INTERLÍNGUA NA TRADUÇÃO DE MENSAGENS ENVIADAS POR KAI, DO EXO, NO BUBBLE (SAID CUTELY), por Vitória Ferreira Doretto

  

O fandom, por ser um conjunto de “estruturas e práticas que se formam em torno de peças de cultura popular” [Fraade-Blanar; Glazer, 2018, p. 23], é um espaço em que vários fãs produzem e consomem materiais sobre o objeto cultural de seu agrado. Uma das atividades desenvolvidas por estes grupos de fãs é a tradução de conteúdos (entrevistas, mensagens em produtos promocionais, vídeos especiais, letras de músicas e uma variedade sem fim de materiais) da língua original do produto cultural para outras línguas, por exemplo para a língua materna de uma das comunidades de fãs. O mesmo ocorre nos fandoms de música pop sul-coreana (K-pop), em que cada grupo ou solista angaria fãs que formam seus fandoms. E é de um dos fandoms de K-pop, a saber o EXO-L, que encontramos o estudo de caso que iremos comentar brevemente neste texto.

 

EXO-L é o nome dado ao fandom composto por fãs do grupo de K-pop sino-coreano EXO, que debutou em 2012 sob o gerenciamento da SM Entertainment e é atualmente composto por nove integrantes — Xiumin, Suho, Lay, Baekhyun, Chen, Chanyeol, D.O., Kai e Sehun. Como qualquer outro fandom, no EXO-L existem grupos de fãs que se dedicam a criar fanarts (ilustrações dos integrantes), edits (edições de imagem ou vídeo com os cantores), fanfics (histórias com os integrantes), vídeos com as músicas lançadas, e/ou compartilhar notícias sobre o grupo, republicar imagens promocionais, fazer mutirões de votações etc. Estas atividades são essenciais para a continuidade do fandom, pois, a “socialização é umas das mais básicas atividades de fã” [Fraade-Blanar; Glazer, 2018, p. 147]. E, no caso do EXO-L, para os fãs que não são falantes de coreano, a língua materna de oito dos integrantes do EXO, a tradução é uma das atividades mais importantes — o compartilhamento de notícias e informações não seria possível se não houvesse a tradução do coreano para as outras línguas faladas pelos fãs.

 

Dito isto, neste texto teceremos breves considerações sobre a interlíngua — noção de Maingueneau [2006] — na tradução para o inglês e para o português de cinco mensagens enviadas em coreano pelo cantor sul-coreano Kai, integrante do EXO, no serviço Bubble do aplicativo Lysn — tradução feita por fãs e publicada em dois perfis no Twitter.

 

Analisar esta atividade editorial num âmbito não-profissional supõe que alguns pontos sejam considerados: são traduções feitas por pessoas que (supostamente) são fluentes nas línguas de saída e de chegada (coreano e inglês, por exemplo), mas que não necessariamente se dedicam a atividades que envolvem o trabalho com textos ou linguagens; são feitas majoritariamente logo em seguida da publicação ou divulgação do texto original, o que não deixa muito tempo para revisões ou refinamentos linguísticos; e ganham circulação ampla principalmente por meio das redes sociais dos fãs — aqui também podemos considerar que “para alguns, o fandom funciona como um jeito de desenvolver um conjunto de habilidades. Criação de conteúdo, liderança e evangelização — tudo isto é parte importante do fandom” [Fraade-Blanar; Glazer, 2018, p. 179], e a tradução amadora pode ser a porta de entrada para uma profissão futura ou até mesmo ser incluída em currículos.

 

As cinco mensagens escolhidas foram enviadas pelo Bubble (Figura 1), um serviço pago do Lysn. O Lysn é um aplicativo para celular coreano que foi criado pela empresa sul-coreana Dear U exclusivamente para a SM Entertainment e lançado em 2018. Seu foco é a comunicação de artista para fã e os grupos de fã-clube oficiais (com ou sem assinatura). No aplicativo estava a comunidade oficial do EXO-L até que seu serviço foi encerrado em julho de 2022 pela SM — suas funções foram transferidas para outro aplicativo, chamado Kwangya Club, que será encerrado em setembro de 2023 e seus serviços serão transferidos para o aplicativo Weverse.

 

Figura 1 - Bubble

Fonte: Elaborado pela autora a partir de Lysn.

