A NARRATIVA EM APORIA NO SÉCULO DAS LUZES: DENIS DIDEROT, O ROMANCE E O ORIENTE, por Ricardo Hiroyuki Shibata

 

Um leitor do início século XVIII tremia nas bases quando ouvia a palavra “Oriente”. Havia pouco, os turcos sitiaram a cidade de Viena por um longo período e as notícias de empalamentos em massa era moeda corrente. E ainda ecoava nos corações europeus a horda de mongóis que, por onde passavam, tinha por hábito empilhar as cabeças dos inimigos em montículos – de fato, uma obra de engenharia na qual eles eram exímios. O medo gera fascinação, já dizia aproximadamente um filósofo maquiavélico, rescendendo a enxofre. 

 

Neste contexto, a tradução de As mil e uma noites, realizada por Antoine Galland, entre 1704-1717, foi um divisor de águas. A partir daqui, a obra de Galland, cuja fortuna crítica já é considerável (CHEBEL, 2010), inspirou diversos clássicos que compuseram a experiência das “belles lettres” no interior do século das Luzes. Até meados do século XVII, a cultura ocidental projetava uma imagem evanescente, algo embaçada e difusa, da Pérsia, da Arábia e demais regiões do Oriente. Isto, em grande parte, por falta de informações ou mesmo por falta de interesse. A situação mudou radicalmente e, portanto, uma mudança de mentalidade estava em curso, com a ascensão de vários sultanatos orientais e com o incremento da religião islâmica, ameaçando as grandes monarquias do Ocidente. A resposta foi o estabelecimento de vários tratados comerciais e um diálogo fundado em inumeráveis trocas diplomáticas.

 

O que seguiu a publicação de vasta matéria histórica, cuja temática versava sobre o modo de constituição política desses potentados orientais (MÉZERAY, 1640; VERDIER, 1653; CHASSEPOL, 1676; RICAUT, 1683), e com a posterior representação teatral dessa temática, em seus vários matizes, com grande sucesso de público, notadamente, em Molière e Racine (MOLIÈRE, 1670; RACINE, 1672). Antoine Furetière, em seu Dictionnaire (1690), definia o “Oriente” como uma região geográfica que compreendia Levante, Pérsia, China e Japão. Essa imprecisão territorial correspondia também a um imaginário difuso, em que o Oriente mesclava exotismo de base, pitoresco surpreendente e vários aspectos do maravilhoso e da fantasia, com elementos das culturas da Índia, Arábia e Pérsia. Mas, no século XVII, conforme disse Laurent Wauquiez, tudo isso, de fato, correspondia aos turcos, a seu Império e – no interior da cultura política – ao despotismo e às inúmeras formas de tirania. (WAUQUIEZ, 2012, p.151)

 

Os lances iniciais de As mil e uma noites são bem conhecidos. O sultão da Pérsia foi traído por sua esposa e decidiu vingar-se de todas as mulheres do Reino. Essa traição fez o sultão tomar medidas drásticas: “ele resolveu que todas as noites se casaria com uma mulher diferente para, depois, estrangulá-la na manhã seguinte” (GALLAND, 1717, v.1, p.27). Uma após outra, de diversas hierarquias sociais (a filha de um oficial subalterno, de um burguês...), cada mulher era recebida em matrimônio para ser cruelmente executada ao amanhecer. Nesse conjunto, até aquele momento, nenhuma delas impressionava por seu destaque em termos de virtude. Porém Sherazade, a filha do grão Vizir, homem de confiança do sultão e algoz das infelizes esposas, se sobressaía:

 

“Sherazade tinha uma coragem muito acima de seu sexo e um espírito indômito com uma perspicácia admirável. Ela tivera contato freqüente com os livros e possuía uma memória tão prodigiosa que nada do que tinha lido lhe escapava. Ela tinha se dedicado igualmente à filosofia, à medicina, à história e às artes. Ela também fazia versos muito melhores que os poetas mais célebres de seu tempo. Além disso, ela era dotada de uma beleza extraordinária e uma virtude muito sólida coroava todas as suas belas qualidades”. (GALLAND, 1717, v.1, p.28-29)

 

Com uma confiança inquebrantável, ela mesma se voluntariou para esposar o sultão com o intuito de cessar esse ciclo de assassinatos que assolava o Reino. Após o matrimônio, ela põe em prática o seu plano: contar estórias de tal modo extraordinárias que o sultão, encantando, ficaria na expectativa de outras narrativas de igual atração. Porém, ao final, ela arrematava que “a seguinte estória seria ainda mais surpreendente (...) se o sultão me deixar viver e me conceder a permissão de contá-la na noite seguinte” (v.1, p.54). Deixar o sultão e, por conseguinte, os leitores, nessa “inquietude cruel”, cuja potência é manter a curiosidade para saber o fim da narrativa (“eu estou curioso para saber o final”, v.1, p.55), é a grande estratégia discursiva dos contos. Sherazade promete, muitas vezes, que a melhor parte da narrativa ainda está por vir (“o que resta é o melhor do conto”, v.1, p.60). Neste circuito, a curiosidade do sultão vai sendo atiçada (“ela conseguiu atiçar a curiosidade do sultão”, v.1, p.63), paulatinamente, com seu processo contínuo de retroalimentação.

