CHAMPURAMENTO - UM CONCEITO POÉTICO, por triZ périZ

  

A presente argumentação versa sobre o livro de poemas, Taotologias, do autor Rui Rocha, residente na região administrativa de Macau, na China. A pesquisa investigou como a voz poética criada pelo autor conseguiu expressar os preceitos filosóficos, religiosos e culturais, tanto os ocidentais quanto  os orientais, por meio de elementos linguístico-literários, construindo uma obra champurada, a qual apresenta imagens-mensagem dos espaços-tempo ocidentais e dos orientais. Para tanto, buscou-se historicamente os elementos relevantes à composição das escritas da obra, bem como buscou-se geograficamente os elementos linguístico-literários constitutivos dos espaços-tempo figurados nos poemas. Além disso, houve uma pesquisa filosófico-religiosa, uma vez que as escritas de Taotologias são revestidas dessa temática. Em consonância a esse estudo, aprofundou-se a investigação das ferramentas estratégicas linguístico-literárias, entendendo que todas as imagens-mensagem foram erigidas tanto na forma como no conteúdo de maneira champurada, ou seja, confluindo tanto para a cultura ocidental quanto para a oriental, perfazendo-se assim a construção de um conceito poético, denominado champuramento.

           

Conectar-se com os fatos histórico-geográficos da cidade de Macau, China, faz-se de fundamental importância para o estudo de alguns dos poemas da obra Taotologias. Esse conhecimento possibilita compreender como é feito o processo de criação, elaborado por uma voz poética que percorre mutativamente os vários ciclos, compostos de inúmeros naipes, os quais engendram as camadas champuradas das rotas dessa obra. Isso proporcionaria uma forma de leitura que deixa a percepção mais fluida quanto à depreensão da montagem das imagens-mensagem produzidas nos poemas.

           

Em sequência disso, a mutabilidade poética de Taotologias é para o próprio autor, Rui Rocha, uma forma literário-linguístico de expressar a visão, champurada, da paisagem citadina asiática. Vale dizer que essa mutabilidade é apresentada pelas imagens-mensagem, que são imagens dialogadoras da mensagem poética ideográfica asiática. Conforme as palavras do autor, “um dos aspetos da [...] poesia é a tentativa de expressar precisamente essa paisagem linguística/gráfica que a cidade nos sugere” (ROCHA, In Entrevista). Ainda, continuando o seu comentário, ele afirma que: “A essência da poesia [...] é a captação do mistério das coisas e dos seres e a vibração da sua eternidade. A poesia é uma estética que pode ser apresentada, sentida, mas não pode ser traduzida facilmente pela linguagem. Razão pela qual [é] tão difícil a arte da tradução em geral, mas muito particularmente a tradução da poesia. Wittgenstein, no seu Tratactus Logico-Philosophicus, disse do que não podemos falar (os valores), devemos manter o silêncio.” (ROCHA, In Entrevista).

           

Portanto, há uma pretensão de se identificar, nos versos de Taotologias, o silêncio filosófico-religioso, coordenador de uma sensibilidade champurada capaz de conectar elementos ocidentais e orientais, os quais se fazem imagens-mensagem pelas estratégias literário-linguísticos de alegoria, difração, cronotopia, tropo, gradação sensorial geográfica, bem como a emotividade transposta pela hermenêutica da voz poética, além de aspectos da fauna e flora mundial.

           

A relação histórica de Macau com a Língua Portuguesa dá-se desde 1513. Essa cidade chinesa foi e tem sido, desde a chegada dos portugueses, no século XVI, uma porta de acesso para a entrada da civilização ocidental, na China e vice-versa (SIMAS, 2007). Esse intercâmbio cultural entre o ocidente e o oriente moldou não só a identidade da cidade macaense, como também o olhar champurado da voz poética que se expressa nos versos de Taotologias. Hodiernamente, desde 2018, esse território insular chinês, Região Administrativa Especial de Macau (RAEM), junto à RAE de Hong Kong, desponta-se como a maior metrópole do mundo. Elas foram ligadas por uma ponte de 29,6 km, com uma seção de 22,9 km acima do nível do mar e outra abaixo, por um túnel submarino (HARVEY, 2014). O território chinês, tanto peninsular/insular, quanto continental, apresenta-se como um dos últimos espaços globais de transição econômica, no que tange à ordem capitalista ocidental. A China, em especial após a reforma Deng, entre os anos 1970 e 1980, teve um dos seus maiores períodos de industrialização, tomando grandes proporções, segundo Kissinger (2011). Esse processo de industrialização traz impactos à urbanização, o qual reverbera na literatura composta em Taotologias.      

