A FORTALEZA DE RAMA – HISTÓRIA TAILANDESA DO SÉCULO 13 AO 19, por Emiliano Unzer


O cenário no Sudeste Asiático em fins do século 13 propiciou o surgimento de novos centros de poder. Em 1287, Pagan e outros reinos birmaneses haviam entrado em colapso repentino com a chegada dos mongóis. Mais ao leste, a autoridade dos khmers demonstrava uma decadência difícil de disfarçar. E foi ainda mais trágico para esses a gradual ascensão na sua vizinhança dos povos tais durante o século 14.

 

As lendas dos povos tais remetem as suas origens ao deus Khun Borom, inventor da agricultura, artesanato, aprendizado, rituais e costumes. Essa figura heroica reinou na região do norte vietnamita próximo a Dien Bien Phu e, de lá, mandou seus sete filhos para governar sobre todos os povos tais no Sudeste Asiático. Esses povos incluiriam além da grande nação dos tais propriamente ditos, shans, khuns, lus, laos e yuans. E o destino desses dependeria de habilidades agrícolas e bélicas.

 

Etnicamente, os tais parecem ter migrado da região meridional chinesa, em Yunnan. Com os conflitos e perseguições feitas em meados do século 13 contra os mongóis, houve massivo deslocamento para outras regiões mais ao sul, em direção ao Sudeste Asiático. Assim, foram estabelecendo inúmeras entidades políticas que ia desde o Vietnã, através do rio Mekong e Chao Phraya até o Golfo de Martaban na costa birmanesa. Nenhuma dessas unidades teve proeminência a dominar seus vizinhos até a fundação de Ayutthaya em 1351.

 

Mas antes de Ayutthaya (Aiutaia), o reino de Lanna foi fundada em 1296 por um líder dos tais chamado de Mangrai (r. 1292 - 1311), descendente de mons e khmers. Foi um rei astuto e inteligente, com rara sensibilidade e senso diplomático que soube aproveitar a ocasião histórica na decadência do reino khmer de Angkor depois do reinado de seu último efetivo líder, Jayavarman VII em 1218. Às custas dos khmers, Lanna expandiu e cresceu em seus domínios. Mangrai revelou-se um estadista ao resolver as disputas entre dois reis, os de Phayao e de Sukhotai ao sul de Lanna. Ademais, Mangrai conseguiu conquistar reinos antes dominados pelos birmaneses, quando invadiu o reino mon de Haripunjaya em 1281. Oito anos depois, esse rei expandiu sua influência para a cidade de Pegu, a maior cidade mon na Baixa Birmânia. Como consequência, o rei de Pegu ofereceu como sinal de aliança sua filha em casamento ao rei de Lanna.

 

Das regiões setentrionais birmanesas, ou a Alta Birmânia, Mangrai mandou vir contingentes de artesãos especializados para embelezar sua capital em Chiang Mai, atualmente uma das mais belas cidades no norte da Tailândia. Com os chineses, Mangrai enfrentou uma invasão em 1301 de cerca de 20 mil homens. Ao final, essa expedição chinesa produziu pouco efeito prático, a não ser normalizar as relações entre Lanna e Pequim, com o envio periódico de tributos a partir de 1315 a manter as ligações comerciais e políticas entre os dois reinos. Em 1311, Mangrai chegou a falecer, acarretando um período confuso e incerto de crises de sucessão que perdurou até 1324. Lanna, ao final dessas instabilidades, sobreviveu, mas viu-se diante dos crescentes conflitos entre birmaneses e Ayutthaya, um poderoso reino tai que tinha se estabelecido no vale do rio Chao Phraya.

 

Ao sul de Lanna, o reino de Sukhothai (Sucotai) também passou por processo similar de construir uma rede de alianças como a que foi feito por Mangrai. Em 1295, um enviado chinês reportou que Sukhothai tinha incorporado vastos domínios antes pertencentes ao império de Angkor. E tal como o reino khmer, Sukhothai tinha abraçado o hinduísmo e cultuavam as figuras de Vixnu e Xiva, além dos cultos budistas.

 

A fortuna de Sukhothai parece ter mudado na década de 1320, um prelúdio para a ascensão de Ayutthaya. A história começa nas províncias ocidentais do que era parte do império Angkor, centradas em Lopburi, que o regente local buscou novas alianças longe do alcance de Angkor. Desde fins do século 13, líderes de Lopburi mandaram missões de tributo para a China, almejando futuras alianças e possibilidades comerciais.

