CULTURA E DINÂMICA SOCIAL, A PARTIR DA DISCUSSÃO DO FILME: RAN (1985), DE AKIRA KUROSAWA, por Rafael Egidio Leal e Silva

 

Este artigo tem por objetivo analisar e relacionar o tema da cultura e do comportamento social no filme Ran (1985) de dirigido por Akira Kurosawa (1910-1998), a partir da historicidade da obra de arte. Tal proposta justifica-se plenamente, pois, ao nosso ver, a análise de filmes é de grande relevância tanto ao cientista da área de Ciências Humanas, como ao futuro educador. Os filmes podem conter elementos válidos para a interpretação/observação de determinada situação social ou cultural, sob determinada teoria. Serve, por outro lado à prática do educador pois esses mesmos elementos norteadores da pesquisa científica poderão servir de apoio pedagógico para debates, trabalhos, ou mesmo para o despertar de uma visão mais crítica da realidade social em sala de aula. A formação educativa implica em muito mais que a apreensão de conteúdos ditos científicos, ou da realidade social (ainda mais considerando as Ciências Sociais e Humanas) mas também na formação humana integral e assim, as artes devem servir de subsídios para uma compreensão de homem mais próxima dessa concepção.

 

Os filmes como forma de arte guardam uma particularidade bastante interessante. É considerada uma das últimas formas de arte, já inserida no contexto de uma indústria de entretenimento. Assim, as produções fílmicas envolvem centenas de pessoas, entre artistas e técnicos. A tecnologia envolvida também deve ser considerada, uma vez que como entretenimento, os filmes procuram atrair o grande público, com a promessa de diversão a qualquer custo, considerando também que a produção de um filme é extremamente cara. No entanto, o filme aqui analisado é mais voltado a um publico específico, e daí ser considerado um filme de “arte” (em contraposição ao “enlatado”, em referência ao filme industrial, dos grandes públicos. No entanto, a vida reproduzida no cinema é datada, ou seja é produzida em contexto histórico, o que corresponde à modernidade capitalista: “Cada época crea sua arte. Las grandes épocas, las épocas en que la humanidad vive una vida particularmente elevada e intensa, en que se producen cambios sociales que ponen en movimiento a masas populares de millones de seres, dan vida a un gran y elevado arte.” (Korin, [s.d.]: 93).

 

A análise aqui será pautada pela observação histórica da materialidade retratada na película. Desta forma, Ran (1985) apresenta a sociedade japonesa feudal do século XVI, principalmente o momento de destruição do poderoso clã nobre Ichimonji, e da própria decadência da nobreza japonesa. O filme é inspirado na peça de teatro de W. Shakespeare, Rei Lear (2016), que conta a história do Rei que vê a destruição de seu reino após dividi-lo entre suas filhas. Desta forma, como relacionar a estória shakesperiana, típica da Inglaterra na transição do século XVI-XVII, com o Japão Feudal? E ainda devemos considerar que Ran (1985) é uma obra de arte do fim do século XX, portanto, guarda ali todas as suas contradições da época e da sociedade que o produziu.

 

A primeira observação geral que faremos é que a arte, e qualquer outra produção da sociedade humana, implica na existência de indivíduos humanos vivos. Assim, acerca de que homens estamos falando? Como poderíamos apreender esse homem? O homem, nesta visão, não poderia ser um modelo ideal com validade universal, mas deve ser apreendido historicamente, em sua realidade humana e material de cada época e espaço em questão. Assim, o homem passa a ser visto a partir de sua produção material, ou seja a produção dos meios necessários para sua manutenção no mundo, e não mais como o produto do mundo.

 

“A maneira como os indivíduos manifestam sua vida reflete exatamente o que eles são. O que eles são coincide, pois, com sua produção, isto é, tanto com o que eles produzem quanto com a maneira como produzem. O que os indivíduos são depende, portanto, das condições materiais de sua produção.” (Marx & Engels, 2002, p. 11)

 

O pensamento marxiano conclui, assim, que cada época resulta na configuração de um determinado tipo de homem. No entanto, a história é dinâmica, refletida nas necessidades dos homens, que produzem os meios de satisfazê-las, e na formação de classes sociais, que, pela divergência de interesses e pela oposição na forma de produzir a realidade, estão em verdadeira luta – a luta de classes.