 

O Bubble (Figura 1) é um serviço pago oferecido dentro do Lysn (e fornecido pela Dear U) em que o artista envia mensagens de texto, vídeos, áudios e fotos diretamente para o celular do assinante, que pode responder com mensagens de texto. O dear U Bubble possibilita a comunicação entre artistas e fãs (numa espécie de relação parassocial que não abordaremos aqui) e oferece tradução mecânica (feita por um dos dois softwares de tradução disponíveis no aplicativo, Google Translate, do Google LLC, e Papago, da Naver Corp.) das mensagens de texto em coreano para inglês, japonês, mandarim, vietnamita, tailandês, indonésio (ou bahasa Indonesia) e espanhol. Inicialmente, o serviço estava disponível apenas para os artistas agenciados pela SM Entertainment, mas atualmente alguns artistas das empresas FNC Entertainment, TOP Media, RBW, Jellyfish Entertainment, JYP Entertainment, WM Entertainment e Play M Entertainment também usam o serviço. A assinatura do Bubble pode ser feita para quantos artistas o fã quiser (um, dois, três... todos de um mesmo grupo, vários de grupos diferentes) e o valor cobrado é em dólar (Figura 2) — $3,99 para um artista, $6,99 para dois, $9,99 para três... e assim por diante. O assinante escolhe quantos “tickets” de um grupo irá comprar e depois seleciona os integrantes que deseja receber mensagens (Figura 2).

 

Figura 2 – Perfil do Kai e integrantes do EXO disponíveis no Bubble em 2023

Fonte: Elaborado pela autora a partir de Lysn.

 

Em 2020 os integrantes do EXO que estavam “em atividade” — ou seja, que não estavam alistados ou afastados de atividades oficiais por qualquer motivo — se juntaram ao Bubble e a partir do momento em que começaram a enviar mensagens pelo aplicativo, fanbases (grupos de fãs) de diversos países passaram a também traduzir as mensagens enviadas — como comentado, geralmente é bastante comum a prática de tradução de outros conteúdos relacionados aos integrantes do grupo. Não foi possível que todos os integrantes do EXO participassem do aplicativo desde o começo porque alguns estavam no período de serviço militar (por exemplo, Xiumin e D.O.) e o integrante chinês, Lay, não tem participado regularmente das atividades do grupo. Nesta “primeira leva” de membros do EXO no Bubble estava Kai — como ele começou a cumprir seu período de serviço militar, a partir de maio de 2023 a assinatura de seu Bubble ficou indisponível (é possível conferir os membros disponíveis na Figura 2).

 

O artista juntou-se a SM Entertainment em 2007, com 13 treze anos, ao vencer o 10th SM Youth Best Contest. Durante a juventude, viveu em um dormitório com outros trainees e recebeu aulas de canto, dança e atuação, além de participar com Suho e Chanyeol do clipe da música "HaHaHa Song" do grupo TVXQ em 2008. Desenvolveu conhecimento técnico de hip hop, popping e locking depois de entrar na SM e se graduou na Escola de Artes Dramáticas de Seul em 2012. Kai foi o primeiro membro do EXO a ser formalmente apresentado ao público em 23 de dezembro de 2011.

 

Dos mais de 1000 dias de mensagens enviadas por Kai no aplicativo, escolhemos um conjunto de cinco mensagens enviadas pelo artista em dia 25 de novembro de 2020 (Figura 3), na época do lançamento de seu primeiro álbum como solista, “KAI ()”.

 

Como estas mensagens são escritas em coreano, que possui palavras e formas de tratamento bastante específicos, diferente do inglês e português por exemplo, ainda que haja tradução mecânica para inglês e outros idiomas diretamente no aplicativo (conforme mostrado na Figura 3), os tradutores-fãs precisam entender não só a dinâmica e funcionamento do idioma coreano, mas descobrir como traduzir no texto em inglês ou português os detalhes que apenas certas partículas ou certas formas de escrita em coreano passam para o leitor e que não existem no idioma de chegada.

 

Figura 3 – Capturas de tela do Bubble

Fonte: Bubble via Lysn. Elaborado pela autora.

 

Vejamos então as mensagens deste conjunto.

 