 

Lopburi foi liderada por um notável estrategista e aventureiro, chamado de U Thong (1314 - 1369). Nascido numa próspera família de mercadores chineses, casou-se depois com uma princesa tai que lhe permitiu acesso às cortes dos reinos locais e contato com as autoridades chinesas ao norte. Eventualmente, U Thong ascendeu ao trono de Lopburi como rei Ramathibodi (r. 1350 - 1369), e após um surto de varíola, decidiu mudar sua corte para o vale do rio Chao Phraya, em Ayutthaya. O nome da nova cidade soava propícia, pois advinha da fortaleza do herói Rama do épico indiano, Ramaiana. Os chineses, por sua vez, passaram a chamá-la de Xian, ao que os portugueses depois adaptaram o termo para Sião.

 

O reino estabelecido de Ayutthaya consolidou sua posição com alianças táticas com Sukhothai, que tinha permanecido independente até 1438 quando foi declarada como província de Ayutthaya. Tal aliança foi necessária para combater os khmers de Angkor que tinham dado combate com os tais entre 1351 e 1431. Apesar dos prolongados conflitos, a corte de Ayutthaya não escondia a admiração pela cultura de Angkor, adotando seus ritos, protocolos e tradições que irão marcar a cultura de Ayutthaya.

 

A sociedade de Ayutthaya era hierarquizada, presidida por membros de famílias nobres e oficiais nomeados pelo governo. Os chineses, como comunidade estrangeira, sempre tiveram forte influência em Ayutthaya, principalmente pela sua próspera classe comercial e contatos diplomáticos. No topo de toda a sociedade, consolidou-se a figura quase divina do rei, como portador de certa essência do Buda, benevolente e impassível diante das mundanidades. As obrigações dos altos oficiais foram definidas pelo rei Borommatrailokanat (r. 1448 - 1488), ou Trailok. Foi este que adquiriu novos territórios para Ayutthaya e reorganizou toda a estrutura política e administrativa do reino. As províncias passaram a responder diretamente a capital, centralizando todas as decisões e recursos do Estado. Para as lideranças locais, foram nomeados governantes da casa real, e não mais a depender de famílias nobres locais. No campo jurídico, as penalidades foram agravadas se fosse feito algum delito contra um funcionário do Estado, visto como uma ofensa ao próprio rei. Como resultado, Trailok cimentou a base de um sistema que iria perdurar por séculos na sociedade tailandesa até as reformas ocidentalizadas no século 19 e da revolução de 1932 que aboliu a monarquia absoluta.

 

No aspecto externo, Trailok foi desafiado por dois reinos tais rivais, Lanna e Lan Xang. Angkor já não apresentava nenhuma séria ameaça na segunda metade do século 15. Os birmaneses sob a dinastia Toungou ainda não tinham se consolidado como potência ao oeste. Em Lanna, contudo, a ascensão do rei Tilokaracha (r. 1441 - 1487) em 1441 resultou na expansão rumo ao reino de Lan Xang, cuja capital localizava-se no curso médio do rio Mekong, em Luang Prabang.

 

De acordo com as lendas laosianas, o filho do primeiro rei de Luang Prabang tinha fugido para Angkor para se casar com uma princesa Khmer, Keo Kaengkana. Ele era Fa Ngum (r. 1353 - 1372), um príncipe que reivindicava ser descendente do deus dos tais, Khum Borom. Com a ajuda de soldados khmers, Fa Ngum conquistou amplas áreas do vale do Mekong e, em 1355, instalou-se em Luang Prabang como rei de Lan Xang. Depois da morte da rainha, Keo Kaengkana, Fa Ngum degenerou-se numa vida dissoluta, passando seu trono para seu filho, Samsenethai, em 1372 que passou a governar de maneira exemplar pelos próximos 43 anos.

 

O reino de Lan Xang sobreviveu livre de grandes conflitos do Sudeste Asiático muito por causa de sua localização geográfica remota. Perigosamente próximo da China, alimentou-se de seu comércio e possíveis alianças a quem sempre mandou missões de tributo. No entanto, não foram os chineses que provocaram mudanças no reino de Lan Xang, mas os de Ayutthaya e birmaneses que resultou na mundança da capital do reino laosiano em 1563 de Luang Prabang para um local mais seguro e distante, Vientiane.

