LAFCADIO HEARN E A REESCRITA DO ROMANCE DA LANTERNA DE PEÔNIA, EM “A PASSIONAL KARMA”, por Maria Silvia Duarte Guimarães

 

Lafcadio Hearn foi um escritor que viveu no Japão, dedicando grande parte de seus livros ao país. Nascido em 1850 na Grécia, mas criado na Irlanda, Hearn se mudou para os Estados Unidos ainda jovem, onde começou sua carreira como jornalista. Ele passou por Cincinnati, Nova Orleans e pela Martinica antes de aceitar uma oferta da Harper’s Weekly e se mudar para o Extremo Oriente.

 

O escritor chegou ao Japão em 1890, algumas décadas após a Restauração Meiji tirar o país do isolamento político proporcionado pelo Xogunato Tokugawa. O trabalho de Hearn consistia em escrever artigos que descrevessem o Japão para o leitor ocidental e, mesmo que tenha se desvinculado da Harper’s Weekly rapidamente, devido a conflitos de interesse, ele continuou a exercer a função de “intérprete do Japão” até o fim de sua vida.

 

Contos, ensaios, artigos e coletâneas. Hearn escreveu extensivamente sobre a cultura, os costumes e, principalmente, sobre o folclore japonês. Seu livro mais famoso é Kwaidan: Stories and Studies of Strange Things, uma coletânea de narrativas cujo foco é o sobrenatural, como fantasmas, reencarnações e yokai, isto é, seres fantásticos japoneses. Além disso, ao final do livro há uma seção separada que inclui três ensaios sobre insetos: borboletas, pernilongos e formigas.

 

Além de Kwaidan: Stories and Studies of Strange Things, também podem ser destacadas In Ghostly Japan e Glimpses of Unfamiliar Japan, coletâneas de natureza similar à primeira. Em uma nota introdutória a Kwaidan, Hearn afirma que seus contos são traduções de narrativas que encontrou em antigos livros japoneses, ou transcrições de relatos que ouviu de contadores de histórias. Segundo Michael Dylan Foster, em The Book of Yokai, porém, os textos de Hearn não podem ser considerados simplesmente traduções ou transcrições de narrativas que já existiam, mas trata-se de uma reescrita destas. Foster afirma:

 

Hearn probably never mastered Japanese well enough to collect and translate these tales by himself. In his early years in the country, he relied on a translator or his wife to collect stories orally, and in the later years he would carefully work through written texts, retelling them in his clear English prose. While his interests tended toward local legends, folktales, and beliefs, ultimately Hearn was not an ethnographer but a creative writer; his objective was not to scientifically record narratives but to recreate them in a literary format. [Foster, 2015, p. 57]

 

Segundo Foster, então, Hearn não era completamente fluente em japonês e, por isso, frequentemente recorria a ajuda de tradutores para compor suas narrativas. Isso confere à sua obra um traço singular, uma vez que acentua o caráter de reescrita de suas histórias. Em muitos de seus textos, o escritor acrescenta detalhes sobre como ouviu ou onde leu a narrativa pela primeira vez, podendo também comentar a sua opinião sobre as personagens ou sobre os fatos descritos.

 

No ensaio “O narrador”, Walter Benjamin afirma que a arte de narrar é “uma forma artesanal de comunicação”, [Benjamin, 2012, p. 221] e não coincidentemente ela foi capaz de florescer no meio artesão. Diferente da informação, cujo objetivo é transmitir o “puro em si” [Benjamin, 2012, p. 221] do que é relatado, a narrativa “mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele” [Benjamin, 2012, p. 221]. O filósofo ressalta que é comum que contadores de histórias iniciem seus relatos descrevendo as circunstâncias nas quais os ouviram, tal como Hearn o faz em seus textos. Benjamin compara esses narradores a oleiros, cujas mãos deixam marcas em cada um dos vasos que produzem.

 

O conto “A Passional Karma”, de Hearn, se inicia desta forma. O escritor explica que, após ver uma peça de teatro em Tóquio, é aconselhado por um amigo a escrever o conteúdo de sua história em inglês. Não se trata, porém, de uma tradução extremamente fiel do original, uma vez que Hearn afirma que procurou focar no aspecto fantasmagórico da trama, sendo que “[h]ere and there we found it necessary to condense the original narrative; and we tried to keep close to the text only in conversational passages - some of which happen to possess a particular quality of psychological interest” [Hearn, 2022, p. 37]. O escritor afirma:

 

One of the never-failing attractions of the Tokyo stage is the performance, by the famous Kikugoro and his company, of the Botan-Doro, or ‘Peony Lantern’. This weird play, of which the scenes are laid in the middle of the last century, is the dramatization of a romance by the novelist Encho, written in colloquial Japanese, and purely Japanese in local color, though inspired by a Chinese tale. I went to see the play; and Kikugoro made me familiar with a new variety of the pleasure of fear. [Hearn, 2022, p. 36]

 

Desse modo, Hearn não somente escolhe reduzir a narrativa original, como também modifica seu título. A expressão “Botan-doro” pode ser traduzida, literalmente, como “lanterna de peônia”, mas o escritor escolhe dar ao seu relato o título de “A Passional Karma” ou, em português, “um karma passional”. Em Yurei: The Japanese Ghost, Zack Davisson sugere que a escolha de Hearn possa ter sido motivada pelo seu desejo de focar no aspecto budista da narrativa, uma vez que, diferente de outras versões do relato, o escritor descreve os personagens como amantes não apenas em uma, mas em várias encarnações.

