A SERPENTE ORIENTAL: HISTÓRIA, CULTURA E SIMBOLISMO NA DANÇA DO VENTRE, por Tanya Mayara Kruger


 Uma breve história sobre a origem da dança do ventre

O termo “Dança do Ventre” origina-se a partir do francês “danse du ventre”, nomenclatura dado pelos europeus após os primeiros contatos com as formas de dança observadas, sobretudo, no Norte da África e no Oriente durante os processos imperialista.

A “dança do ventre” ou também denominada “dança oriental” é uma dança milenar praticada no Norte Africano e no Oriente Médio Não se sabe ao certo onde surgiu, sendo a  hipótese mais aceita entre os historiadores é que ela tenha emergido  no Antigo Egito, como uma dança ritualística, realizada em templos,  para homenagear as deusas. Contudo, vale ressaltar que alguns estudiosos acreditam que a dança do ventre tenha surgido durante a pré-história.

Desse a Antiguidade, é possível através de esculturas, produzidas em argila, encontrar características presentes na dança do ventre torço curvado para frente e braços erguidos com as mãos viradas para dentro. Diante disso, acerca das origens históricas da dança do ventre,  segundo o estudioso Relke (2011, p. 397): “Com o avanço da teoria e técnicas arqueológicas, egiptólogos, abandonaram esta interpretação como simplista e sem evidências, com exceção de um grupo de feministas que reviveu a teoria da Deusa Mãe, reinvestindo estatuetas pré-históricas femininas com status divino”

Segundo Assunção (2021), é extremamente complexo datar e afirmar onde tenha emergido a dança, haja vista que também há trabalhos históricos que alegam que essa dança tenha surgido no Oriente Médio, em regiões como a atual Turquia e Síria. De acordo com a autora, Assunção (2021, p.38): “Essa multiculturalidade sincrônica e diacrônica dificulta pensar na transmissão de manifestações culturais – como a dança – que tenham permanecido inalteradas ao longo de todo esse tempo. Soma-se a isso a dificuldade em estudar “dança” historicamente por conta da acessibilidade às fontes.”           

Desse modo, movimentos ondulatórios, premissa base da dança do ventre e movimentos de quadril, são encontrados em pinturas na atual Síria, Turquia, Líbano, dentre outros países, sendo complexo datar e demarcar o local de sua origem.

 De acordo com Wendy Buonaventura (1989), autora do livro “Serpent of the Nile: Women & Dance in the Arab”, encontra-se vestígios de uma dança pélvica  que ainda pode ser encontrada em algumas regiões do Oriente Médio e do norte da África, e que era usada por mulheres desde a antiguidade.  A autora (1989, p.32) afirma que:” É quase certo que essa dança tinha conexões com ritos de fertilidade e também com alguns movimentos feitos durante o parto, para ajudar no nascimento da criança.”

Boaventura (1989)  afirma que dança do ventre é uma dança de caráter feminino, na qual seus movimentos estão muito ligados a região pélvica, quadris e barriga. Contudo, para Assunção (2021) é importante salientar que a prática masculina foi sensivelmente apagada e silenciada em detrimento das representações das danças femininas no Egito Antigo,  sobretudo pelo olhar ocidental, patriarcal, imperial, heteronormativo masculino.

O discurso heteronormativo torna a discussão sobre a dança do ventre ainda mis complexa, para Sellers-Young ( 2014, p.136) o que causou a ruptura das tradições locais e levou à criação de uma comunidade global ampliada de dança do ventre no século XX, durante um período em que um extenso diálogo sobre a formação da identidade feminina e masculina estava em curso na Europa Ocidental e na América do Norte.        

Além disso, uma outra  consequência é que homens até hoje são proibidos de atuar profissionalmente como dançarinos de dança do ventre, sendo liberados para atuar nessa profissão apenas como instrutores (ASSUNÇÃO, 2021).

A evolução histórica da dança do ventre

Assunção (2021) chama a atenção para a distinção existente entre  ‘awalim’ e ‘ghawazi’. As primeiras, eram um grupo de mulheres eruditas que cantavam e letras improvisadas para ‘mawal’ ou baladas, um feito pelo qual eram altamente valorizadas. Já   as ‘ghawazi’ dançavam em espaços públicos e muitas vezes também, por uma questão financeira, acabavam se prostituiam.

Assim, mesmo diante da complexidade do seu surgimento, acreditasse que a expansão da dança do ventre se deu devido as diversas invasões árabes e também aos inúmeros processos de colonização.

