A ARQUITETURA DA ÁGUA: CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES SOBRE A PESCA NO EGITO ANTIGO, por Maura Regina Petruski

      

Ao longo dos séculos, muitas foram as interpretações realizadas a respeito da história do Egito antigo que procuraram mostrar o desenvolvimento dessa civilização em seus mais diferentes aspectos.

       

Podendo ser classificada como um dos berços da humanidade, visto que é uma das sociedades mais antigas que temos notícias, juntamente com as que se desenvolveram na Mesopotâmia, é comumente abordada como campo investigativo respondendo questões que tiveram como ponto de partida sua configuração geográfica, principalmente no que se refere ao processo das enchentes periódicas nesse território, que avançavam em direção ao vale do Nilo e potencializava uma vida fértil, garantidora de prosperidade e abundância, perspectiva essa que foi largamente explorada pela literatura tanto de autores antigos como contemporâneos (HERÓDOTO, l989; CARDOSO, 2012; BAKOS, 1994).

     

Contudo, o olhar direcionado por essa literatura a paisagem retratada, quer dizer, a inundação nilótica, a idealizou como exuberante e a pautou um ritmo de vida que num primeiro momento ofuscaria, ou talvez impediria, que outros aspectos relacionados a água do rio fossem percebidos para além da vazão do leito, e  que visivelmente estivessem perceptíveis aos indivíduos, isso significa, àquilo que existiriam abaixo da superfície.

      

Dentre os elementos que encaixaria na colocação mencionada acima, de não contemplação inicial do que está abaixo do campo de visão no interior da água do Nilo, estão os peixes que nele viviam, que, estudos mais recentes, apontam para uma variedade de espécies, dentre as quais María Teresa SORIA-TRASTOY cita os,

 

“Oreochromis niloticus, Labeo niloticus, Barbus bynni y Alestes nurse e em menor número Tilapia zillii, Bagrus bayad, Bagrus docmak, Hydrocyonus forskalii, Lates niloticus, Schilbe mystus y Clarias gariepinus. Contudo, a Tilapias, Lates y Bagrus  foram as espécies que melhor se adaptaram naquelas águas. Posteriormente, foram introduzidas a eurihalinas. A Oreochromis niloticus y Sarotherodon galilaeus foram transplantadas e crescem melhor nos lagos superior, Tilapia zillii no inferior e Oreochromis aureus em ambos por igual” (2020, p.359).

 

Tais animais que faziam parte da fauna aquática egípcia e também compuseram a alimentação dos nilóticos, ainda que a base tivesse sido cerealífera, pouco foram explorados no que se refere a inclusão na produção acadêmica na área de História, visto que temos uma pequena quantidade de trabalhos inseridos nesse contexto que enfoquem às atividades pesqueiras no Egito antigo.

Desse modo, com o objetivo de suprir, mesmo que minimamente essa lacuna, é que esse texto foi pensado e produzido, buscando trazer algumas referências sobre a atividade pesqueira desenvolvida em solo egípcio.

      

Para tanto, não sendo possível abordar sobre esse assunto inserindo-o ao longo de todo o período em que essa sociedade se edificou, nem tampouco abarcando todo seu espaço territorial, recortou-se para esse trabalho a região do Fayum, de onde são provenientes a maior quantidade de vestígios materiais que possibilitam realizar estudos a esse respeito, bem como o recorte temporal o Reino Médio.

        

De acordo com Soria-Trastoy, “o Fayum é uma área privilegiada para o estudo histórico-arqueológico em forma diacrônica da pesca, e que proporciona uma grande quantidade de informação a nível socioeconômico e tecnológico desde o Epipaleolítico até a atualidade” (2020, p. 331).

        

Assim, dada a relevância dessa extensão de terra em solo egípcio relacionado ao campo pesqueiro, a utilizaremos como referência nesse estudo, sendo sobre ela que iniciaremos a explanação a seguir.

 

Um dentre outros locais de pesca: Fayum

O Fayum, situado ao sul da região do Delta e a oeste do vale do rio Nilo, está separado fisicamente do restante do território egípcio por uma faixa de deserto e uma cadeia de colinas que chegam desde a planície de Gizá até o sul próximo da Núbia. A nominação ‘Fayum’ dada a essa extensão de terra vem do árabe e significa ‘terras pantanosas’, cujo nome é proveniente do copta Phiom lago.