 

Sukhothai, nesse meio tempo, tinha se rebelado contra Ayutthaya em 1462, justamente durante os conflitos deste contra Lanna. Percebendo a importância de ser manter uma presença militar no norte de seu reino, Trailok de Ayutthaya transferiu seu centro de decisões políticas para Phitsanulok, perto de Sukhothai, e nomeou seu filho, Borommaracha Thirat III (r. 1488 - 1491), como regente em Ayutthaya e futuro rei até 1491. Trailok, em seus anos finais, desiludido com as guerras contra Lanna, abdicou e retirou-se para uma vida monástica budista em perto de Phitsanulok.

 

Em 1488, Trailok morreu e Ayutthaya já se encontrava proeminente no continente asiático e tinha estendido seu poder na esfera marítima, tornando Ayutthaya no principal fornecedor de arroz para Malaca, sobre o qual tinha conseguido acordos de soberania. A tal ponto que os portugueses, quando chegaram em Malaca em 1511, consideraram a cidade como vassala de Ayutthaya. A expansão de Ayutthaya também tinha expandido para as regiões de Tavoy e Tenasseriam, motivados para maior controle do comércio internacional da Baía de Bengala ao oeste. Naturalmente essa expansão fez com que entrassem em conflito com os birmaneses, uma vez que a dinastia Toungou tinha conseguido reunificar o país. E foram contra esses que as guerras do século 16 resultaram no sítio e destruição das proximidades de Ayutthaya em 1546 e 1569 pelo rei birmanês Bayinnaung. Foi somente sob Naresuan em 1590, que os tais de Ayutthaya conseguiram autonomia maior frente aos birmaneses.

 

O maior conflito entre os tais e birmaneses se deu entre os anos de 1592 e 1593. Quando o rei de Toungou, Nandabayin desceu e conquistou a cidade de Kanchaburi, uns 120 km ao oeste de Ayutthaya. Naresuan decidiu arriscar e mobilizou suas forças para o campo de batalha. Uma das testemunhas da batalha foi um português, Mendes Pinto, que afirmou a convocação dos europeus em Ayutthaya para os conflitos pelo seu precioso conhecimento de artilharia, ao que boa parte atendeu ao pedido visando os privilégios prometidos de generosa aposentadoria e direito a terem um igreja católica construída na capital.

 

Tendo isso, Naresuan avançou com suas tropas para Kanchaburi no início de 1593. Apesar de estar em número inferior aos de Toungou, Naresuan parece ter tido sucesso nas táticas em campo, numa formação de tropas conhecida como a "matriz de lótus", a explorar e usar os flancos abertos a encuralar o inimigo em tempo oportuno. Isso ocorreu em Nong Sarai, quando os tais conseguiram confundir os birmaneses e cercar os birmaneses após duras batalhas.

 

Tirando lições da batalha, Naresuan buscou empregar oficiais e mercenários europeus para usar as mais modernas e eficazes armamentos, superiores aos fornecidos aos birmaneses pelos chineses e turcos. Com isso, Ayutthaya importou significativo número de canhões e armas de fogo dos portugueses e europeus. Quando a capital tai chegou a cair para os birmaneses em 1767, seu estoque de armamento continha mais de 22 mil mosquetes.

 

De todos os reis de Ayutthaya, foi Narai (r. 1656 - 1688) que mais dedicou sua política a manter as forças bélicas tailandesas em par com o que havia de mais moderno. Apesar de Naresuan ter revitalizado Ayutthaya ao derrotar os birmaneses em 1593, isso não significou plena independência nas décadas seguintes. Narai subiu ao trono em 1656 com o apoio de ricos mercadores muçulmanos, esse rei buscou sempre se informar e se inserir no tabuleiro internacional da época. Buscou a ajuda de holandeses, mas também não descartou o interesse da Coroa Francesa no Sudeste Asiático. Esses últimos europeus foram representados por um grego, Constatine Phaulkon (referido pelos portugueses como Constantino Falcão) (1647 - 1688), que tinha chegado à capital tailandesa com a CIOB e passou a servir de tradutor na corte de Narai. Foi útil ao fazer a ponte de contato entre os europeus residentes em Ayutthaya e o governo, e serviu de conselheiro para a construção de pontes, fortificações e outras obras públicas. Pela sua contribuição, não foi de se estranhar que o rei Narai passou a se interessar em contatar Paris para maiores assistências. Phaulkon, de sua parte, alimentava a esperança de que o rei e sua corte converteriam-se ao cristianismo, algo que se revelou equivocado pela profunda assimilação e popularidade do budismo entre a população tailandesa. Não era, portanto, de interesse de um soberano se converter a uma crença estrangeira de pouca compreensão popular.