 

O universo de efabulação maravilhosa desses contos surpreendeu até mesmo o próprio Antoine Galland, conforme seu “Avertissement”, por seu caráter imaginativo e divertido:

 

“Se os contos desta espécie são agradáveis e divertidos pelo maravilhoso que se distancia do que reside no cotidiano, isto acontece porque eles transportam para aquilo que está muito além do que aconteceu, uma vez que eles estão repletos de acontecimentos que surpreendem e revolvem o espírito e que fazem ver o quanto os árabes ultrapassam as outras nações neste tipo de composição”. (GALLAND, 1717, v.1, p.xxij)

 

Galland continua explicando que, no interior dos contos, podia-se encontrar o “verdadeiro” Oriente, muito mais do que nos relatos de viagem, realizados por aventureiros, exploradores ou diplomatas, ou mesmo na matéria histórica, fundada em documentação. Dizia ele que:

 

“Eles devem agradar ainda pelos costumes e pelos hábitos cultivados pelos Orientais, pelas cerimônias de sua religião, tanto pagãs quanto muçulmanas, e estas narrativas são melhor ressaltadas nos autores que as concebem do que nas ilações dos viajantes. E nisto, todos os Orientais, Persas, Tártaros e Indianos, se fazem distinguir e espelham o que eles são, não apenas os soberanos, mas também as pessoas da mais baixa condição. Dessa forma, sem precisar experimentar a fadiga que seria visitá-los em seus próprios países, o leitor terá aqui o prazer de vê-los agir e de ouvi-los falar. Tomamos o cuidado de conservar seus traços, de não nos distanciarmos de suas expressões e de seus sentimentos. Eliminamos aqueles textos, apenas quando eles não estavam em conformidade com as boas regras sociais”. (GALLAND, 1717, v.1, p.xxiij)

 

Antoine Galland destaca assim o aspecto estritamente moral dos contos, vale dizer, a relação entre o elogio das virtudes e a admoestação dos vícios a partir da matriz prudencial. Nesse sentido, o seu circuito de articulação opera no interior do aperfeiçoamento individual, porém com vistas à participação do cidadão nas questões da política, da cidade e do Estado.   

 

“Não é por pouco que aqueles que lerem estes contos estejam predispostos a aproveitar os exemplos de virtude e de vício que ali vão encontrar. Eles podem ter a vantagem que a leitura de outros tipos de conto não possui, pois são mais próprios a corromper os costumes do que a corrigi-los”. (GALLAND, 1717, v.1, p.xxiv)

 

Pois bem, se para os europeus, o Oriente evocava o medo e a fascinação, faltava acrescentar aquele toque de pimenta, cujo tempero, sem embotar o gosto, causava a picância necessária para surpreender. Aqui, pode-se perfeitamente referir Voltaire, com sua ironia impagável, em Zadig (História Oriental, 1757) (VOLTAIRE, 2002, p.7-80), ou Montesquieu e seu diagnostico político apurado nas Cartas Persas (1721). Porém, tudo isso está em Denis Diderot, em que pesam as doses de romancista destro.

 

A ambientação das Joias Indiscretas (1748), de Diderot, é claramente inspirada nas Mil e Uma Noites, mas o leitor mais avisado consegue reconhecer, com certa facilidade, em algum de seus personagens orientais, vários membros da corte do Rei Sol, em particular, o monarca Luís XIV e sua dama favorita, a marquesa de Pompadour. Trata-se de uma obra satírica com pitadas de sarcasmo cruel e de uma crítica ao despotismo e ao poder da Igreja Católica sobre a consciência dos fieis, valendo-se do temor do pecado e da hipocrisia da virtude. Esse é também o mote de um conto de Diderot (ainda pouco estudado e de mesma ambientação oriental), O Pássaro Branco, escrito circa 1748 e publicado por primeira vez em 1778.