De acordo com Assunção (2021), quando o Egito foi invadido pelos europeus no século XIX, o governo de Muhammad ‘Ali Pasha lançou uma lei que impedia apresentações públicas de dança no Cairo e em Alexandria. Desse modo, a dança milenar foi estigmatizada. Acerca da dominação no Egito segundo o estudioso Abel- Malek (2010, 402): “a imitação do Ocidente era vista, com alegria, como uma operação de superfície – um espelho do ser possível, já que não podia se tratar de um possível atualizável: a vestimenta; o urbanismo; a música sob a forma de ópera, mas também de composições militares; o teatro, sobretudo; esboços de romance.”

Para Malek (2010), o mundo ocidental era o modelo a ser seguido, sua cultura, sua arte era o paradigma historiográfico  a ser seguido. Para o autor (2010, p.402): “a expressam os ditados, os provérbios e os costumes, era impregnada por um sentimento de usurpação.” De acordo com a autora, é a partir do imperialismo europeu que surge a raqs sharqi, que significa “dança oriental”, para assim, se distinguir das danças ocidentais. A raqs sharqi era praticada em casa de entretenimento no Egito no século XIX.

A evolução da dança do ventre está nitidamente ligado o colonialismo europeu, que assim como todo o processo de colonização, há uma transculturação, na qual a cultura do dominar, tende a se sobressair ou mesmo ser imposta ao dominado. No Egito e nos demais países do Oriente Médio e do Norte Africano não fogem a regra.

Logo, há uma mudança na dança em seu caráter simbólico e também cultural. Assunção (2021), alega que foi nesse momento que a dança passa a assumir um caráter de certa forma “comercial”. Antes, como vimos, a dança era uma forma ritualística e era dançada só em momentos especiais e festivos. Contudo, nesse período, a dança assume um caráter comercial e passa a ser performada como uma atração artística.

Como vimos, vale ressaltar que a proibição da dança do ventre em espaços públicos nos séculos XVIII e XIX contribuiu para que houvesse uma transformação  dentre do próprio contexto em que a dança estava inserida  e também dentro da sua simbologia

Vale ressaltar que, a dança do ventre ainda é um tema polêmico em termos históricos, tendo em vista que muitas fontes que temos a respeito da dança do ventre são de viajantes ocidentais que retrataram através do seu olhar cultural e identitário, os processos orientais.

Um dos elementos orientais que mais causavam interesses dos europeus era o harém. Vale frisar que, o harém nada mais é do que o espaço reservado à vida íntima, familiar, seja  num  palácio  ou  numa  casa  comum, um ambiente familiar na qual outras pessoas não podiam entrar Assunção (2021). Entretanto, de acordo com Fernanda de Camargo-Moro (2012), o harén será visto pelo europeu como um lugar de sexualidade.

É dentro desse contexto que se é propagado de forma errônea a imagem da Odalisca. O termo odalisca vem do turco uadahlik, que significa criada de quarto. Sobre as Odalisca, Dib (2018) que dentro da hierarquia que existia nos palácios, quem  estava no patamar  mais  baixo,  eram  mulheres  escravas  compradas  em  mercados,  ou  adquiridas  em  guerras,  vendidas muitas vezes por sua própria família ou raptadas, que posteriormente eram levadas  para  o  palácio  para  serem  criadas. 

 Ainda  segundo Dib (2018, p04), sobre as odaliscas, ele afirma que elas chegam muito novas ao harém e logo, recebem um treinamento. “ Este treinamento incluía modos, etiqueta, leitura do Alcorão, bordado, tecelagem, poesia, música, dança. Ao contrário daquelas retratadas reclinadas à espera de alguém, sabe-se que as odaliscas tinham suas ocupações e também suas ambições.”

Desse modo, a autora defende que a imagem que foi propagada a certa da figura da Odalisca, nada mais é do que uma visão eurocêntrica distorcida. De acordo com Metin Nad (1989,p.93), historiador da dança turco, que resume de forma precisa os desafios e perspectivas de se estudar a dança oriental a partir de fontes ocidentais, segundo o autor:Fontes turcas oferecem pouca informação em relação a dançarinos e dançarinas. Isto porque a dança era considerada, por muitos escritores do passado, como um esporte impróprio e imoral, especialmente quando praticado por mulheres e garotos profissionais.

Ainda de acordo com o autor, Ned (1989, p.93):”por outro lado, viajantes estrangeiros deram muita atenção a este tópico em seus livros e, apesar de enfatizar a moralidade frouxa e o caráter obsceno da dança, eles não podiam esconder de suas descrições seu interesse, que lhes tirava o fôlego, em relação a estas performances.”   