 

Os contatos com os franceses, contudo, apresentaram também problemas para Narai. Pois esses começaram a ser vistos com desconfiança pela população e comunidade budista. Isso ficou evidente quando houve uma fracassada defesa do porto de Mergui contra os britânicos em 1686. A temperatura subiu ao ponto de ebulição na corte em 1688, quando houve um golpe pouco antes da morte de Narai. Um dos líderes mais proeminentes nesse movimento político foi Phetracha (r. 1688 - 1703), que passou a perseguir os seus rivais, os franceses e Phaulkon.

 

Phetracha contraiu matrimônio com uma filha de Narai, a princesa Sudawadi ou Yothathep (1656 - 1735), que viveu longamente por cinco reinados. O casal real atuou como defensor e restaurador da cultura tradicional e budismo tailandês. Isso foi reflexo de seu desgosto com os franceses e ingleses, que deixou apenas os holandeses como potenciais parceiros comerciais. Todavia, mesmo entre esses começaram a ser por vezes, problemáticos as relações, uma vez que Batávia, atual Jacarta, na ilha de Java, tornou-se centro das atenções das companhias de comércio de Amsterdã e Roterdã. Poderia, portanto, naturalmente surgir desavenças com relação a interesses entre os dois países no plano de comércio asiático.

 

Apesar de ter sido um usurpador ao trono, Phetracha conseguiu se assegurar no trono até 1703, quando foi sucedido por seu filho, Suriyenthrathibodi (r. 1703 - 1709). Mas a ordem e a paz somente retornariam para o reino de Ayutthaya com a coroação do rei Thai Sa (r. 1709 - 1733). Foi durante esse último reinado que houve crescimento e prosperidade comercial com a China que tinha aberto seus portos para o comércio de arroz em 1727. Isso foi alavancado com os privilégios concedidos aos mercadores chineses em Ayutthaya que desbancaram os holandeses mais interessados em defender o comércio javanês. Ademais, Thai Sa decretou éditos proibindo a proselitização de padres católicos no seu reino, mas seu sucessor, Borommakot (r. 1733 - 1758) relaxou essas restrições religiosas, permitindo até mesmo a visitar templos e estupas sagradas budistas, irritando alguns mais intransigentes da comunidade budista e de sua corte.

 

Na época de sua sucessão, em 1758, houve novos conflitos políticos em Ayutthaya, que provou ser fatal para o reino. Pois foi nessa época que os birmaneses de uma renovada dinastia de Konbaung começou a ter interesses expansionistas. As lutas e desavenças chegaram a paralisar o comando centralizado do reino de Ayutthaya, que se tornou fragilizada a invasões estrangeiras. A capital tailandesa quase foi capturada em 1760, se não fosse por um mero golpe de sorte ao explodir os armamentos de fogo usados no sítio pelas tropas birmanesas, ferindo gravemente o rei Alaungpaya e provocando sua morte no caminho de volta para as terras birmanesas. A tarefa da conquista definitiva de Ayutthaya coube ao segundo filho de Alaungpaya, Hsinbyushin (r. 1763 - 1776), que tinha ganhado experiência nos combates contra Lanna e Lan Xang nos anos anteriores. Logo antes da queda de suas muralhas aos birmaneses, em 1767, Ayutthaya tinha sofrido anos de bombardeio e um incêndio que atingiu cerca de 10 mil casas. Sem misericóridia, o exército birmanês, uma vez rompida as muralhas, estupraram, pilharam e saquearam seus valores e tesouros culturais e religiosos. Milhares de tailandeses foram feitos prisioneiros e vendidos como escravos.