 

Essa apropriação de personagens e da atmosfera orientais, que viraram moda pela obra de Galland, foi uma jogada de mestre. E foi justamente essa hermenêutica em diapasão satírico, com agenciamento dos demais usos de linguagem indireta, que se transformou em estratégia prevalente da Enciclopédia, como explicava o próprio Diderot. Ela teria então uma utilidade cifrada, em que pesavam mistérios a serem descobertos; assim, seu desvendar e seu significado mais profundo se deixariam revelar com o passar dos anos e com o julgamento (distanciado e prudente) da posteridade. Seria, no entender de Diderot, uma arte de deduzir os argumentos por meios subreptícios. (WILSON, 2012, p.232s)

 

Dessa forma, a racionalidade mais estreita, fundada em silogismos lógicos, seria impactada frontalmente por essa viragem estratégica nas formas comuns de pensar. Esse novo método, conforme diz o verbete “Enciclopédia”, possibilitaria instaurar um novo procedimento para burlar os censores a partir de um tratamento mais sutil do conhecimento e estabelecer uma rede de referências cruzadas que permitiria ao leitor tirar as suas próprias conclusões. Um bom exemplo disso é a relação (algo inusitada) entre os verbetes “antropofagia” e “comunhão”. O que interessava a Diderot era o manejo da linguagem e certos usos das técnicas narrativas, ligados à atmosfera mágica do Oriente e ao universo exótico da Arábia, com grande aproveitamento desse fluxo constante de interesse pela obra de Galland. Isso, porque, de fato, os contos orientais quadravam perfeitamente com a definição de “romance”, quer dizer: “Por romance, entendia-se até agora um tecido de acontecimentos quiméricos e frívolos, cuja leitura era perigosa para o gosto e para os costumes”. (DIDEROT, 2000, p.16)

 

Entretanto, numa fase posterior da produção intelectual de Diderot, essa definição deveria ser ampliada e repensada, pois a impressionante obra do escritor inglês Samuel Richardson (ele se referia ao romance Clarissa) relacionava o trabalho do gênio com a inspiração à virtude, isto é, a busca do bem e a extirpação dos vícios. E, mais especificamente, no Elogio de Richardson (1762), tratava-se de uma moral em ação, que debulhava as máximas e os ditos sentenciosos, com seu esquadro geral e abstrato, em narrações mais concretas e particulares (MATTOS, 2004). A partir disso, a variabilidade de situações e a sua sucessão, com sua rapidez de reviravoltas e contornos, são jogadas à frente dos leitores como uma instância experiencial de grande relevância. A virtude de Richardson é destacar a ancoragem de sua narrativa nos fatos e eventos da realidade com referenciais próximas ao universo de conhecimento do leitor.

 

“Esse autor não faz correr o sangue ao longo dos lambris; ele não vos transporta em absoluto a países afastados; ele não vos expõe em absoluto a seres devorados por selvagens; ele não se encerra em absoluto em locais clandestinos de devassidão; ele não se perde jamais nas regiões do feérico”. (DIDEROT, 2000, p.17)

 

Ou seja, Richardson não investe nas ilusões momentâneas ou no impacto do efêmero:

 

“O mundo em que nós vivemos é o lugar da cena; o fundo de seu drama é verdadeiro; suas personagens têm toda a realidade possível; suas figuras são tomadas do âmbito da sociedade; seus incidentes estão nos costumes de todas as nações civilizadas; as paixões que ele pinta são tais como eu as experimento em mim; são os mesmos objetos que as excitam; elas têm a energia que eu lhes reconheço; os contratempos e as aflições de suas personagens são da natureza daquelas que me ameaçam incessantemente; ele me mostra o curso geral das coisas que me cercam”. (DIDEROT, 2000, p.17) 

 

É que a obra de Richardson, explicava Denis Diderot, assemelhava-se a Moisés (“um evangelho trazido a terra”) e aos trágicos gregos (Eurípedes e Sófocles) com o sentimento de comiseração quando a virtude é espoliada. Entretanto, em vez dos caracteres aristocráticos ou da bendição de alguns eleitos que fazem parte do povo escolhido, as personagens de Richardson são aquelas do cotidiano e dos eventos comezinhos do dia-a-dia das grandes metrópoles. “Elaborei uma imagem das personagens que o autor pôs em cena: suas fisionomias estão aí; eu as reconheço nas ruas, nas praças públicas, nas casas; elas me inspiram pendores ou aversões” (DIDEROT, 2000, p.22). Ora, essas assunções quadram perfeitamente com o projeto pedagógico da Ilustração, em que se destacavam elementos civilizatórios de grande envergadura. Nesse sentido, uma moral que se flagra em ação seria estrategicamente capaz de oferecer respostas satisfatórias para os dilemas mais contundentes da sociedade. As especificações das personagens, as descrições particulares da paisagem e a relação precisa da cronologia a partir da sucessão de fatos e eventos faziam parte desse efeito de “realismo”, com relevante ganho didático, que tanto encantaram os leitores a partir da metade do século XVIII. (WATT, 2010, p.11-13)

 