 

Essa localidade é uma depressão que está a 44 metros abaixo do nível do mar, formada por uma área de aproximadamente 12.000 km2. Na atualidade, esse território consiste em dois complexos de caráter lacustre: o lago Qarun, de águas salinas, que não se encontra conectado com o rio Nilo, e os lagos artificiais de Wadi el-Rayan.   

 

Esse recorte de terra egípcia esteve ocupado desde o período pré-dinástico, mas foi durante o Reino Médio que ganhou mais atenção por parte dos governantes egípcios, principalmente dos que integraram a XII dinastia (1991 a.C – 1782 a.C) , que transferiram a administração pública e a residência real para esse local, fazendo com que o mesmo ganhasse visibilidade e infraestrutura. Dessa forma, o Fayum “se converteu em uma das regiões mais férteis, com grandes áreas cultiváveis nos arredores dos lagos e vastas áreas de pântanos muito apropriadas para a pesca e captura de aves” (Soria-Trastoy, 2020, p. 332), sendo desse período que são originários o maior volume de resquícios da cultura material pesqueira egípcia.       

         

Com o avanço da arqueologia e uma exploração mais sistêmica e cautelosa no interior do rio, vários objetos foram e estão sendo encontrados, possibilitando que se conheça com mais profundidade elementos relacionados a atividade pesqueira dos egípcios.

      

Não podemos nos esquecer, como alude Norberto Luiz Guarinello, que os objetos que a arqueologia estuda são documentos importantes porque “são uma dimensão essencial das sociedades humanas. São resultado da intervenção humana sobre a natureza, são a forma humana no mundo, são elemento fundamental das relações sociais e das atividades humanas (não há atividades sem objetos, e as atividades mais importantes são as produtoras de objetos)” (GUARINELLO, 2011, p.167).

      

Assim, nessa linha apontada pelo autor da importância dos artefatos como indicadores de acesso a informações de uma dada atividade inserida num contexto cultural, apontamos para os que fizeram parte do conjunto de equipamento utilizado pelos egípcios para desenvolverem a captura de peixes, e que estão possibilitando para que conheçamos na atualidade referenciais dessa prática, são eles:  as estacas de madeira, lançadeiras, anzóis, cabeças de arpões, fragmentos de redes, flotadores e bolas de fios.

       

Dentre os utensílios apresentados acima, acredita-se que a rede pode ser sinalizada como o principal instrumento de uso, isso porque ela é a que aparece com maior frequência nos registros iconográficos deixados nas pinturas representativas em paredes de âmbito funerário no interior das tumbas, local de onde são originárias a grande maioria das imagens desse contexto, como a que pode ser visualizada na figura 1 apresentada a seguir.

 

Figura 1 Fonte:  disponível em: lifepersona.com

 

Dessa forma, gostaria de salientar que para a produção dos ‘panos de rede’, que nada mais é do que o corpo da rede, exige-se do executor da tarefa técnica e habilidade, principalmente no que se refere ao manuseio das bolas de fios para se fazer o processo de amarração que tem como objetivo impedir a passagem da presa, uma vez que o espaçamento da malha deve estar adequada às espécies que serão capturadas, nesse sentido, não se deve perder de vista a interrelação que deve-se existir entre a fauna aquática e a fabricação desses artefatos, para que o resultado final seja o melhor esperado.

         

De acordo com Soria-Trastoy, a dimensão da largura dos fios utilizados para confeccionar as malhas, em sua grande maioria, mediam entre 1,0 a 1,5 cm, podendo chegar até a 3,0 cm, já as bolas de fios enrolados alcançavam entre 5 a 7 cm de diâmetro (2020, p. 332).

        

Para fazer com que as redes afundassem no interior do rio, eram colocadas pesos nas suas laterais, confeccionados em formas aproximadas a bolas que ficavam amarradas por alguns centímetros de cordas, ficando soltas abaixo do pano de rede, funcionando como uma espécie de pêndulo, para puxá-la cada vez mais para baixo buscando sua permanência no interior do rio.  

