assim sendo, a figura representada nessa tapeçaria pode ser possivelmente Hermes, o mensageiro dos deuses olimpianos (HALL, 1995, p. 60; MARCH, 2014, 243-245).

 

Aurel Stein (1928) propôs uma produção local desse têxtil, devido a sua similaridade com outras produções encontradas no mesmo local, como o afresco budista também citado (fig.6). Uma produção local realmente é uma possibilidade, ainda mais se também considerarmos o argumento do uso de representações de divindades gregas para o culto de divindades locais nas regiões de influências helenísticas na Ásia Central. Tal ponto daria um grau de veracidade mais alto para uma produção local do que a de um culto à Hermes dentro da região de Xinjiang durante o período de produção estipulado ao artefato. Morris, porém, salienta que apesar das representações de deuses gregos para o culto de outras divindades fosse muito utilizada para o culto de outros deuses, como membros do panteão dos Kushans, dentro do Império Kushan ainda existia uma consciência sobre essas divindades gregas “originais”, o que significa que existe uma chance do artefato ser uma produção local em Xinjiang ou em um território próximo, como ao longo do Império Kushan, e mesmo assim realmente representar um culto ao deus Hermes (STEIN, 1928, p. 241; JONES, 2009, p. 27 e 30; MORRIS, 2021, p. 587).

 

Figura 6: Figuras aladas. Fonte: STEIN, Aurel. Ruins of Desert Cathay: Personal Narrative of Explorations in Central Asia and Westernmost China. Vol.1. London: Macmillan. 1912. p. 461.

 

Se desconsiderarmos as possibilidades já analisadas, podemos pensar no artefato como uma tapeçaria importada do Império Romano, que se deslocou através das Rotas da Seda até a região onde ela foi encontrada em Xinjiang, que também forma um argumento interessante a ser abordado na medida que o objeto por si só não possui características que o liguem ao contexto cultural da região da Ásia Central ou de Xinjiang da mesma forma que a Tapeçaria de Sampul possuía, e que o desloquem de qualquer forma de uma produção vinda dos territórios do Império Romano.

 

Assim sendo, as perspectivas tomadas a respeito desse artefato mantêm considerações muito abrangentes, devido ao fragmento remanescente do que seria o artefato completo não conseguir nos fornecer dados que nos ajudariam a adentrar mais no que as suas imagens procuravam transmitir e por quem elas foram produzidas. A única consideração de nosso interesse que podemos tomar tranquilamente é a de que a divindade representada com certeza foi baseada em moldes helenísticos ou romanos para o deus Hermes.

Voltando ao argumento central, as similaridades estilísticas dos mosaicos ou pinturas romanas expostas com o guerreiro na Tapeçaria de Sampul podem ser abordadas segundo as perspectivas conjuntas de Morris e Cribb. Assim sendo, podemos considerar um contato de grupos locais da Ásia Central com as produções artísticas romanas, sob o contexto de uma tradição helenística nessa região, que via nas produções romanas temporalmente concomitantes a sua realidade um estilo compatível ao seu legado helenístico local, que poderia dessa forma ser adaptado a sua realidade cultural, mesmo que esta já fosse extremamente diversa depois da fragmentação dos reinos gregos na Ásia Central e Meridional. Essa diversidade cultural também pode se vincular ao conceito formado por Mairs, de uma identidade grega na Ásia Central que afirmava a sua identidade étnica mesmo com um grau de flexibilização dessa identidade com as práticas locais existentes, devido a essa realidade multicultural na qual a identidade grega tentava se inserir. A afirmação da identidade grega pelas populações locais não era vista como uma contradição, mesmo considerando essa diferenciação crescente que se estabelecia com o passar dos séculos entre os requisitos de manutenção para a identidade grega dentro da região da Ásia Central, com os requisitos mantidos dentro do próprio mundo grego. A flexibilização que se tornou quase inerente à realidade cultural grega na Ásia Central pode ter possibilitado as práticas de produções artísticas nessa região, que uniam essas tradições diversas que podem ser observadas na Tapeçaria de Sampul, em especial entre elas as tradições helenísticas e romanas.