 

Ironicamente, a destruição e saque de Ayutthaya em 1767 resultou numa maior unificação dos tailandeses no longo prazo, abarcando os reinos de Lanna e Lan Xang sob uma nova dinastia, a de Chakri, a partir de 1787, uma das mais longevas do mundo atual. O fundador dessa nova ordem foi um líder, Sin, que tinha sido adotado por uma família nobre tai. À época da invasão birmanesa, Sin estava servindo como governante da província Tak. Daí seu nome para a posteridade, Tak Sin, ou Taksin. Depois da catástrofe de 1767, Taksin (r.  1767 - 1782) decidiu fundar uma nova capital dos tais, Thonburi, às margens do rio Chao Phraya na sua margem ocidental. Na outra margem do rio surgiria depois Bangkok.

 

Taksin assim proclamou um novo reino, chamado de Sião (Siam) a restaurar a glória de Ayutthaya, com a presença cosmopolita de estrangeiros em sua corte, indianos, persas, chams, malaios e chineses. Seu empenho e sucesso em batalhas contra os birmaneses asseguraram a vida inicial de sua capital, mas em 1779, estava claro que o regente tai tinha se cansado da vida política e buscou se dedicar de corpo e alma à vida monástica budista. De tal maneira que, ao final de sua vida, insistia em ser chamado por um nome santificado e aqueles que o recusassem foram açoitados ou banidos ao trabalho forçado. Em 1782, Taksin encontrou uma morte violenta quando alguns monges, membros de famílias tradicionais e mercadores chineses, todos descontentes com sua obsessão espiritual, o colocaram num saco de veludo e espancado até a morte, a obedecer a tradição de que nenhum súdito podia tocar diretamente e causar dano ao corpo de um rei tailandês.

 

Um dos generais de Taksin, Phra Phutthayotfa Chulalok, então ascendeu ao trono em 1782 como Rama I (r. 1782 - 1809). E um de seus primeiros atos como rei foi mudar a capital para Bangkok atual, do outro lado do rio Chao Phraya, a ficar mais distante dos possíveis ataques dos birmaneses ao oeste. Rama I, convencido de que a decadência de Ayutthaya foi causado por negligência dos ensinamentos e estudos budistas, buscou patrocinar templos e traduções para o tailandês de clássicos, como o Milida Panha, "As Questões do rei Milinda", corpo de texto escrito em páli nos primeiros séculos de nossa era que deu início à tradição teravada do budismo. Além disso, o rei buscou reformar todas as ordens monásticas, perseguindo práticas corruptas e exigindo a identificação de todos os monges pelo reino. Ao fim de seu reinado, em 1809, o budismo tai havia assegurado uma coesão e unidade forte o suficiente para conferir a Tailândia sua própria identidade nos séculos seguintes.

 

O reino de Sião conheceria um período de consolidação além de suas fronteiras, pois, com seu ativo envolvimento no comércio asiático, colecionou diversos tratados de vassalagem com reinos menores. Um deles, o do sultanato de Kedah ao sul, na península malaia, concedeu uma ilha, a de Penang, em 1786 a um britânico, Francis Light, por ter protegido a região contra o ataque de piratas indonésios. Foi um gesto de gratidão e reconhecimento do sultão, porém acendeu o sinal de alerta em Bangkok, pois Kedah tinha assim desrespeitado a suserania acordada com o reino siamês. Aos olhos britânicos, Penang surgiu como uma base de ancoragem na região dos Estreitos, passagem estratégica entre o Oceano Índico e o Mar da China Meridional. Os franceses, alguns anos antes, tinham firmado acordos com o sultão de Aceh, para basear e ancorar seus navios no norte da ilha de Sumatra. Em 1794, pouco antes da morte de Light, Penang já contava com milhares de residentes, muitos deles mercadores chineses e muçulmanos que tinham fugido da dura política comercial implantada pelos holandeses a partir de Java. E foram os holandeses que tinham dominado também toda a rota do Estreito de Malaca, pois tinham desde 1641 tomado o controle de Malaca dos portugueses e, pouco antes dos britânicos em Penang, avançado seu controle sobre a região central de Sumatra, em Riau.

 

A presença britânica e europeia começou a ser considerada como ameaçadora pela corte em Bangkok. Especialmente depois da aquisição de Tenasserim depois da guerra Anglo-Birmanesa de 1824-1826. Uma ampla fronteira foi formada com isso, entre os siameses e britânicos, mas o rei de Bangkok ficou aliviado ao tomar conhecimento de que foi respeitada sua suserania sobre os estados malaios de Patani, Kedah, Kelantan e Trengganu em momento posterior à morte de Francis Light. Em último momento, no início do século 20, somente seria preservado a região de Patani aos siameses.