Como se sabe, a obra literária de Samuel Richardson foi um marco representativo na história do romance. No século anterior, Miguel de Cervantes já havia advertido que a leitura obstinada dos romances de cavalaria fazia o leitor criar moinhos de vento na imaginação e que, a partir desse descontrole, acabava por inocular em si mesmo a doentia obsessão da fantasia com suas imagens sem substância (KLEIN, 1998, p.76s).  Com a obra de Gallant, a matéria de cavalaria e a busca de honra foram substituídas pelas noites árabes e pelo pitoresco das excentricidades orientais, permanecendo o mesmo enquadramento discursivo. Porém, com Richardson, a intriga e as suas inúmeras reviravoltas, agora se desenrolavam em ambientes domésticos e no interior da família burguesa, com um olhar bisbilhoteiro sobre o modo de vida, a descrição física e o comportamento das personagens. O que coadunava estrategicamente com os novos horizontes do individualismo econômico, do liberalismo de Locke (WATT, 2010), da mudança de público leitor (DARNTON, 2009) e com a secularização da sociedade (THOMAS, 2003).   

 

Conquanto Diderot tivesse surfado na moda oriental com sucesso, ele percebeu, desde o inicio, as potencialidades desse novo tipo de romance, mais adequado às questões pragmáticas e à existência comezinha presente no cotidiano dos cidadãos. Foi, em 1760, numa reunião festiva na casa do barão d’Holbach, que os philosophes discutiram a obra richardiana, com base nas traduções do abade Prévost – Pamela (1742), Clarissa (1751) e Charles Grandisson (1755). Os ânimos se exaltaram e o debate pegou fogo, rapidamente. Diderot escreveu a Sophie Vollant, em carta de 21 de outubro de 1760, que os romances de Richardson causaram grande comoção, angariando simpatias e ódios, em igual potência em seus extremos (LAFON, 2004, p.1258s). De fato, não havia meio termo. Voltaire e Marmontel mantiveram-se fieis às formas literárias antigas. Diderot, para lançar uma pá de cal na moda do Oriente, preferiu aproveitar as técnicas do romance, investindo fortemente em outro gênero – o teatro.         

 

Referências

Ricardo Hiroyuki Shibata é Doutor em História/Teoria Literária (Unicamp/Universidade Nova de Lisboa), Pós-Doutor em História da Cultura (UFPR) e Professor do Depto de Letras da Unicentro/Paraná. 

 

BUFFAT, M.. Éloge de Richardson. In: MORTIER, R. & TROUSSON, R.. Dictionnaire de Diderot. Paris: Honoré Champion, 1999.

 

CHASSEPOL, François. Histoire des grands visirs. Amsterdam: Abraham Wolfgank, 1676.

 

CHEBEL Malek. Dictionnaire amoureux des Mille et une nuits. Paris: Plon, 2010.

 

DARNTON, Robert. The Case for Books. Past, Present, and Future. New York: Public Affairs, 2009.

 

DIDEROT, Denis. Elogio a Richardson. In: _____. Obras II. Estética, poética e contos. São Paulo: Perspectiva, 2000, p.15-28.

 

GALLAND, Antoine. Les mille et une nuits. Contes arabes. Paris, 1717.

 

KLEIN, Robert. A Forma e o inteligível. São Paulo: Edusp, 1998.

 

LAFON, Henri. Notice. In: DIDEROT, Denis. Contes et romans. Paris: Éditions Gallimard, 2004.

 

LEPAPE, P.. Diderot. Paris: Champs/Flammarion, 1991.

 

MATTOS, Franklin de. A Cadeia Secreta. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.

 

MÉZERAY, S.. Histoire générale des Turcs. Paris: Sébastien Cramoisy, 1640.

 

MOLIÈRE. Le Bourgeois Gentilhomme. Paris: Claude Barbin, 1670.

 

RACINE, Jean. Bajazet. Paris: Pierre Monnier, 1672.

 

RICAUT, Paul. Histoire des trois derniers empereurs turcs. Paris: Chez la Veuve Louïs Billaine, 1683.

 

THOMAS, Keith. Religion and the decline of magic. Studies in popular beliefs in 16th and 17th-century. London: Penguin, 2003.

 

VERDIER, Gilbert S. du. Abrégé de l’histoire des Turcs. Paris: Guillaum de Luyne, 1653.

 

VOLTAIRE. Contos. São Paulo: Abril Cultural, 2002.

 

WATT, Ian. A ascensão do romance. Estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. São Paulo: Cia das Letras, 2010.

 

WAUQUIEZ, Laurent. Les Mille et une nuits: un best-seller des Lumières. Les Cahiers de l’Orient, 2012, n.105, p.149-156.

 

WILSON, Arthur. Diderot. Tradução Bruna Torlay. São Paulo: Perspectiva, 2012.

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