A primeira mensagem é “앨범 진짜 예쁘지 신경염첨 썼어!” (Figura 3) e a tradução automática para o inglês disponibilizada pelo aplicativo é “The album is really pretty” (Figura 3), já a tradução feita pela fanbase INTL KAI é mais complexa: “The album is really pretty right, I put a lot of thought into it! (said cutely)” (Figura 4), e sua tradução feita pela fanbase brasileira KAI BRASIL para o português é “O álbum é muito bonito, certo? Eu prestei muita atenção nisso!” (Figura 5) — são três traduções diferentes para a mesma mensagem, a tradução mecânica não traz a segunda parte da mensagem (“I put a lot of thought into it” ou “eu prestei muita atenção nisso”) e a tradução brasileira não usa a indicação de entonação da mensagem (“said cutely”). Na tradução feita pela INTL KAI (Figura 4) de três das próximas quatro mensagens há novamente a indicação de entonação “fofa” ou a complementação das informações (conforme destacado em negrito): “While the album [details] were being released I coudn’t help but upload a really cute Raeonee ”, “But why did I look so swollen that day on the photocard studio vídeo? (said cutely)”, “Slepyyy”, “But I have to post on Instagram (said cutely)“, enquanto a tradução para o português (Figura 5) não faz este tipo de inclusão, mas acrescenta acentuação solta como forma de entonação na mensagem expressando sono (destacado em negrito), o que não aparece na tradução em inglês: “Eu não pude deixar de postar uma foto extremamente fofa do Raeonnie no meio do lançamento do álbum”, “mas porque meu rosto parecia tão inchado naquele dia no vídeo do Photocard Studio?”, “Estou com sono~~” , “Mas tenho que postar as fotos no insta”.

 

Neste conjunto analisado, a fanbase INTL, por não ter em inglês um termo modificador da forma que o idol usou em sua mensagem, precisa indicar entre parênteses que a frase não é simplesmente aquilo que está escrito, mas que há um tom “fofo” no texto — o mesmo acontece na fanbase brasileira, que neste caso, ao contrário do que faz com certa frequência, não incluiu o “escrito fofinho” no final, o que se dá, possivelmente pela fonte da tradução do coreano para inglês. As traduções para o português do conjunto analisado foram retraduzidas da tradução do coreano para o inglês feita por outro usuário (mye0nportrait) da rede social (Figura 5) que provavelmente não acrescentou as indicações de entonação e contexto ao texto traduzido, em outras situações, quando o texto em inglês utilizado como fonte para a tradução para o português é da fanbase INTL KAI, há o acréscimo de contextualizações, explicações e indicações de entonação fofa (como no exemplo da Figura 6, que traz trechos do conjunto de mensagens enviadas por Kai em 27 de novembro de 2020), pois isto está no texto-fonte.

 

Figura 4 – Sequência de mensagens traduzidas pela fanbase INTL KAI

Fonte: https://twitter.com/INTLKJI

 

Figura 5 – Sequência de mensagens traduzidas pela fanbase KAI BRASIL

Fonte: https://twitter.com/exokaibrasil

 



Figura 6 – Sequência de mensagens traduziras pela fanbase KAI BRASIL

Fonte: https://twitter.com/exokaibrasil/status/1332371828594106370

 

Aqui podemos presenciar o movimento de transformação entre linguagens, tradições e culturas que Ribeiro [2020] indica estar envolvido na tradução:

 

“O ato tradutório consiste no movimento de transformação entre linguagens, tradições, culturas, tempo e espaço. É o trânsito entre escrever e transcrever, de ir além do que está registrado, de recuperar a história inserida entre as letras e sons que revelam um pensamento.

 

É a ação de transcriar discursos que transpassem os limites do concreto para atingir a imaginação, dentro dos parâmetros da similaridade. É percorrer as vias da analogia que produzem articulações entre a causa e o efeito.

 

Nesta altura, a tradução já se converteu numa transposição de caracteres que se caracterizam pela singularidade e contiguidade. Processo de concretização do que é fluido, mas preso por convenções elaboradas pelo pensamento humano.” [Ribeiro, 2020, p. 126]

 

Traduzir algum texto sempre é um desafio, seja porque a língua de chegada não possui termos que correspondam ao sentido dos termos usados na língua original, seja por qualquer outra das inúmeras questões que aparecem ao longo do processo de tradução.

 

Maingueneau [2006, p. 182, grifo nosso] diz que:

 

“o escritor não enfrenta a língua, mas uma interação entre línguas e usos, aquilo que denominamos interlíngua. Vamos entender por isso as relações que entretêm, numa dada conjuntura, as variedades da mesma língua, mas também entre essa língua e as outras, passadas ou contemporâneas. É a partir do jogo dessa heteroglossia profunda, dessa forma de ‘dialogismo’ (Bakhtin), que se pode instituir uma obra.”