       

Dario Bernal Casasola, faz referência a essa técnica utilizada pelos egípcios mencionando a representação da atividade pesqueira a partir da imagem encontrada na tumba de Meketre, integrante da XI dinastia e reinante em 2.000 a.C, proveniente da cidade de Deir al-Baheri, que assim fez o relato “a imagem nos permite confirmar a presença de redes em cuja parte inferior ficavam os pesos pendurados, fixadas na parte baixa da arte mediante cordas como ilustra magistralmente o modelo de uma cena pesqueira em madeira policromada”   (CASASOLA, 2008, p.188).

        

Além da cena apontada pelo autor, também encontramos representações iconográficas dessa natureza em outras áreas geográficas do território egípcio, sendo que, as que foram achadas especificamente na região do Fayum, são essencialmente de caráter funerário, e segundo Soria-Trastoy, as mais detalhistas e prolíficas estão localizadas nas cidades de Haraga, Lahun, Gurob e Lisht (2020, p.359).

       

A autora apresenta uma tabela que se reporta aos utensílios que foram encontrados nas cidades mencionadas, a qual está fixada abaixo como forma de visualização de maneira conjunta dos locais que compuseram a região do Fayum em que a pesca se fez presente.

 



Fonte:
María Teresa Soria-Trastoy (2020, p. 361).

 

Na grande maioria dos registros iconográficos as embarcações que seriam utilizadas para levar os indivíduos para o interior do rio não foram caracterizadas na representação, mesmo sendo os barcos elemento de grande significância no imaginário dos egípcios, uma vez que esse veículo fez parte de elementos ligados a construção da cosmogonia, religiosidade e questões relacionadas a morte.

        

Algo que não se deve perder de vista, é que a atividade pesqueira encaminha para a existência de um saber fazer, a um acúmulo de reserva de conhecimento que vão sendo apropriados pelos pescadores a partir de uma prática concebida ao longo do tempo.

       

Desenvolvê-la, pressupõe-se conhecimento de meios mais técnicos por àqueles que a fazem, dentre os quais está o domínio do território aquático e referenciais de localização, quesitos que ocasionam, mesmo que inconscientemente, a um processo de mediação com a própria natureza.

       

Dentre os itens que se integram com o exposto acima, podemos citar os pressupostos de identificação da fluência dos ventos, pois ele interfere no deslocamento da embarcação estimando a velocidade que ela possa atingir.

        

Ademais, também temos como outro aspecto de parâmetro, o acesso a informações do relevo fluvial, haja vista que se faz necessário demarcar os espaços no interior do próprio rio, para que se consiga identificar os locais que uma ou outra armadilha sejam instaladas ou onde a rede deva ser lançada.

         

Requer inclusive a observação da fauna aquática, para se constatar quais as espécies de cardumes que vivem no rio, e o estabelecimento da forma mais adequada para que cada uma delas possa ser capturada, acrescido ao fato de se detectar a diferenciação a profundidade em que cada espécie utiliza e se conduzem na água.

      

Por fim, para ultrapassar a miragem da água, que à primeira vista é aparentemente visível, exige-se muito mais do que um mero olhar, uma vez que o que abaixo da superfície poucos conhecem.

 

Considerações Finais

A despeito da temática ora em questão apresentada, a pesca em território do Egito antigo no vale do rio Nilo, é importante salientar que esse trabalho é o primeiro a ser elaborado inserido nesse recorte por parte da presente pesquisadora.

        

Por ser uma aproximação ainda embrionária, adverte-se que essa linha de investigação na área de História é um campo que ainda precisa ser desbravado, visto que a quantidade de publicações a esse respeito é reduzida e poucos são os historiadores que se lançaram a conhecer com mais profundidade esse aspecto da história dos antigos egípcios.

        

Dessa forma, acredita-se que com os avanços das explorações arqueológicas na região, novas fontes possam ser descobertas e possibilitem trazer elementos que auxiliem na ampliação das informações a esse respeito, preenchendo hiatos que estão abertas até então.

        

Finalizo, esperando que com esse trabalho possa abrir novos caminhos de pesquisa para se refletir mais sobre o assunto, e que tenhamos em vista que pescar não é um ato tão simples como parece.