Devido a uma visão eurocêntrica e propagada de forma errônea, muitas vezes, até hoje, a dança do ventre é associada a figura da odalisca, sempre retrata de forma sexualizada e seduzente. Sobre essa distorção da representação da dança do ventre Assunção (2021, p.34) alega: “essas representações, portanto, associam-se diretamente com a ideia fantasiosa que os europeus construíram sobre o que eles mesmos denominaram “dança do ventre”, a partir do contato que com as apresentações de três grupos associados ao entretenimento...”

Dessa forma,  o Oriente nasce a partir de uma visão eurocêntrica, na qual o “orientalismo” estaria associado ao “outro”, a algo exótico que diverge da cultura ocidental. De acordo com Assunção (2021, p.80), a dança do ventre surge com o imperialismo inglês e nesse contexto eurocentrista. a apresentação de dançarinas e dançarinos profissionais ocorria em ocasiões especiais: em festivais de rua, celebrações de casamentos, de batizados ou uma festa em honra a algum visitante especial no caso de famílias abastadas.”

Assunção (2021),  afirma que no século XX, principalmente através da TV, a dança do ventre terá uma ampla divulgação. A partir disso, surgirão ramificações da dança do ventre, como a Tribal Fusion, um estilo de dança que mistura elementos da dança do ventre com os da cultura ocidental. Esse tipo de dança ganhará bastante destaque principalmente nos Estados Unidos. Contudo, mesmo havendo variações, de acordo com Assunção (2021, p.56): “em se tratando de dança, em geral cada grupo tem estilos e movimentos próprios, mas que não são estáticos e imutáveis, tendo se transformado ao longo do tempo e são, claro, suscetíveis ao estilo pessoal de cada dançarina”

Vela ressaltar que o cinema também teve grande propagação da cultura árabe ao ocidente. Programas de Tvs e filmes retratam a imagem das dançarinas de dança do ventre como figuras sensuais, com roupas que são consideradas “exóticas” e muitas vezes, até mesmo vulgares.

Sendo assim, como já citado, a dança do ventre e também as dançarinas que a praticavam, eram vistas como mulheres sedutoras e muitas vezes, como mulheres “não descentes”, como foi o caso da dançarina brasileira Luz Del Fuego. Mesmo não sendo uma dançarina propriamente dita de dança do ventre, Luz Del Fuego utilizava serpentes em suas apresentações, na qual dizia que foi inspirada em sacerdotisas da Macedônia.

Apesar de ser uma ativista política e também ecologistas, devido a “má fama” criada pela dança que tinha poucas roupas ou mesmo nenhuma, tendo em vista que Fuego foi a primeira bailarina a se apresentar nua no Brasil, ela acabou no ostracismo de uma sociedade regida pelo patriarcado, tendo em mente que nesse contexto, uma mulher dançar com poucas roupas, levava um processo de estigmatização social, bem como a errônea ideia que essas mulheres são sedutoras e de certa forma, oferecem perigo pra a ordem estabelecida. Logo, assim como Luz Del Fuego, muitas dançarinas de dança do ventre também sofriam as represálias de um sociedade marcada pela dominação masculina e por padrões sociais altamente demarcados.

Contudo, mesmo diante desse processo de estigmatização e transculturação que a dança do ventre sofreu ao longo dos séculos, a dança do ventre vem resistindo e se adaptando a novos estilos e versões a ela introduzida, como elucida Roberta Salgueiro (2012, p.42) acerca da dança do ventre: “é antes uma linguagem de sobrevivência, resultado bem-sucedido de uma adaptação longa e dolorosa”.

A dança do ventre, que possui diversos movimentos relacionados a animais, principalmente as serpentes, mesmo sofrendo pelo processo de colonização e sendo perpassada ao longo dos séculos de forma distorcida, como uma dança de cunho sexualizada e de carater seduzente,  a dança do ventre resiste como uma performance milenar, que retrata a arte, os ritos e os cultos da “cultura do leste”, a dança vem mostrando a  sua resiliência dentro do mundo ocidental.

Referências bibliográficas e biográficas:

Tanya Mayara Kruger é Mestra em História pela Universidade Federal do Espírito Santo e professor de História pela Prefeitura Municipal de João Neiva-ES e Secretaria de Estado da Educação (SEDU).