 

A análise crítico-literário-linguística da obra Taotologias apresenta como problema a indagação sobre como os textos fazem-se estruturados, à media que deixam transpassar o processo de champuramento, de modo que esse processo constrói uma produção simbólica subjacente à construção dos textos, podendo se afirmar que é um processo que se opera na infra-língua, por intermédio da ferramenta “close reading”, partindo da elaboração entremeada de todos os elementos estratégicos usados para compor a poesia da imagem-mensagem emblemática, desencadeando-se, assim, a estética da obra. Além disso, o processo em questão apresenta uma fricção entre a infra-língua e a linguagem, a qual desencadeia um contorno próprio do champuramento no resultado dessa composição emblemática.

 

A criação da palavra “champurado”, e suas derivações, é uma proposta que trabalhada durante as análise das escritas dos poemas, embasada nos estudos de Bhabha sobre o hibridismo. Já a conceituação mensagem-imagem proposta para delimitar o constructo poético, foi elaborada a partir da união dos elementos linguístico-literários aos preceitos filosófico-religiosos, bem como aos fatos histórico-geográficos dentro da composição poética de Taotologias, tendo como substrato o conceito de imagem-pensamento (“imagem de pensamento”) de Walter Benjamin (2004). A partir desse conceito, ele diz ser difícil nomear o que temos diante dos olhos (p.22). Para Benjamin a imagem é uma forma dialética da imobilidade; logo, a imagem pode ser entendida como a concretude de uma possível abstração, que se pretende materializar. E ele continua argumentando que isso, ao se expor o nome de algo, é, na verdade, um feito, o qual se faz sentir sobre a autoria, a qual se utiliza dessa ferramenta linguística, denominada nomeação, pois tal autoria tem o poder de restrição, ampliação, ou seja, de escolha. Essa imagem dialética, consequentemente, abarca o processo de composição, que se divide em duas vias. Uma pela concepção criativa, a qual se esvai quando da consumação da obra. A outra, verificada após a consumação dessa obra e alcançanda a partir do interior da própria obra, sendo a criatividade sua feminilidade e a visualização do interior da obra a sua masculidade, coadunando em um todo, que é a própria obra em si. O termo imagem-pensamento é também uma referência ao poeta  Mallarmé, o qual constrói a imagem-poética do não “saigner par l'image de la pensée” (sangrar pela  imagem de pensamento). Além disso, propõem-se que a recepção de leitura da obra é a de que a suavidade do Dao, símbolo daoista, em conjunto, subsidiário, com a sensibilidade zen e o amor universal cristão, assim como o moísmo, visam a uma sincronicidade e à quebra da linearidade do tempo-espaço, possivelmente, levando o leitor a experienciar, por meio dos elementos específicos da estruturação da obra, as imagens-mensagem champuradas, veiculadas pela condução hermenêutica da voz poética, uma vez que a cultura, a filosofia e a religião são construtos artísticos e estéticos capazes de unirem o mundo concreto e o mundo simbólico da vida, que se apresentam pela arte literário-poética (SCHOPENHAUER, 2006).

 

Logo, à medida que as possibilidades se apresentam durante as inúmeras leituras dos textos de Taotologias, identificam-se as estratégias literário-linguísticas. Essas são de suma importância para que se coloque, diante dos leitores um arsenal capaz de fazê-los depreender as nuances literárias, e mesmo linguísticas, que se apresentam nos textos em português produzidos por um usuário da Língua Portuguesa, mas, muitas vezes, distante literário-linguisticamente deles.

 