 

Referências Bibliográficas

Maura Regina Petruski. Doutora em História pela Universidade Federal do Paraná. Professora do departamento de História da Universidade Estadual de

Ponta Grossa (UEPG). Integrante do corpo docente da pós-graduação Mestrado de Ensino de História (PROFHIST) da Universidade Estadual de

Ponta Grossa (UEPG)

 

BAKOS, Margareth Marchiori. Fatos e mitos do Egito Antigo.  EDIPUCRS: Porto Alegre, 1994.

 

CARDOSO, Ciro Flamariom. Os festivais divinos no antigo Egito. Revista Phôinix. V.18, N.1, 2012.

 

CASASOLA, Dario Bernal. Arqueologia de las redes de pesca: um tema crucial de la economia marítima hispanoromana. Mainake XXX. Cadiz, Espanha, 2008, p. 181 – 215).

 

GUARINELLO, Norberto Luiz. Arqueologia e cultura material: um pequeno ensaio. In: Arqueologia do Mediterrâneo Antigo: estudos em homenagem a Haiganuch Sarian. São Paulo: Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo. FAPESP: SBEC, 2011, p.161 – 169.

 

HERÓDOTO. História. Trad de Mário da Gama Kury. Editora Universidade de Brasília: Brasília, 1988.

 

SORIA-TRASTOY, María Teresa. Las estacas de madera de Haraga y la pesca en el-Fayum durante el Reino Medio.  Trabajos de Egiptología. Laguna: Espanha, N.11, 2020.

8 comentários:

  1. Olá, Dr.ª Maura Regina Petruski. Como vais?

    Primeiramente, parabenizo-a pelo ótimo texto e pela temática interessantíssima. Produções desse gênero muito me interessam e, embora já tenho lido uma ou outra coisa sobre o assunto, a bibliografia (sobretudo em língua portuguesa) ainda é escassa.

    Gostaria de saber se em tua pesquisa chegastes a observar algo sobre a especialização do trabalho no que se refere à pesca ou piscicultura no Antigo Egito. Isto é, se há figuras de pescadores profissionais, peixeiros e/ou piscicultores. Além disso, como entendes as pescas recreativas ou desportivas, ou o ato de pescar só aparece quando relacionado à alimentação?

    Até onde conheço há um certo desacordo entre os autores e gostaria muito de saber o que pensas desses assuntos. Desde já agradeço!

    Felipe Daniel Ruzene

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    1. Boa tarde Felipe, obrigada por ler o texto.

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  2. Realmente as fontes sobre esse tema estão começando a ser exploradas pelos historiadores, e até o momento elas evidenciam que a pesca era utilizada tanto para lazer quanto para acesso a alimentação.
    Quanto a estratificação social, era uma característica da sociedade egípcia, mas qualificação profissional era para um setor restrito da população e os pescadores não se incluíam nessa perspectiva.
    Abc

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  3. Maria Teresa Lopes da Silva10 de agosto de 2023 às 06:39

    Bom dia, Maura Regina Petruski
    Li com muito interesse o seu artigo.
    Gostaria de lhe perguntar se as embarcações utilizadas para navegar nas margens eram feitas de papiro e as que iam até ao interior do rio eram construídas de madeira.
    Por outro lado, gostaria de saber se concorda que os peixes no antigo Egito eram vistos como símbolo de fertilidade e proteção e, por isso, estavam associados ao poder da criação.
    Maria Teresa Lopes da Silva

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    1. Boa noite Maria Teresa!
      Obrigada por ler meu texto.

      As embarcações foram feitas de madeira em sua grande maioria, principalmente as maiores, porém o papiro também era utilizado.
      Era um símbolo bastante significativo para os egípcios, tanto que fez parte da construção da história desse povo, tanto nas questões políticas quanto na religiosa.

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  4. Boa noite. Muito legal o seu trabalho. A visão é de um Egito muito ligado ao Nilo e assim se leva a pensar que a pesca é algo comum. Assim, Gostaria de saber se o pescado era um alimento comum a todos ou restrito a nobreza? Obrigado Marlon Barcelos Ferreira

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    1. Boa noite Marlon!

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    2. Respondendo sua pergunta, sim, todos se alimentavam de peixes.

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