 

Apesar dos acordos Anglo-Siameses feitos em 1826 terem estabelecidas as relações com os países ocidentais, a desconfiança com os europeus em Bangkok fora sempre presente. Isso foi expresso por um dos sucessores no trono em Bangkok, Nangklao ou Rama III (r. 1824 - 1851), que foi realista ao considerar o prospecto de evitar quaisquer conflitos com os birmaneses e vietnamitas e a privilegiar as atenções com os países ocidentais, ainda mais depois da esmagadora vitória desses na Primeira Guerra do Ópio (1839 - 1842) contra o império chinês.

 

Seu irmão, Mongkut, Rama IV (r. 1851 - 1868), conseguiu a façanha de preservar a soberania siamesa no duro jogo imperialista europeu em meados do século 19 no Sudeste Asiático. A situação de seu reino estava longe de estar tranquila, pois as regiões birmanesas e malaias foram gradativamente sendo incorporadas pelos britânicos e pelos franceses vindos do Vietnã. Para regularizar as relações, foram assinados cruciais tratados em 1855 com os britânicos e, um após, com os franceses, nunca a perder de vista as oportunidades comerciais, inclusive com relação ao infame comércio de ópio levado a cabo pelos britânicos nas próximas regiões indianas, em Bengala, e birmanesas.

 

Chulalongkorn, ou Rama V (r. 1868 - 1910), sucessor de Rama IV, foi hábil em buscar explorar os temores expansionistas de britânicos e franceses no Sudeste Asiático. E nesse sentido, o reino siamês passou a ser considerado como um Estado tampão entre as duas potências europeias, os britânicos ao oeste e sul, os franceses ao leste. Chulalongkorn continuou a política de modernização ocidental implantada pelo seu pai e cultivou as boas relações com os governos europeus, com particular cuidado com a presença de comunidades estrangeiras e missionários em seu reino. Ademais, o rei adquiriu gosto por aprender as línguas europeias e importou livros e obras para se manter a par das artes e ciências de fins do século 19. Seu interesse foi em grande parte despertado na sua criação por uma governanta e tutora indo-britânica, Anna Loenowens (1831 - 1915). No restante de seu governo, Chulalongkorn reformou amplamente a estrutura política e administrativa do reino siamês. Decretou o fim da servidão em 1905, renovou a estrutura jurídica, militar e burocrática para mais próxima aos modelos europeus, e buscou coibir as práticas clientelista e corruptas de seu governo. Em suma, foi durante os governos de Rama IV e Rama V que o Sião conheceu, de 1851 a 1910, uma revitalização reformadora que preservou sua autonomia frente ao imperialismo ocidental no Sudeste Asiático.

 

Essa relativa independência, contudo, veio com um custo pesado a negociar os seus territórios antes dominados pelos siameses com os britânicos e franceses. No Laos e Camboja, os franceses estabeleceram protetorados a partir das decisões do monarca cambojano em 1863 em abdicar da suserania siamesa para favorecer os franceses. O rei siamês foi obrigado a aceitar tal acordo, depois da demonstração de força de um navio canhoneira francês ter ancorado na cidade cambojana de Phnom Penh. Em 1893, outra vez, canhoneiras francesas navegaram ostensivamente pelo rio Chao Phraya a persuadir o governo em Bangkok a aliviar a suserania sobre o Laos.

 

Referências

Dr. Emiliano Unzer é professor e pesquisador de História da Ásia na UFES, autor de artigos e livros na área da história asiática, e criador do canal no YouTube (www.youtube.com/emilunzer).

 

COOKE, Nola & LI, Tana (Orgs.). Water Frontier: Commerce and the Chinese in the Lower Mekong Region, 1750-1880. Rowman & Littlefield, 2004.

 

HALL, Kenneth R. A History of Early Southeast Asia: Maritime Trade and Societal Development, 100–1500. Lanham, Maryland, EUA: Bowman & Littlefiled, 2011.

 

ONGSAKUN, Saratsawadi. History of Lan Na. Chiang Mai, Tailândia: Silkworm Books, 2005.