 

Esta noção de interlíngua de Maingueneau [2006] ultrapassa “as noções correntes de intertextualidade e de interdiscurso, [e] articula os códigos linguageiros à semântica global das enunciações” [Salgado, 2006], de forma que “não se trata apenas de um léxico especial ou específico, mas também de uma organização sintática e mesmo textual” [Possenti, 2020, p. 25]. Trata-se então de considerar a integração entre língua e uso, de mobilizar a língua que está entre a língua usada no cotidiano e a língua que se coloca como outra, como uma outra forma de dizer; interlíngua se refere a uma forma própria de dizer algo, a um código linguageiro próprio do autor e que é recebido pelo leitor de tal forma que sua sensação é de que não haveria outra maneira de ser dito ou escrito além daquela. Nessa noção de código linguageiro se associam estreitamente duas acepções de “código”: como “sistema de regras e de signos que permite uma comunicação” [Maingueneau, 2006, p. 182] e como um “conjunto de prescrições: por definição, o uso da língua que a obra implica se apresenta como a maneira pela qual se tem de enunciar, por ser esta a única maneira compatível com o universo que assim se instaura” [Maingueneau, 2006, p. 182]. Assim:


“O código linguageiro resulta de uma determinação da interlíngua, isto é, da interação das línguas e dos registros ou das variedades acessíveis — tanto no tempo como no espaço — em uma conjuntura determinada. A interlíngua é, portanto, o espaço máximo do que se instauram os códigos linguageiros. Um posicionamento define seu próprio código linguageiro por sua maneira singular de gerir a interlíngua.” [Charaudeau; Maingueneau, 2008, p. 97]

 

Deste modo, a interlíngua trata do linguajar característico, único de cada autor, do que se costuma chamar de estilo de escrita. Ela “não é uma língua  natural nem um gênero, mas sim algo da ordem do constitutivo de um dado  posicionamento de uso dentro da própria codificação da língua” [Ponsoni; Loureiro; Garbini, 2021, p. 146]. E é este posicionamento de uso dentro da língua, este estilo que observamos nas mensagens enviadas por Kai, sua forma “fofinha” vista nas mensagens enviadas para os fãs no aplicativo é característica de seu gestual e de sua forma de escrever.

 

E o mesmo acontece nas traduções, incluindo nas traduções feitas por grupos de fãs que são produtores [de conteúdo] ativos no fandom. A pessoa encarregada de traduzir um texto, neste caso, as mensagens enviadas no Bubble, terá que não só traduzir as palavras, mas as interações e usos que este texto evoca e o tom que ele intende passar.

 

Quando as fanbases vistas aqui indicam o “said cutely” ou “escrito fofinho”, inscrevem as mensagens na imagem que o idol tem no fandom — não iremos nos deter profundamente nisto, mas esta forma fofa de escrita também se relaciona com o ethos do Kai —, mas também transcreve variações da escrita em coreano que outros idiomas não conseguem atingir em traduções literais ou traduções mecânicas.

 

Referências

Ma. Vitória Ferreira Doretto é doutoranda e mestra em Estudos de Literatura pela Universidade Federal de São Carlos, integrante do Grupo de Pesquisa COMUNICA - inscrições linguísticas na comunicação, do Laboratório de Escritas Profissionais e Processos de Edição e pesquisadora associada à Curadoria de Estudos Coreanos da Coordenadoria de Estudos da Ásia da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: vitoriaferreirad23@gmail.com.

 

CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2008.

 

FRAADE-BLANAR, Zoe; GLAZER, Aaron M. Superfandom: Como nossas obsessões estão mudando o que compramos e quem somos. Tradução de Guilherme Kroll. Rio de Janeiro: Anfiteatro, 2018.

 

MAINGUENEAU, Dominique. Discurso Literário. São Paulo: Contexto, 2006.

 

PONSONI, Samuel; LOUREIRO, André Terra Oliveira; GARBINI, Raquel Tavares. “Interlíngua E códigos Linguageiros da língua dos Sapateiros de Passos” in Estudos da Língua(gem), vol. 19, n. 2, 2021, p. 139-49. https://doi.org/10.22481/el.v19i2.9948

 

POSSENTI, Sírio. “Notas sobre interlíngua” in Revista Estudos em Letras, vol. 1, n. 1, 2020, p. 21–36. Disponível em: https://periodicosonline.uems.br/index.php/estudosletras/article/view/5192

 

RIBEIRO, Josimar Gonçalvez. Tradução. In: RIBEIRO, Ana Elisa; CABRAL, Cléber Araújo (Org.). Tarefas da Edição. Belo Horizonte: Impressões de Minas; LED, 2020. Disponível em: http://www.letras.bh.cefetmg.br/wp-content/uploads/sites/193/2019/10/Tarefas-da-Edic%CC%A7a%CC%83o-arquivo-digital-07-10-20.pdf

 

SALGADO, Luciana Salazar. “A interlíngua de Atrás da Catedral de Ruão” in Crítica & Companhia, ano 6, 2006. Disponível em: http://www.criticaecompanhia.com.br/luciana.htm

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