 

De acordo com Hearn, a peça de teatro teria sido baseada em um romance de San’yutei Encho que, por sua vez, teria se inspirado em um antigo conto chinês. No entanto, Davisson sugere que a versão de Encho não é a única nem mais antiga reescrita da história, sendo esta tendo sido publicada em japonês pela primeira vez em 1666, por Ryoi Asai. O pesquisador afirma que “Ryoi Asai liked to work with source material, something he could take apart and rebuild, rather than creating from scratch” [Davisson, 2020, p. 100]. Desse modo, para a sua coletânea de kaidan, ou “contos estranhos”, Otogi boko, Asai adaptou narrativas de contos budistas chineses, editando aqueles que achava mais interessantes de acordo com o seu gosto.

 

Jian deng xin hua é, segundo Davisson, o livro usado como referência por Asai. Escrito por Qu You no início da dinastia Ming [1368-1644], trata-se de uma coletânea de contos eróticos disfarçados de lições budistas moralizantes. A versão de Qu You é uma narrativa dividida em duas partes: na primeira, um jovem é seduzido pelo fantasma de uma mulher e morre; na segunda, ele é levado ao juiz do mundo dos mortos e, juntamente com o fantasma que o seduziu, enfrenta um julgamento moral. Davisson afirma:

 

Ryoi Asai had no interest in obscure Chinese customs or otherworldly judges and moral punishment. He wasn’t looking to give a sermon. Ryoi moved the setting to Kyoto and jettisoned all of the didactic elements, including the whole second half of the story. The removal of the religious elements of the story is particularly interesting when you consider that Ryoi Asai himself was a Buddhist priest. [Davisson, 2020, p. 101-102]

 

Dessa forma, Asai não somente muda a localidade dos fatos narrados para o Japão, mas também recorta toda a segunda parte da história. Em sua versão, Encho também faz certas modificações. Como se tratava de uma peça teatral e, especialmente, de um rakugo, um tipo de performance na qual apenas um ator conta ao público a narrativa, pode-se dizer que era uma versão mais flexível. Em quase todas as suas encenações, ela se modificava. Encho também mudou o nome de alguns personagens, e adicionou um final um pouco mais feliz para o relato, quando comparado ao texto de Asai.

 

Para Davisson, a influência do público é notável em ambas as versões. Asai escreveu no período Edo, e “his audience craved gore and chills more than anything else” [Davisson, 2020, p. 105]. No entanto, Encho escreveu no período Meiji, e seu público já havia tido um contato mais extenso com a cultura ocidental. Peças como as de William Shakespeare já eram conhecidas e haviam se tornado populares e, talvez por isso, ele tenha dado à sua versão um final mais romântico.

 

“A Passional Karma” relata o romance da jovem O-Tsuyu e de Hagiwara Shinzaburo. O-Tsuyu era a filha de Iijima Heizayémon, um samurai que vivia na região de Yedo, e era conhecido por sua violência. Como a jovem e a madrasta não se davam bem, ela havia se mudado para uma casa em Yanagijima, levando consigo apenas uma criada. Um dia, o médico da família a visitou, levando consigo Hagiwara, um samurai belo e educado. Os personagens se apaixonam à primeira vista e, já nesse primeiro encontro, confessam o amor que sentem um pelo outro. Quando se despedem, O-Tsuyu sussurra ao ouvido de Hagiwara que, caso eles não voltassem a se encontrar, ela certamente morreria.

 

A afeição dos jovens não passou despercebida ao médico, que, com medo da reação que o pai da garota poderia ter, se recusou a levar o samurai consigo em outras visitas que fez à residência de O-Tsuyu. O primeiro encontro foi, então, o único que os jovens tiveram em vida. Hagiwara não poderia visitar a casa de O-Tsuyu desacompanhado, uma vez que isso implicaria em uma quebra de etiqueta e, não recebendo nenhum convite do médico, não foi capaz de visitá-la. Alguns meses depois, a garota morreu acreditando que seu amor não era correspondido. Sua criada, O-Yoné, também morreu pouco tempo depois, devido a tristeza que sentiu pelo destino de sua senhora. Ambas foram enterradas juntas.

 

Hagiwara tomou conhecimento da morte de O-Tsuyu apenas algum tempo depois do ocorrido. Surpreso, triste e desconsolado, o samurai decide realizar os ritos budistas para a morte da garota. Hearn narra: “But as soon as he found himself again able to think clearly, he inscribed the dead girl’s name upon a mortuary tablet, and placed the tablet in the Buddhist shrine of his house” [Hearn, 2022, p. 41]. Dedicado, Hagiwara fazia oferendas e repetia mantras todos os dias perante a tábua mortuária de O-Tsuyu.