 

Em um processo dinâmico e histórico, em determinado momento a estrutura econômica desenvolvendo-se em outro sentido (por exemplo, a transformação do modo feudal para o capitalista) passa a conflitar com a superestrutura jurídica e política, comprometida com a manutenção da antiga ordem. Desses entraves, surgem um momento de revolução social, de renovação da superestrutura, onde ela passará a se adequar à nova realidade. E como a teoria da materialidade pode ser apreendida em um filme, especificamente, Ran (1985)?

 

Ran significa caos em japonês, inicia quando o poderoso Lorde Hidetora Ichimonji resolve dividir seu feudo entre os três filhos: Taro, Giro e Saburu, conservando para si o título e os privilégios de grande Lorde, além da guarda pessoal e a moradia de sua corte em um de seus castelos. Taro e Giro ambiciosamente concordam com o pai e Saburu, o filho mais novo, discorda veementemente desta atitude. Há um elemento importante aqui que Hidetora, senil naquele momento, foi um grande guerreiro no passado que conquistou a custa de muito sangue os feudos que compunham o vasto território de seu reino. Hidetora angariou para si uma infinidade de inimigos, inclusive dentro de sua própria família, já que suas noras Kaede (esposa de Taro) e Sue (esposa de Giro) tiveram suas famílias massacradas e seus castelos arrasados por ele. Kaede tem em si o desejo de vingança com a destruição completa do clã Ichimonji. Sue, budista, preferiu o perdão ao sogro. Hidetora, contrariado, deserda Saburu e divide as terras entre os filhos. Contudo, a previsão de Saburu se realiza: Taro, influenciado por Kaede, resolve extinguir os privilégios do pai, fazendo-o assinar um contrato, onde ele abria mão dos privilégios de Grande Lorde.

 

É interessante pensarmos aqui que o contrato é uma figura jurídica e que, portanto, faz parte da superestrutura da sociedade. A história se passa em um momento de grande transformação social no Japão: “Na segunda metade do século XVI, uma série de guerras civis massivas entre os principais potentados daimyo levaram a uma unificação vitoriosa do país por sucessivos comandantes militares” (Anderson, 2004, p. 348). Assim, a estrutura feudal estava em profunda crise, e sendo assim, o filme trata de uma sociedade que estava desaparecendo. Ante a figura do contrato, Hidetora não sabe como agir, uma vez que em sua sociedade o contrato escrito não tinha a mesma validade da palavra empenhada com honra. Hidetora assina o contrato como uma profunda ofensa. É interessante notarmos o choque que o nobre tem com os atos dos filhos. O Japão é caracteristicamente uma sociedade que preza fortemente os laços familiares, sendo que isto também era muito forte entre a nobreza, mais até que a nobreza européia, comparativamente:

 

“O feudalismo europeu sempre foi abundante em disputas interfamiliares e caracterizado por extrema litigiosidade; o feudalismo japonês, entretanto, não só careceu de qualquer tendência legalista, mas seu arranjo quase patriarcal tornou-o mais autoritário pelos direitos paternos extensivos de adoção e deserdação, que efetivamente reprimiam a insubordinação filial do tipo comum na Europa.” (Anderson, 2004, p. 348).

 

Tanto a indignação de Saburu quanto a audácia de Taro foram uma novidade para o mundo de Hidetora. No entanto, com a transformação do modo de produção japonês, a superestrutura política, jurídica e familiar também se alterava, e essas eram as condições que o ex-guerreiro deveria enfrentar. É interessante notarmos que Shakespeare também soube mostrar em seus personagens as transformações que a modernidade trazia, com muita sutileza. O príncipe Hamlet (2016), por exemplo, ante a corrupção e a podridão que envolviam a trama que culminou na morte de seu pai o Rei da Dinamarca e que envolvia até sua mãe pelo jogo de poder sente-se um estranho na corte, mas obstinado pela vingança. O príncipe, que representa justamente o homem que vê a transformação do mundo e não se sente parte daquela realidade que lhe salta aos olhos, em determinado momento, ao fugir para a Inglaterra, encontra uma tropa de soldados noruegueses que se dirigiam a uma batalha por um feudo na Polônia. Vejamos alguns trechos do diálogo:

 

HAMLET: Vão contra toda a terra da Polônia,

Ou para alguma fronteira?

O CAPITÃO:  Para falar a verdade, sem rodeios,

Vamos tomar uma pequena terra

Que nada vale além do simples nome (...).

HAMLET: A Polônia não há de defendê-la.