 

SHAFFER, Lynda Norene. Maritime Southeast to 1500. Armonk, Nova York, EUA: M. E. Sharpe, 1996.

 

SIMMS, Peter & SIMMS, Sanda. The Kingdoms of Laos: Six Hundred Years of History. Richmond, Surrey, Reino Unido: Curzon Press, 1999.

 

SWEE-HOCK, Saw & WONG, John (Orgs.). Southeast Asian Studies in China. Cingapura: Institute of Southeast Asian Stuides, 2007.

 

WENK, Klaus. The Restoration of Thailand under Rama I (1782 - 1809). Tucson, Arizona, EUA: University of Arizona Press, 1968. 

7 comentários:

  1. Prezado prof. Emiliano Unzer,

    desde já gostaria de deixar aqui meus cumprimentos pela comunicação.

    Em teu texto, há claras referências à matriz cultural pan-indiana do Rāmāyaṇa... o reino de Ayutthaya, que parece-me uma evolução vernácula, no espaço e no tempo, da cidade de Ayodhyā, capital do reino de Kosala, onde Rāma teria presidido o rājadharma enquanto governança virtuosa hindu segundo as tradições védicas, assim como o fato de líderes políticos da Tailândia sustentarem o nome régio de Rama desde 1782… tudo leva a crer que as origens político-culturais do Rāmāyaṇa se localizem na cultura védica, e não nas tradições budistas que, se entendi bem o texto – e, claro, por leituras históricas superficiais minhas sobre a história da Tailândia – são predominantes na região desde que o budismo se estabeleceu por lá, sendo bastante populares...

    Minha pergunta reside exatamente nas maneiras pelas quais a monarquia na Tailândia tem se apropriado, político-culturalmente, para legitimação, sacra e secular, de suas prerrogativas de soberania sobre a população tailandesa a partir dessas duas matrizes religioso-culturais, i.e. hinduísmo e budismo. É possível traçar nitidamente essa linha entre as duas confessionalidades no processo de legitimação política da monarquia tailandesa? Até que ponto há uma retroação até as matrizes hindus nesse processo, e até que ponto a matriz budista serve como paradigma único ou predominante?

    Desde já agradeço pela atenção.

    Atenciosamente,

    Matheus Landau de Carvalho.

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  2. Oi Matheus,

    Prazer em ter você aqui , meu caro.

    De fato, a cultura hindu budista permeou o Oceano Indico desde os primeiros séculos de nossa era, veja o caso dos templos de Prambanan e Borobudur em Java. O hinduísmo tinha se estabelecido desde os tempos de Funan e império Khmer no século 10 e isso foi um fator de influência para os povos tais de Sukhothai e Ayutthaya . Como você observou, até o nome da lendária cidade dos épicos hindus tem o nome no último . A dinastia Rama atual aprimorou-se desse legado Khmer e hindu budista, considerando que o budismo teravada já tinha entrado entre os Khmers desde o século 13, e a fusão desses dois pautou as dinastias tais . Ate os dias de hoje, algumas cerimônias reais sagradas são conduzidas por sacerdotes tameis indianos, e o maior épico tailandês, o Ramakien, tem clara influência do Ramaiana. Isso, reitero, não se limitou aos tais, nem ao reino de Lan Nan, Lan Xang, mas também já tinha marcado os Khmers , e os birmaneses ao oeste que tinha já adotado com fervor o budismo teravada , como testemunhamos nos incontáveis pagodes e estupas em Bagan. O budismo teravada, em particular, adveio muito de brâmanes do sul indiano, a escrever em pali, e do Sri Lanka, via os povos mons da Costa birmanesa. O tema é amplo é fascinante , essa resposta é apenas um aperitivo de um assunto tão maravilhoso como esse.

    Talvez uma leitura a continuar:

    Andra Acri & Peter Skarrock (Orgs.).
    The Creative South: Buddhist and Hindu Art in Mediaeval Maritime Asia, vários volumes. ISEAS , 2022. Disponível em: https://bookshop.iseas.edu.sg/publication/7802#contents

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    1. Prezado e estimado prof. Emiliano,

      SEMPRE um prazer e um privilégio todo diálogo com você!