 

O segundo encontro do casal se deu durante o Bon, o festival dos mortos. Hagiwara encontrou O-Yoné e O-Tsuyu, que carregava consigo uma lanterna de peônia, andando perto de sua casa. Em um primeiro momento, e mesmo após alguns dias, o samurai não percebe que a garota e sua criada estão, na verdade, mortas, e demonstra surpresa e alegria ao reencontrá-las. Ainda apaixonado, Hagiwara não consegue conter o seu desejo, e mantém relações sexuais com O-Tsuyu por vários dias. A garota e a criada o encontravam sempre à noite, quando não eram vistas por nenhum vizinho.

           

Davisson aponta que o sexo entre os vivos e os mortos é um tema recorrente na literatura japonesa, principalmente quando se trata de yurei. Ele afirma:

 

Sex is the cornerstone of “Botan doro”, the tale of Otsuyu and the Peony Lantern. The taboo nature of the tale is designed to titillate, not frighten. And that has kept the story alive for centuries. Of all the kaidan told and retold in Japan, “Botan doro” has stayed relevant the longest. Because sex - especially when combined with death - never goes out of style. [Davisson, 2020, p. 100].

 

Yurei é o termo japonês que designa um tipo muito específico de criatura sobrenatural: fantasmas femininos. Enquanto o termo yokai parece designar uma variedade maior de seres fantásticos, como raposas [kitsune] e guaxinins [tanuki] que possuem poderes, ou objetos animados [tsukumogami], yurei apresenta uma descrição mais bem definida. São fantasmas de mulheres, com longos cabelos negros desgrenhados, que podem ser descritas como muito belas, como O-Tsuyu, ou como aterrorizantes. Davisson sugere, ainda, que em grande parte dos relatos, esses fantasmas se apegam ao mundo dos vivos motivados por um grande ódio, ou por um grande amor.

 

Talvez o exemplo mais conhecido de yurei pelo público ocidental seja Sadako Yamamura, protagonista do filme Ringu, de 1998. O sucesso de Sadako foi tão grande que ela ganhou uma adaptação estadunidense, a personagem Samara Morgan, do filme O Chamado, de 2002. Embora americana, Samara conserva os elementos típicos de uma yurei: os longos cabelos e escuros, a palidez, o aspecto assustador e o rancor que a prende ao mundo dos vivos.

 

Diferente de Sadako e Samara, porém, O-Tsuyu não é assustadora, pelo contrário, é extremamente bela, sedutora e não possui um grande rancor. Embora tenha morrido acreditando que Hagiwara não correspondia suas afeições, ela não se prende ao mundo dos vivos por ódio, mas sim por amor.

 

Amor e morte estão fortemente entrelaçados no enredo de “A Passional Karma”. No final do relato, os corpos de Hagiwara e O-Tsuyo são encontrados sem vida, em um contraste assustador: o dele ainda saudável, mas o dela em decomposição. Davisson afirma que, em todas as suas versões, essa justaposição de vida e morte é sempre o seu climax.

 

Hearn, portanto, não faz nada muito diferente do que Asai e Encho já haviam feito antes. Ele reescreve o romance da lanterna de peônia, focando nos elementos que, na sua opinião, seriam mais interessantes aos olhos do público ocidental. Ele também adiciona seu próprio ponto de vista, abrindo a sua narrativa com um breve relato da circunstância em que conheceu a história, e de porque decidiu reescrevê-la. Ao final do texto, o escritor relata como tentou, sem sucesso, encontrar o túmulo das personagens na cidade onde se passa a história. Como os oleiros que Benjamin menciona, que deixam as marcas de seus dedos em suas obras, estas são as marcas que Hearn deixou em Botan doro.

 

Referências

Maria Silvia Duarte Guimarães é doutoranda em Estudos Literários, Teoria da Literatura e Literatura Comparada na Universidade Federal de Minas Gerais.

 

BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: _______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre a literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2012. p. 213-240.

 

DAVISSON, Zack: Yurei: The Japanese Ghost. Seattle: Chin Music Press, 2020.

 

FOSTER, Michael Dylan. The Book of Yokai: Mysterious Creatures of Japanese Folklore. Oakland: University of California Press, 2015.

 

HEARN, Lafcadio. Glimpses of Unfamiliar Japan. Singapore: Tuttle Publishing, 2009.

 

HEARN, Lafcadio. In Ghostly Japan. Singapore: Tuttle Publishing, 1971a.

 

HEARN, Lafcadio. Kwaidan: Stories and Studies of Strange Things. Singapore: Tuttle Publishing, 1971b.

 

HEARN, Lafcadio. Of Ghosts and Goblins. Great Britain: Penguin Random House UK, 2022a.

 

HEARN, Lafcadio. A Passional Karma. In: ______. Of Ghosts and Goblins. Great Britain: Penguin Random House UK, 2022b.

 

RINGU. Direção: Hideo Nakata. Japão: Toho Co., Ltd., 1998. (96 min).

 

O CHAMADO. Direção: Gore Verbinski. Estados Unidos: DreamWorks Pictures, 2002, (115 min)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.