O título da seção “taotologias”, bem como o título da obra, Taotologias, podem ter como análise a alusão ao Dao (Tao), símbolo daoísta (taoista), traduzido como caminho, o qual é entendido como um constante retorno. Os títulos, da seção e da obra, são compreendidos, dessa forma, como o estudo do caminho poético. Esse título (Taotologias com “o”) poderia ser confrontado ao termo “tautologia” (tautologia com “u”), palavra de origem grega. Tautologia é um conceito usado em Lógica, que é uma ciência e arte do raciocínio (ocidental). O raciocínio é uma forma de processamento simbólico de informações que visa tornar explícitas formas de conhecimento que antes estavam implícitas (BUCHSBAUM, 2006). Tautologia, então, dentro da Lógica, é uma fórmula de proposições, que é sempre verdadeira para todas as possíveis valorações de suas variáveis. Ou seja, se houver um conjunto negativo, ou um conjunto positivo, ou um conjunto negativo e positivo, o resultado será sempre verdadeiro. A tautologia busca, portanto, o resultado verdadeiro continuamente, mesmo que causa e efeito venham um após outro, seja pela validação negativa ou pela validação positiva. O Dao busca o verdadeiro continuamente, embora causa e efeito sejam simultâneos, pelo equilíbrio entre as ações negativas e ações positivas. Donde se pode depreender que tanto o ocidente, em sua tradição transcendentalista, quanto o oriente, em sua tradição imanentista, e muitas vezes, também transcendentalista, podem se cruzar, porque pleiteiam o mesmo fim: a verdade. Por conseguinte, os títulos, da obra e da seção, são um provável jogo de palavras, analisado, foneticamente, como um trocadilho com a palavra “tautologia”. Separando-se o morfema “tao”, tem-se a alusão à simbologia, do Dao (Tao), do ciclo, enquanto que o morfema “tau” se remete à redundância. Este último morfema, mesmo apresentando uma conotação pejorativa, na concepção ocidental, ainda se coaduna com a ideia de constante retorno, na concepção oriental, sendo ambos um reforço, ou positivo ou negativo, dos fatos que se repetem de alguma forma. Para além disso, tem-se que o prefixo grego “tauto-” da palavra “tautologia” com uma significação de “o idêntico”, “o mesmo”. Essa possível atribuição pode reverberar na obra Taotologias como um encontro com o outro, quando dos poemas referentes ao humano, bem como também pode deixar a ver um desencontro, apresentado nos poemas referentes ao social. A obra é uma coletânea de assuntos experienciados por uma voz poética. Uma das possíveis maneiras de leitura desses textos é sob o símbolo zen, indutor de uma leitura em 360º, portanto cíclica, em que essa voz conduz as viagens poéticas, que englobam tantos os hemisférios ocidentais quanto orientais, por entre as imagens-mensagem impressas pela linguagem no livro. É uma rota literária de conhecimentos esparsos coletados pelos caminhos percorridos por tal voz poética. Esse possível caminho cíclico é entendido, conforme a experiência do Dao, como subjacente à obra, por meio do conceito de alegoria, sendo sutil como a pintura oriental (chinesa) e a sensibilidade imaginativa poética ocidental (portuguesa). Encontram-se, na obra, as estratégias literário-linguísticas próximas à técnica poética hai-ku, processos de epigenética das cores, teoria dos jardins, urbanidade, bem como uma nuance de eroticidade, além da cronotopia.

 

A arte de composição poética macaense, segundo entendimentos de Devid Brookshaw, em língua portuguesa da obra Taotologias, permeia a colocação dos vocábulos em meio aos versos, o que se entrelaça à forma literária poética, muitas vezes apresentada em forma de um pequeno poema, com uma métrica próxima à tradição lírica hai-ku, apresentando um conteúdo circunscrito não só ao diálogo com a Natureza, mas também com uma forte conotação subjetiva, mais afeita à poética ocidental. Logo, não só a forma como também o conteúdo da elaboração de composição da obra Taotologias fazem-se champurados, em quase toda  a sua totalidade. A obra Taotologias, parece favorecer uma leitura em 360º – ao modo do constante retorno do Dao –, tanto pelo conteúdo, que vai do Dao ao social, quanto pela forma, que começa em pequenos versos, cresce e volta aos pequenos versos.

             

A palavra “champurada”, bem como suas flexões e derivações, delineada por intermédio das explanações das escritas da obra, é uma gênese de significância transferencial das culturas usadas na criação das escritas da obra Taotologias, como embasamento, na performance cultural, em que se expõem os poemas, entrelaçando, portanto, os entendimentos culturais aos entendimentos literário-linguísticos. Conceituação criada, especialmente, para identificar, na obra Taotologias, o processo criativo genuinamente macaense. A criação dessa conceituação foi concebida, como uma espécie de derivação concernente à localidade macaense, a partir da conceituação de hibridismo de Bhabha, sendo uma espécie de amálgama de todos esses substratos constitutivos da análise crítico-literária. Também, a expressão imagem-mensagem é um construto embasado por ideogramas chineses que imprimem na linguagem a imagem do signo, unindo artisticamente significado ao significante.

 

Referências

triZ périZ (beatriz jobim pérez senra) é Prof. Mestra em Literatura como marketing: preceitos ocidentais e orientais, sincronicidade expressa pela linguagem imagética, por intermédio da cronotopia, pela UFJF, Brasil.

 

BENJAMIN, Walter. Imagens de Pensamento. Lisboa: Assirio & Alvim, 2004.

 

BUCHSBAUM, Arthur. Lógica Geral. São José (SP): [s. n.], 2006.

 

HAVEY, David. Cidade Rebeldes. Trad. Jeferson Camargo. Paulo: Martins Fontes,  2014.

 

KISSINGER, Henry. On China. New York: The Penguin Press, 2011.

 

ROCHA In entrevista. In SENRA, Beatriz Jobim Pérez. Taotologias, de Rui Rocha: uma poética do champuramento. 2023. 145 p. Orientador: Alexandre Graça Faria. Dissertação (mestrado acadêmico) - Universidade Federal de Juiz de Fora, Faculdade de Letras. Programa de Pós-Graduação em Letras, 2023. 1. imagem-mensagem; 2. champurado, 3. linguístico-literário, 4. oriente, 5. ocidente.

 

SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. São Paulo: Acrópolis, 2006.

 

SIMAS, Mônica. Margens do destino: Macau e a literatura em língua portuguesa. São Caetano do Sul: Yendis, 2007.

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