      Sim, sim, esses meandros histórico-culturais do Rāmāyaṇa não conseguem outra coisa a não ser fascinar [e esgotar a gente de tanto estudar e pesquisar, né ;) ]. Ao citar que a atual dinastia tai "aprimorou-se desse legado Khmer", na mesma hora me veio à mente o inigualável Angkor Wat (estou errado?) como referência concreta de um passado acessado político-historicamente por uma experiência asiática.

      Igualmente as imbricações da tradição narratológica-política-cultural do Rāmāyaṇa com as tradições budistas desvelam outros inumeráveis desdobramentos em diversas categorias de análise de ambas as matrizes...

      Agradeço, por fim, pela indicação bibliográfica, inédita para mim até então. Forte e agradecido abraço, na persepctiva de nos reencontrarmos em futuros eventos acadêmicos, com diálogos cada vez melhores... ;)

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  3. Boa noite. Tenho acompanhado seu canal e seus textos
    Obrigada. Gostaria de saber qual era a área de abrangência do reino de khmer na Ásia e quais foram as realizações e medidas khmer importantes? Também gostaria de saber um pouco mais sobre a influência holandesa na Ásia, pois já li que o Japão fechou os portos, mas não para a Holanda. Muito obrigada.

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    1. Oi

      Então vamos lá .

      Auge do império Khmer foi durante o século 11 ao 13 e governou grande parte do que hoje é Camboja, Laos, Tailândia e Vietnã.

      O Império Khmer adaptou maneiras ao seu ambiente específico. Eles projetaram sistemas de água compostos por grandes reservatórios, canais lineares, estradas e aterros para armazenar água com eficiência e irrigar as terras agrícolas. Ademais, com o controle do Mekong, estenderam amplo alcance marítimo com todo o Sudeste Asiático. E um dos maiores legados históricos foi a sua cultura e língua Khmer que foi depois em parte absorvido pelos povos tais.

      Quanto aos holandeses na Ásia, acredito que foi maior o impacto comercial e gerencial , a Cia das Índias deles foi enormemente lucrativa em cima de produtos exportados na Indonesia e Java, e nessa ilha, implementaram um sistema de cultivo forçado e taxação direta sobre a população javanesa no século 19, cultursteldt, que desarticulou a nobreza local e integrou por estradas toda a ilha. Isso sem falar na exploração dos recursos e mão de obra javanesa .

      Abraços

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  4. Boa noite, professor, acompanho e gosto muito do seu trabalho na internet, e seu texto me foi muito útil. Ao lê-lo, lembrei-me que, salvo engano, os reis Rama IV e Rama V tinham políticas bastante rígidas a respeito do consumo de ópio no Sião, por conta do contexto das Guerras do Ópio. Você poderia comentar a respeito dessa questão?
    Um abraço,
    Felipe Alexandre Silva de Souza

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  5. Oi Felipe

    Não me parece que houve uma mudança do governo siamês nos reinados dos dois soberanos após Rama III. De fato, houve interesse em manter a taxação do consumo do ópio, além do comércio, pois enriquecia comerciantes siameses, além do governo imperial. Grande parte do consumo se dava entre os trabalhadores chineses advindos dos portos meridionais da China, possibilitadas assim de ir ao exterior como mão de obras após os acordos assinados em 1860.

    Eu li num artigo sobre essas consideração e mando abaixo tradução livre de um trecho, referência e fonte:




    [Após a Guerra do Ópio], “[N]os termos do Tratado de Bowring de 1855 entre a Tailândia e a Grã-Bretanha, houve um acordo de que os britânicos poderiam importar ópio para a Tailândia sem qualquer imposto, portanto, o número de distribuidores de ópio no país cresceu consideravelmente. O imposto sobre o ópio que a Coroa de Sião arrecadou dos fiscais representou um quarto de toda a renda do país derivada de impostos sobre ópio, loterias, jogos de azar e destilados.
    A proporção de impostos do consumo dos trabalhadores chineses foi de cerca de cinquenta por cento de toda a arrecadação da receita, vinte por cento dos quais vieram do ópio.”


    Fonte: Punnee Bualek. “THE EMERGENCE AND THE WAY OF LIFE OF THE WAGE LABORER CLASS IN THAILAND FROM THE END OF THE 18TH TO THE 19TH CENTURY”. MANUSYA: Journal of Humanities. 2008. Disponível em: https://brill.com/downloadpdf/journals/mnya/11/2/article-p1_1.pdf

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