ASSUNÇÃO, Naiara Müssnich Gomes de (2018). Entre Ghawazee, Awalim e Khawals: viajantes inglesas da Era Vitoriana e a “Dança do Ventre”. 2018 198 f. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2018. Disponível em: Acesso em: 20 mar. 2023

ASSUNÇÃO, Naiara Müssnich Rotta Gomes de. Entre Ghawázee e Awálim: a dança egípcia a partir da obra de Edward Willian Lane. 2014. 62 f. TCC (Graduação) - Curso de História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2014. Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/182762 . Acesso em: 20 mar. 2023

DIB, Marcia. Música Árabe: expressividade e sutileza. São Paulo: Ed. do autor, 2013.

MONTEIRO, Maria Conceição. Figuras errantes na Época Vitoriana: A preceptora, a prostituta e a louca. Revista Fragmentos, Volume 8, nº 1. Florianópolis: UFSC, juldez / 1998. P. 61 – 71. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/fragmentos/article/viewFile/6038/5608

7 comentários:

  1. Adorei o texto! Como dançarina do ventre amadora, me interessa muito essas discussões sobre as representações da dança, principalmente no que tange a esses estigmas que recaem sobre nós e nosso corpo.
    Porém, me surgiu uma questão enquanto lia o artigo: há a indicação de em que momento mais específico esse olhar patriarcal e heteronormativo teria recaído sobre a dança? Seria com o imperialismo ocidental, ou antes disso já havia algo nesse sentido? Algumas interpretações árabo-islâmicas também o fariam, ou não?
    Agradeço desde já por sua atenção, e te parabenizo novamente pelo texto!

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    1. Olá, boa tarde. Primeiramente, obrigada. Pela minha pesquisa, grande parte dos estudiosas defendem que a dança do ventre surge em um período matriarcal, na qual as deusas eram adoradas, honradas e respeitadas. Logo, há dança não possuía um cunho sexualizado. A sexualização da dança se dá pelo "olhar do outro", em que o europeu sem entender o contexto cultural, distorce a visão da dança de algo simbólico para um olhar machista e sexualizado.

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  2. Prezada Tanya, boa tarde! Parabéns pelo texto! É sempre instigante ler sobre a dança do ventre e, ao me deparar com a sua escrita, surgiu-me uma questão: Hodiernamente e sobretudo sob a ótica colonialista que controla a representação do outro, qual seria (no seu entender) a premissa básica para, de forma concreta, alterar essa visão estereotipada e talvez até arabofóbica da dança e da dançarina do ventre?
    Muito obrigada!
    Renata Ary

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    1. Olá, boa tarde. Primeiramente, obrigada. A sexualização da dança se dá pelo "olhar do outro", em que o europeu, principalmente no colonialismo do século XIX, sem entender o contexto cultural existente naquele continente, distorce a visão da dança de algo simbólico para um olhar machista e sexualizado. Assim, até hoje, muitos olham a dança do ventre não como uma expressão artística milenar, mas sim uma uma "atividade física" sensual e exotica

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  3. Obrigada pela resposta!
    Renata Ary

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  4. Bom dia,

    Texto muito interessante, que me trouxe alguns questionamentos durante a leitura. Pelo que eu percebi no seu texto, há uma enorme dificuldade (por variados motivos) em construir uma história da dança do ventre, traçar suas origens culturais e geográficas, bem como a sua função (religiosa ou ritualística, por exemplo). É quase como se o que nós conhecemos por dança do ventre hoje foi definido e moldado pelos europeus durante o contato colonial (o próprio nome "dança do ventre" veio do francês, por exemplo), e exportado para o ocidente e suas esferas de influência a partir dessa impressão europeia.

    A partir do meu raciocínio, a minha pergunta é: a dança do ventre (como nós conhecemos, como ela foi importada no ocidente) poderia ser considerada uma invenção europeia? Não negando a existência de uma dança (ou danças) pélvica nativa e compartilhada pelas culturas do Oriente Médio e do norte da África, mas essa dança do ventre com a qual nós temos contato não seria a construção europeia, orientalizada e esteriotipada, dessa prática cultural?

    Tenho ainda uma outra pergunta: como os povos do norte da África e do Oriente Médio enxergam essa dança do ventre hoje? Eles a praticam? Se sim, o quanto ela difere da prática importada pelo ocidente?

    Grata desde já,

    Samantha Alves de Oliveira

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  5. Olá, gostei muito do seu texto, alguns pontos que me chamaram atenção, por exemplo, essa sina que tem da Europa sempre marginalizar o outro, a dança acaba caindo no estereótipo de algo sexual, como mencionado. Outro fato interessante é como se popularizou no Brasil, ainda mais nos anos 00s.

    Ana Graziela Marcillo dos Santos

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