O CAPITÃO: Sim, ela já se acha guarnecida.

HAMLET: Duas mil almas, vinte mil ducados,

Não são o preço dessa ninharia!

Esse é o abscesso da paz e da opulência,

Que arrebenta por dentro e não exibe

Qual a causa da morte. (...). (Shakespeare, 2016, p. 463)

 

Vemos que o valor das coisas já se alterava. Hamlet e o capitão eram homens do mundo, e sua noção de valor já estava mais ligada ao valor burguês, ao valor do mercado: se o feudo valesse muito, o sacrifício compensaria. Hamlet se sentia estranho na corte, onde os valores da nobreza feudal vigiam, e isso o angustiava profundamente. Com Hidetora acontece o contrário. Seus valores estavam morrendo junto com ele, e a nova realidade o desesperava. O momento era, inclusive, de extrema violência. Rejeitado também por Giro (este mais ambicioso que o irmão Taro), o nobre vai para o terceiro castelo, o que seria de Saburu. Neste momento, há uma cena tão bela quanto violenta: os dois exércitos de Taro e Giro se unem para massacrar o que restara ao pai: seus guardas e suas concubinas, além da morte de Hidetora. Neste momento, Taro é assassinado por um dos asseclas de Giro, que assume o poder absoluto do feudo. Hidetora escapa com vida, apenas ele e Koyiomi, o bobo da corte, mas a insanidade toma conta dele. Um motivo é que seu passado de carnificina retorna contra ele próprio, e promovida por seus próprios filhos. Este passado vem na forma dos fantasmas de seus antigos inimigos, que são os filhos deles, para lhe assombrar, como o irmão cego e mendigo de Sue. Vem ainda, quando ele se refugia nas ruínas no castelo da família de Sue, que parece o inferno em sua jornada. Em certo diálogo, diz ao bobo: “Estou perdido”, e segue a resposta: “É a condição humana”. É interessante notarmos que em Shakespeare, e que aparece fortemente em Ran (1985), é a loucura como um desajuste à realidade. Assim como Hidetora, a jovem cortesã Ofélia de Hamlet (2000), sem conseguir entender as tramas na corte dinamarquesa que desembocaram na morte de seu pai, Polônio, pelas mãos de seu amado, Hamlet, enlouquece por não conseguir mais lidar com a transformação social a que assistia.

 

Saburu, refugiado com outro Lorde, o Sr. Nobuhiro Fujimaki, retorna ao feudo Ichimonji com o intuito de salvar seu pai da destruição promovida por seus irmãos. Giro, também influenciado por Kaede, declara guerra contra um exército em muito superior ao seu, decretando assim o fim do feudo Ichimonji. Saburu e Hidetora são assassinados a mando de Giro, destruindo completamente a família de Hidetora (e finalizando a vingança de Kaede).

 

O filme irá retratar a violência extrema com que se deu a acumulação primitiva japonesa. No entanto, no Japão os rumos que essa acumulação tomou foram totalmente distintos do que o ocidente. Já fizemos referência acerca da violência que tomou conta do Japão no século XVI. No entanto, vejamos os resultados dela, segundo a antropóloga cultural Ruth Benedict:

 

“No século XVI a guerra civil tornara-se endêmica. Após décadas de desordem, o grande Ieyasu obteve vitória  sobre todos os rivais e em 1603 passou a ser o primeiro Xógum da Casa de Tokugawa. O Xogunato conservou-se na linhagem de Ieyasu por dois séculos e meio e terminou somente em 1868, quando o ‘governo duplo’ de Imperador e Xógum foi abolido no começo do período moderno. Em muitos sentidos este longo Período Tokugawa constitui-se num dos mais notáveis da história. Manteve uma paz armada no Japão até a última geração antes do seu término, pondo em exercício uma administração centralizada que serviu admiravelmente aos propósitos dos Tokugawa. (...) A fim de manter este difícil regime, os Tokugawa recorreram à estratégia de evitar que os senhores feudais, os daimios, acumulassem poder, impedindo quaisquer combinações entre eles, que viesse a  ameaçar o domínio do Xógum. Os Tokugawa simplesmente não aboliram a organização feudal, como também, visando manter a paz no Japão e o domínio da Casa de Tokugawa, tentaram fortalecê-la e torná-la ainda mais rígida.” (Benedict, 2002, p. 56-57).