 

Considerações finais

A análise iconográfica e a interpretação iconológica nos conduzem a uma compreensão mais profunda dos elementos representados na Tapeçaria de Sampul. O centauro tocando um trompete pode estar vinculado ao culto dionisíaco, sugerindo uma tradição mais relacionada ao vinho e às festividades. Essa figura também desempenhou um papel importante nas artes budistas na Ásia Central e Meridional, onde se adaptou ao contexto cultural da cultura indiana.

 

Por sua vez, a representação do guerreiro na tapeçaria, com vestimentas e estilo de cabelo similares aos dos Grande Yuezhi, sugere que a produção é local, possivelmente relacionada à região da Báctria ou seus arredores, antes da formação do Império Kushan, na metade do primeiro século E.C.. As similaridades estilísticas com mosaicos e pinturas romanas podem indicar contato entre grupos locais da Ásia Central e as produções artísticas romanas sob o contexto helenístico regional.

 

Embora existam diversas perspectivas sobre a origem e significado dos elementos da tapeçaria, alguns fatores apontam para sua provável produção na Ásia Central, associada aos Grande Yuezhi, em vez de uma origem helenística ou romana. Essa diversidade cultural na região, marcada por uma identidade grega flexível e uma tradição cultural de produções imagéticas locais também muito forte, pode ter permitido a adaptação de influências externas à sua realidade local.

Apesar das variadas interpretações, a Tapeçaria de Sampul permanece como uma importante peça arqueológica e artística que nos conecta ao passado e à rica história das civilizações da Ásia Central. Sua complexidade iconográfica e seus elementos distintos proporcionam uma visão fascinante das conexões culturais existentes no seu tempo, ainda suscitando debates e estudos sobre a identidade e as influências artísticas na região.

 

Referências

Cristian de Silveira é Licenciado e Bacharel em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e atualmente é mestrando em História pela Pós-graduação da mesma instituição. Contato: cristiandesilveira@hotmail.com

 

HALL, James. Illustrated Dictionary Of Symbols In Eastern And Western Art. 1st ed. Westview Press, A Member of the Perseus Books Group. Colorado. 1995.

 

HANSEN, Valerie. The Silk Road: A New History. Oxford University Press. 2012.

 

HURWIT, Jeffrey M. The Problem with Dexileos: Heroic and Other Nudities in Greek Art. American Journal of Archaeology, Vol. 111, No. 1, p. 35-60. 2007.

 

JÄGER, Ulf. Tamed by Religion: Centaurs in Gandhara A unique sculpted necklace of a Gandharan schist Bodhisattva Maitreya in the Asian Art Museum, San Francisco. The Silk Road 15. The Silkroad Foundation. 2017. p. 107–115.

 

JONES, Robert A. Centaurs on the Silk Road: Recent Discoveries of Hellenistic Textiles in Western China. The Silk Road 6/2. The Silk Road Foundation. 2009. p. 23-32.

 

LING, Roger. Ancient Mosaics. Princeton: Princeton University Press. 1998.

 

MARCH, Jennifer R. Dictionary of Classical Mythology. 2nd ed. Oxbow Books, Oxford. 2014.

 

MORRIS, Lauren. Roman Objects in the Begram Hoard and the Memory of Greek Rule in Kushan Central Asia. In MAIRS, Rachel. The Graeco-Bactrian and Indo-Greek world. Routledge, New York. 2021, p. 580-594.

 

NATIONAL MUSEUM OF CHINESE HISTORY - Ancient Relics Administration Bureau of Xinjiang Uygur Autonomous Region - Mountain Tianshan. Ancient Roads: The Meeting of East and West - The Extraordinary Cultural Relics from the Silk Road in Xinjiang. 2002.

 

ROWLAND, Benjamin. The Art of Central Asia. Art of the World. Crown Publishers, Inc. New York. 1974.