 

Desta forma, muito embora seja um regime em decadência, ele foi mantido à força para garantir a manutenção do poder e da centralidade japonesa. Conforme esta antropóloga, a Casa de Tokugawa passou a regulamentar minuciosamente os estratos e a posição social de cada nobre, e também “os pormenores do comportamento diário de cada casta” (Benedict, 2002, p. 57), e assim, garantindo a estabilidade necessária ao seu governo. Talvez, antes de encerrarmos este texto, seja interessante fazermos referência a alguns pontos levantados por essa antropóloga, acerca da constituição da sociedade japonesa. Assim ela a caracteriza:

 

“Tanto a espada quanto o crisântemo fazem parte do quadro geral. Os japoneses são, no mais alto grau, agressivos e amáveis, militaristas e estetas, insolentes e corteses, rígidos e maleáveis, submissos e rancorosos, leais e traiçoeiros, valentes e tímidos, conservadores e abertos aos novos costumes. Preocupam-se muito com o que os outros possam pensar de sua conduta, sendo também acometidos de sentimento de culpa quando os demais nada sabem do seu deslize. Seus soldados são disciplinados ao extremo, porém, são igualmente insubordinados.” (Benedict, 2002, p. 10-11).

 

Benedict está mostrando aqui que a cultura japonesa é tão complexa e contraditória quanto a nossa. O olhar ocidental vê a cultura oriental, e especialmente a japonesa, como exótica e até mesmo envolta em mistério. A apreensão da materialidade histórica implica em observarmos a cultura japonesa como resultante de um processo histórico específico de acordo com a construção material e social própria dos Japoneses. A antropologia cultural, iniciada pelos estudos do alemão Franz Boas, considera a apreensão da cultura o principal aspecto a ser observado pelo pesquisador da antropologia, cultura esta sempre vista como contraditória, não apenas tomada em si mesma, mas quando comparada com a cultura de outros povos, e resultante de desenvolvimento histórico. Não pude, em meus estudos iniciais em antropologia, apreender a vinculação (ou não) com as teorias marxianas e a antropologia cultural. No entanto, o estudo de Benedict é bastante idôneo, não só por não ser um estudo etnocêntrico, mas por procurar, através da materialidade da vida social dos japoneses, definir seu padrão de cultura. Assim, ela irá definir a cultura japonesa como uma cultura da ordem e da hierarquia. Os japoneses organizam sua vida dentro desses padrões, de maneira altamente contraditória, assim como os norte-americanos se organizaram contraditoriamente dentro do padrão de igualdade e liberdade: “Qualquer tentativa de entender os japoneses deverá começar com a sua versão do que significa ‘assumir a posição devida’.” (Benedict, 2002, p. 43).

 

Quando o lorde Hidetora adentra ao seu palácio e vê Taro em seu trono, ocupando o lugar de Grande Lorde, fica extremamente contrariado, mas ainda assim se ajoelha perante o filho e lhe presta respeito. Giro, ao comunicar-lhe que seus privilégios também acabaram, no palácio sob sua guarnição ajoelha-se em respeito ao pai. Estes são aspectos que aos olhos ocidentais mostram um mundo bastante diferenciado do nosso, mas que, no fundo, revela a condição humana: estamos perdidos em nossa materialidade da história.

 

Referências

Rafael Egidio Leal e Silva é professor Me. de Sociologia do Instituto Federal do Paraná Campus Umuarama.

 

Ran. Direção de Akira Kurosawa. Japão/França: Greenwich Films Productions, 1985. (160 min.)

 

ANDERSON, P. O feudalismo japonês. In: ____________. Linhagens do estado absolutista. 3. ed. 2. reimp. São Paulo: Brasiliense, 2004.

BENEDICT, R. O crisântemo e a espada: padrões da cultura japonesa. 3.ed.São Paulo: Perspectiva, 2002.

KORÍN, P. Pensamientos em torno al arte. In: El realismo socialista em literatura y el arte. Moscú: Editorial Progreso [s.d.].

MARX & ENGELS. A ideologia Alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

SHAKESPEARE, W. Hamlet. In: SHAKESPEARE, W. Tragédias e comédias sombrias. São Paulo: Editora Nova Aguilar, 2016. Vol. 1.

SHAKESPEARE, W. Rei Lear. In: SHAKESPEARE, W. Tragédias e comédias sombrias. São Paulo: Editora Nova Aguilar, 2016. Vol. 1.


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