 

SHENG, Angela. Textiles from the Silk Road. Expedition Magazine 52.3. Expedition Magazine. Penn Museum, 2010. p. 33-43. (Disponível em: <http://www.penn.museum/sites/expedition/?p=12972>. Acesso em: 10 de Abril de 2022).

 

STEIN, Aurel. Innermost Asia: Detailed Report of Explorations in Central Asia, Kan-su and Eastern Iran, Carried out and Described under the Orders of H.M. Indian Government. Vol.1&3. Clarendon Press. Oxford. 1928.

 

STEIN, Aurel. Ruins of Desert Cathay: Personal Narrative of Explorations in Central Asia and Westernmost China. Vol.1. Macmillan. London. 1912.

 

WATT, James C.Y.; JIAYAO, An; HOWARD, Angela F.; et al. China: Dawn of a Golden Age, 200-750 AD. Yale University Press. Catalog of an exhibition held at the Metropolitan Museum of Art, New York, Oct.12, 2004 – Jan.23, 2005. 2004.

 

WEITZMANN, Kurt. Age of Spirituality: Late Antique and Early Christian Art, Third to Seventh Century. The Metropolitan Museum of Art. New York. 1979.

 

YATSENKO, Sergey. Yuezhi on Bactrian Embroidery from Textiles Found at Noyon Uul, Mongolia. The Silk Road 10. The Silk Road House. 2012. p. 39-48



3 comentários:

  1. Parabéns pelo texto, Cristian Silveira. É perceptível que seu trabalho segue e pode contribuir com a perspectiva da História Global, especialmente, considerando essas conexões entre Ásia central e Mediterrâneo. Eu não conhecia essa tapeçaria e nem as figuras de Hermes nesse contexto asiático. A minha reflexão, todavia, não vai ser direcionada somente à iconografia da tapeçaria, mas sim relacionada à produção da mesma e aos aspectos sociais que a circulam. Você concluiu afirmando que a tapeçaria de Sampul, provavelmente, foi produzida na Ásia central, mas eu gostaria de saber como esse tipo de produto era criado. Quem são esses artesãos asiáticos? São homens? Mulheres? Esses artigos eram consumidos por uma elite? E, por fim, as cores utilizadas na tapeçaria fazem parte de um estilo iconográfico particular ou comum à essas outras imagens?
    Alaide Matias Ribeiro

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    1. Boa noite Alaíde!
      Obrigado pela pergunta.
      Infelizmente não encontrei, em nenhuma das referências da minha pesquisa, respostas definitivas para as perguntas que você fez. A produção de têxteis como a Tapeçaria de Sampul e a Tapeçaria de Hermes eram produções feitas tradicionalmente por mulheres, porém não existem fontes que corroborem diretamente para uma produção feminina destas peças específicas sendo analisadas. As representações presentes nas tapeçarias nos levam a crer que eram artigos consumidos por uma elite, principalmente a Tapeçaria de Sampul, que por sua temática militar, buscava refletir glória para os governantes ou líderes do contexto de produção da peça. As cores utilizadas na Tapeçaria de Sampul, por fim, refletem uma similaridade com outras produções que procuram representar a elite dos Grande Yuezhi, grupo nomádico que se assentou na Ásia Central e formou posteriormente o Império Kushan. Os membros homens da elite dos Grande Yuezhi quase sempre eram representados com trajes vermelhos, o que refletiria uma representação comum dentro desse período. As cores presentes na parte superior, porém, onde estão presentes o centauro e a dúzia de flores que o cercam, podem refletir um estilo iconográfico mais particular. O fundo em azul escuro pode procurar representar uma ligação com representações celestes, porém isso se apresenta como uma entre diversas outras possibilidades. Espero ter esclarecido suas dúvidas o tanto quanto me foi possível, e fico à disposição para mais esclarecimentos.

      Cristian de Silveira

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    2. Elucidou sim, Cristian. Considero que são reflexões interessantes, especialmente a questão da cor. Obrigada por responder.
      Alaide Matias Ribeiro

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